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I POLO DAS

3.2.1 A Reforma Psiquiátrica

Historicamente, a prática psiquiátrica asilar ocupou um espaço relevante no tratamento das pessoas com necessidades decorrentes do uso de álcool e drogas. Um dos primeiros questionamentos a esse modelo foi realizado por Foucault (1978), ao considerar o internamento como um instrumento de controle de todo tipo de desvio da norma social vigente.

Para Goffman (1996), esse controle se dá através da separação de indivíduos em situação semelhante da sociedade mais ampla por um período de tempo. Uma vez separados, tais indivíduos são submetidos a um sistema formalizado de disciplinarização e vigilância, com rigoroso cumprimento de normas e impessoalidade nas interações entre as pessoas. Essa tendência ao “fechamento” caracteriza o caráter total da instituição que age sob o internado de maneira que o seu eu passa por transformações dramáticas do ponto de vista pessoal e social, culminando no que o autor chamou de mortificação do eu. Nesse processo, a “concepção de si mesmo” e a “cultura aparente” que traz consigo é suprimida de modo a favorecer uma “reorganização pessoal” submetida e conformada com a condição de internado.

O que Goffman (1996) chamou de Instituições Totais, Basaglia (1991) denominou

Instituições de Violência, dadas às relações de opressão e exclusão que a assimetria de poder

entre pessoal técnico e pacientes impetrava.

Tais críticas ao modelo psiquiátrico asilar vem contribuindo para um processo de transformação da assistência e da relação entre técnicos, instituições e usuários dos serviços de saúde.

Para Desviat (2008, p.23), essas primeiras críticas ao modelo asilar, que surgiram no período posterior a Segunda Guerra Mundial, tiveram como principais elementos propulsores “uma vontade coletiva para criação de uma sociedade mais livre e igualitária, mais solidária, a descoberta de novos medicamentos psicotrópicos e a adoção da psicanálise e da saúde pública nas instituições da Psiquiatria”.

Segundo Saraceno (2001), a crise da Psiquiatria inicia-se com a crítica ao confinamento, mas se estende a todo saber psiquiátrico, uma vez que ele se constitui a partir da observação do doente confinado, sem cidadania. Para o autor, o saber do diagnóstico, enquanto cultura psiquiátrica e instrumento de controle social, mantém a unidade e identidade médica, mas pouco informa sobre as necessidades, desejos e possibilidades dos sujeitos atendidos.

Amarante (1995a) examinou pormenorizada e cuidadosamente esse processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil e no mundo. Apoiando-se na tese de Birman e Costa (1994), o autor aponta dois períodos em que foram redimensionados os campos teóricos e assistenciais da Psiquiatria. O primeiro, que ocorreu logo após a Segunda Guerra Mundial, foi marcado por essa crítica à instituição asilar, no entanto, o que se buscava era recuperar o caráter de cura da instituição psiquiátrica asilar. Destacam-se aqui as primeiras iniciativas de transformação da assistência psiquiátrica: a Psicoterapia Institucional, na França e a Comunidade Terapêutica, na Inglaterra.

O segundo período foi marcado pela extensão da Psiquiatria ao espaço público, organizando-o como “espaço de prevenir e promover a saúde mental” (BIRMAN, COSTA, 1994, p.44 apud AMARANTE, 1995a, p. 22). Sobressaem-se, nesse período, a Psiquiatria de Setor, na França e a Psiquiatria Comunitária ou Preventiva, nos Estados Unidos.

Rotelli, Leonardis e Mauri (2001, p. 19) assinalam que, nestas experiências, a reforma foi praticada como “desospitalização, um programa de racionalização financeira e administrativa, sinônimo de redução de leitos hospitalares”. Para os autores, essas experiências têm alguns traços comuns. A internação continuava a existir de forma que os serviços territoriais ou de comunidade conviviam com ela, mas não a substituíam. Além disso, o sistema de saúde mental funcionava como um circuito, ou seja, entre os serviços extra- hospitalares e a internação existia uma complementariedade.

Apesar de constituírem-se em avanços, tais experiências limitavam-se a “meras reformas do modelo psiquiátrico na medida em que acreditavam na instituição psiquiátrica como o locus de tratamento e na Psiquiatria enquanto saber competente” (AMARANTE, 1995a, p.22).

Nesse sentido, Barros (1994) acrescenta que humanizar o manicômio não implicava em questionar as relações de tutela e custódia e nem o fundamento de periculosidade social presente no saber psiquiátrico.

Apenas a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática Italiana operaram uma ruptura de paradigma na medida em que buscavam realizar uma desconstrução do aparato psiquiátrico, entendido como “o conjunto de relações entre instituições/práticas/saberes que se legitimam como científicos, a partir da delimitação de objeto e conceitos aprisionados e redutores da complexidade dos fenômenos” (AMARANTE, 1995a, p.22), propondo sua substituição por outros meios de cuidado e acolhimento que não passassem pelo sintoma e pela doença, mas pela “existência-sofrimento dos sujeitos em sua relação com o corpo social” (AMARANTE, 2002, p. 43).

Costa-Rosa (2004) cita alguns aspectos do modelo asilar que a Reforma Psiquiátrica pretendia superar. Primeiramente, o organograma vertical, cujos campos e espaços eram interditados aos usuários e a gestão referida à competência técnica e setorial predominantes. Pretendia-se ultrapassar ainda as formas de relacionamento da instituição com clientela. O fato de a instituição funcionar como espaço depositário de tutoria alijava o diálogo e a subjetividade dos internados e instituía uma relação marcada pela divisão arbitrária entre loucos e sãos. Quanto à concepção dos efeitos típicos em termos terapêuticos e éticos, observava-se uma hipertrofia do que se denomina “defeitos do tratamento”, como a cronificação e o tamponamento dos sintomas indesejáveis através da contensão e medicalização que era preciso enfrentar.

Ao examinar o processo de desconstrução do manicômio realizado por Franco Basaglia, em Trieste, Barros afirma que (1994, p.53):

Os italianos postulavam a necessidade de um processo em que a loucura pudesse ser redimensionada não para fazer sua apologia, mas para criar condições que permitissem que esse momento de sofrimento existencial e social se modificasse.

Cabe esclarecer alguns conceitos que embasaram a reforma psiquiátrica na Itália, tais como Desinstitucionalização e Reabilitação Psicossocial, antes de prosseguir com a descrição das transformações históricas nesse campo.

Desinstitucionalização, para Rotelli, Leonards e Mauri (2001, p. 29), refere-se a “um trabalho prático de transformação que, a começar pelo manicômio, desmonta a solução institucional existente para desmontar (e remontar) o problema”. Esse processo deve envolver todos os atores no sistema de ação institucional, transformando as relações de poder entre a instituição e os usuários. Consiste em um trabalho que utiliza as energias internas da instituição para desmontá-la, liberando a necessidade de internação, construindo serviços inteiramente substitutivos, responsáveis por responder à totalidade das necessidades de saúde mental de uma população determinada e onde os técnicos enriquecem e aperfeiçoam sua atividade trabalho. Finalmente, trata-se de um processo que não se completa com aprovação de uma lei, mas que prossegue em sua implantação mudando as formas de administrar os recursos públicos para a saúde mental.

No trabalho de desconstrução do manicômio, a transformação é produzida através de gestos elementares: eliminar meios de contenção, restabelecer a relação do indivíduo com o próprio corpo, reconstruir o direito e a capacidade de uso dos objetos pessoais, reconstruir o direito e a capacidade de palavra, eliminar a ergoterapia, abrir as portas, produzir relações, espaços e objetos de interlocução; liberar os sentimentos; restituir os direitos civis eliminando a coação, as tutelas jurídicas e o estatuto de periculosidade; reativar uma base de rendimentos para poder ter acesso aos intercâmbios „sociais‟(ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 1990, p. 32-33). Amarante (1995a, p.49) acrescenta que desinstitucionalizar é muito diferente de desospitalizar. Em síntese, diz respeito a “desmontagem e desconstrução de saberes/práticas/discursos comprometidos com uma objetivação da loucura e sua redução à doença”.

Sem dispensar o saber tradicional da clínica, a psiquiatria dita renovada incorpora outros saberes, outros procedimentos e outras preocupações, compondo um novo paradigma através do conceito de clínica ampliada (TENÓRIO, 2002).

Reabilitação Psicossocial, na mesma direção que a Desinstitucionalização, “seria, então, um processo de reconstrução, um exercício pleno da cidadania e, também, de plena contratualidade nos três grandes cenários: habitat, rede social e trabalho com valor social”. (SARACENO, 2001, p.16). A reabilitação psicossocial não se restringe a mera substituição da desabilitação para a habilitação, mas em:

um conjunto de estratégias orientadas a aumentar as oportunidades de troca de recursos e de afetos, [...] implica na abertura de espaços de negociação para o paciente, para sua família, para a comunidade circundante e para os serviços que se ocupam do paciente (SARACENO, 2001, p. 111-112).

Retomando o percurso histórico, no Brasil, pode-se citar algumas iniciativas reformistas e humanizadoras do manicômio nos anos de 1960 e 1970, como os Ateliers de Imagens do Inconsciente desenvolvidos por Nise da Silveira, no Rio de Janeiro e a comunidade terapêutica, proposta por Ulisses Pernambucano, no Recife. Entretanto, foram a desconstrução da Casa de Saúde Anchieta e criação dos NAPS, em Santos, em 1989 e a inauguração do CAPS Luiz Cerqueira, em São Paulo, no ano de 1986, as primeiras experiências bem sucedidas de desinstitucionalização brasileiras, sendo consideradas equipamentos-síntese do que representavam os ideais da reforma. Tais experiências, entre outros fatores, contribuíram para impulsionar a reforma psiquiátrica em todo Brasil (TENÓRIO, 2002; LUZIO; L‟ABADE, 2006). Observa-se que, nessas experiências, uma articulação política entre a gestão municipal do Partido dos Trabalhadores e o engajamento militante antimanicomial por parte dos trabalhadores que pactuavam não só com os ideais da reforma psiquiátrica, mas com a efetivação do modelo sanitário que o SUS propunha.

Está sendo considerada reforma psiquiátrica o processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas na crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas também, e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação político-social que caracteriza esta mesma conjuntura de redemocratização (AMARANTE, 1995, p. 91). Amarante (1995a) descreveu outros fatores que contribuíram para que a Reforma Psiquiátrica se efetivasse. Primeiramente, o surgimento do Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) no final da década de 70 e o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria realizado na Bahia, no ano de 1978, onde foi possível a organização oficial desse movimento. Outro importante evento que aconteceu no mesmo ano foi o I Congresso Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições, no Rio de Janeiro. Nesse congresso estiveram presentes alguns dos principais mentores da crítica à Psiquiatria Clássica, tais como Franco Basaglia, Felix Guattari, Robert Castel, Irving Goffman. Muitos debates se sucederam a esse Congresso, fazendo com que a influência de Basaglia no pensamento crítico do MTSM passasse a ser indiscutível.

Em 1986, o II Congresso Nacional do MTSM em Bauru/SP promoveu a institucionalização do Movimento de Luta Antimanicomial e sua ampliação com a parceria de associações de usuários e familiares.

A I Conferência Nacional de Saúde Mental, também exerceu papel fundamental nesse processo de transformação ao propor combater a psiquiatrização do social, promover a democratização do acesso aos serviços de saúde mental e priorizar investimentos em serviços extra-hospitalares e multiprofissionais em oposição à tendência hospitalocêntrica (AMARANTE, 1995a).

A segunda metade dos anos de 1980 foi marcada por muitos eventos e acontecimentos políticos que potencializaram a reforma psiquiátrica. Trata-se de um período em que a sociedade brasileira lutava pela construção de um Estado democrático, período muito fecundo tanto para a Reforma Sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde, quanto para a transformação da assistência psiquiátrica.

Da década de 1990, merecem ainda destaque três acontecimentos que contribuíram para a consolidação da Reforma Psiquiátrica: a Declaração de Caracas, que preconizava a superação do modelo hospitalocêntrico e o resgate de direitos da pessoa com transtorno mental no continente americano; a Portaria 224/92 do Ministério da Saúde que estabeleceu novas diretrizes e normas para o financiamento e funcionamento da internação e reconheceu da existência de outros serviços alternativos. Finalmente, a II Conferência Nacional de Saúde Mental, também em 1992, consolida a crítica ao modelo asilar e lança as bases para um novo modelo (BALLARIN; CARVALHO, 2007).

Um grande avanço nesse processo foi a aprovação da Lei 10216, a Lei Paulo Delgado (BRASIL, 2001a). Essencialmente, ela estabelece uma diretriz não asilar para o financiamento público e o ordenamento jurídico da assistência psiquiátrica no país, consolidando a garantia dos direitos dos usuários, assim como a proposta de tratamento prioritariamente em serviços comunitários, dentre os quais destaca-se os Centros de Atenção Psicossocial, os Serviços Residenciais Terapêuticos, os Centros de Convivência e Cooperativa e a implantação de leitos psiquiátricos em Hospitais Gerais. No entanto, não instituiu mecanismos para extinção progressiva dos manicômios conforme previa o projeto original.

O período de 2000-2010 pode ser descrito como uma fase de institucionalização de novas normas e práticas em saúde mental e da expansão da rede substitutiva ao manicômio.

É importante ressaltar que o foco de preocupação inicial da Reforma Psiquiátrica era a transformação da relação da sociedade com a loucura. Embora a Psiquiatria tenha se tornado aliada nos mecanismos de controle e repressão ao uso de drogas desde a década de 1970, a preocupação com o tratamento de usuários de álcool e drogas no âmbito da Reforma Psiquiátrica não se mostrou, a princípio, muito contundente. Essa discussão ocorreu de forma paralela à Reforma Psiquiátrica no âmbito do Ministério da Saúde, conforme será retomado mais adiante.