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Coisa julgada tributária, isonomia, livre-iniciativa e livre-concorrência

CAPÍTULO 4 A NOÇÃO DE COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL

5.6 A COISA JULGADA TRIBUTÁRIA E A AFRONTA AO PRINCÍPIO DA

5.6.1 Coisa julgada tributária, isonomia, livre-iniciativa e livre-concorrência

Já destacamos que uma interessante particularidade que deve ser analisada no estudo da coisa julgada tributária é decorrente da importância que o direito tributário confere ao princípio da isonomia.

Nesse sentido, por exemplo, preocupa os estudiosos do tema a possibilidade de tratamento antiisonômico de contribuintes em razão de haver, quanto a eles, decisões diametralmente opostas sobre um mesmo assunto, ambas formadoras de coisa julgada material.

Em casos tais, por exemplo, pode ocorrer, segundo alguns autores, ofensa aos princípios da livre-iniciativa e da livre concorrência, na medida em que um contribuinte pode ser posto em situação fiscal menos gravosa que um concorrente do seu ramo da atividade. Carlos Henrique Abraão comenta o assunto sob referido ponto de vista, in verbis:

A rigor, a predominância pura e simples da coisa julgada, malgrado o aspecto positivista e naturalista conflitantes, poderia suscitar discussão em torno da livre-iniciativa e da livre-concorrência, na medida em que os contribuintes estariam sujeitos a ditames distintos para situações específicas de realidade igual.414

Mas o próprio autor afirma, posteriormente, que “a conseqüência prática do

413

THEODORO JUNIOR, Humberto. A ação rescisória e o problema da superveniência do julgamento da questão constitucional. Revista de Processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 79, p. 168-170, jul./set., 1995. 414

ABRÃO, Carlos Henrique. Coisa julgada e inconstitucionalidade em matéria tributária. In: MACHADO, Hugo de Brito. Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. São Paulo: Dialética; Fortaleza: ICET, 2006. p. 15.

predomínio da coisa julgada sobre a isonomia vingaria a estabilidade”415. E mais: a possibilidade de que determinados tributos – ou quaisquer outras situações reguladas por lei ou atos normativos – tenham a sua constitucionalidade analisada por vários juízes e tribunais, em sede de controle difuso, é algo com que o nosso ordenamento jurídico convive perfeitamente.

Se o sistema permite a análise da constitucionalidade da lei pelo juiz monocrático e pelos Tribunais de Justiça Federais e Regionais, não se pode cobrar a identidade das decisões e, conseqüentemente, buscar invalidá-las sob o pretexto de afronta ao princípio da livre- concorrência. Ao admitir o controle de constitucionalidade misto, a própria Constituição acenou no sentido de não ser a isonomia um princípio absoluto.416

Ademais, o respeito aos princípios da livre-iniciativa e da livre-concorrência depende, essencialmente, da liberdade que é conferida a cada um417. Cada parte pode buscar o Judiciário para questionar a atuação estatal na seara fiscal. Exigir, todavia, que a cada parte seja concedida a mesma prestação jurisdicional é coisa diversa. O ordenamento jurídico, é verdade, tem buscado atingir esse objetivo. Prova disso é a reforma do processo que tem sido empreendida, sempre visando à “racionalização das demandas de massa”418. Mas a sua consecução plena é algo que se refere ao justo ideal, utópico. E a opção pela coisa julgada, feita pelo nosso sistema processual, contenta-se com o justo possível, razoável.

Os referidos princípios (livre-iniciativa e livre-concorrência) que integram a ordem econômica na Constituição devem ser interpretados de forma a se ajustarem aos demais

415

ABRÃO, Carlos Henrique. Coisa julgada e inconstitucionalidade em matéria tributária. In: MACHADO, Hugo de Brito. Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. São Paulo: Dialética; Fortaleza: ICET, 2006. p. 15.

416

SOUTO, Daniela Silva Guimarães. Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. In: MACHADO, op. cit., p. 30.

417

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 201.

418

Podem ser citados, por exemplos, as súmulas vinculantes (art. 103-A, da CF/88), a repercussão geral do RE (art. 102, § 3º, da CF/88) e o recente artigo 285-A, do Código de Processo Civil. Sobre este dispositivo, cf. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Primeiras impressões sobre o art. 285-A, do CPC: julgamento imediato de processos repetitivos: uma racionalização para as demandas de massa. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo, Dialética, n. 39, p. 93-104, jun., 2006.

valores constitucionais, inclusive com a segurança jurídica. (...).

Pensar de forma diversa levaria ao ponto de imaginar-se que quase toda decisão judicial afrontaria tais princípios, pois isto ocorreria, p. ex., se apenas um contribuinte acionasse a máquina judiciária e dela fosse beneficiado, com o não-pagamento de um tributo. Haveria ainda ofensa à isonomia, pelo mesmo raciocínio.

Ademais, não há norma, até porque iria de encontro à dignidade da pessoa humana e à liberdade de pensamento, que determine a todos os juízes o idêntico julgamento de uma questão jurídica. Somente assim, talvez, se possibilitasse que todos os litigantes sobre um determinado assunto pudessem obter provimentos jurisdicionais iguais. Colhe-se do exposto que a supremacia absoluta de um princípio (isonomia) implicaria necessariamente o desrespeito por completo de outros de mesma hierarquia.

A inexistência no sistema jurídico-processual hodierno de instrumento capaz de garantir a igualdade de todas as decisões judiciais sobre um dado assunto é fruto de uma correta exegese do direito de ação e da garantia do pleno acesso á justiça, que permitem aos jurisdicionados recorrer ao Judiciário quando sentirem lesados ou ameaçados seus direitos.419

Por mais que se tente, sempre se chegará à conclusão inexorável de que “não existe uma única resposta correta a uma questão jurídica posta em debate”420.

Fernando Facury Scaff possui entendimento bastante peculiar a respeito de tema em enfoque. Para o autor, o desrespeito aos princípios da livre-concorrência e da livre-iniciativa constitui fundamento autônomo apto a ensejar a desconstituição da coisa julgada, in verbis:

O princípio da livre-concorrência decorre do princípio da isonomia, e este, pelo seu aspecto fiscal gera o princípio da neutralidade econômica dos tributos, através do qual é vedado efetuar distinções na carga tributária de contribuintes que atuem de forma concorrencial em um mesmo mercado relevante.

Os princípios jurídicos não podem ser aplicados na base do “tudo-ou- nada”, devendo sofrer relativizações. Mesmo o princípio da segurança jurídica, que ampara a coisa julgada, um dos mais importantes de nosso sistema jurídico, deve sofrer mitigação em face da violação do princípio da livre-concorrência, cuja base se encontra na isonomia. Desta forma, havendo decisão do STF em controle concentrado, pela constitucionalidade ou pela inconstitucionalidade de uma norma, esta não pode gerar efeitos no sistema jurídico, mesmo que já tenha sido objeto de uma decisão transitada em julgado por outro órgão

419

SALES, Deborah; LIMA, Thiago Asfor Rocha. Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. In: MACHADO, Hugo de Brito. Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria

tributária. São Paulo: Dialética; Fortaleza: ICET, 2006. p. 41-42.

420

BIM, Eduardo Fortunato. Aspectos da relativização da coisa julgada em matéria tributária: ação rescisória, isonomia e relações continuativas. In: MACHADO, op. cit., p. 81-82. O autor ainda afirma que “isso não significa a inexistência de uma resposta melhor ou de uma absolutamente errada, mas reconhece que: o sistema jurídico é aberto; que não há verdades absolutas; que há mudanças informais no entendimento dos enunciados e que a intersubjetividade do processo exegético e a sua pluralidade impossibilitam a compreensão unitária do direito (...).”

jurisdicional, e mesmo que o prazo de dois anos para a interposição de ação rescisória já tenha escoado. Os que forem onerados em face da quebra do princípio da livre-concorrência (isonomia – neutralidade econômica dos tributos) têm direito ao desfazimento daquela decisão e podem propor uma reclamatória a fim de que o STF faça prevalecer a autoridade de suas decisões.

O mesmo acima referido ocorre com as decisões do STF em controle difuso, sendo que este sistema tornou-se mais aperfeiçoado em razão do advento das súmulas vinculantes.

Enfim, não devem prevalecer distorções na livre-concorrência na hipótese de violação da neutralidade econômica dos tributos, devendo ser desconstituídos os efeitos da coisa julgada visando atingir este desiderato.421

Discordamos, todavia, da proposta do eminente jurista. Primeiro porque, como estamos defendendo ao longo do presente estudo, a coisa julgada não deve ser desprestigiada de forma desarrazoada, admitindo-se a sua rescisão mesmo depois de ultrapassado o prazo para a propositura de ação rescisória. Segundo, porque a solução do autor não é satisfatória: esquece-se do fato de que alguns contribuintes podem simplesmente não procurar o Judiciário, caso em que a distorção permanecerá. Terceiro, porque a solução do autor pressupõe o manejo da reclamação constitucional fundada na garantia de autoridade das decisões do STF, e o próprio Tribunal Maior não admite o uso da reclamatória contra decisões transitadas em julgado, a teor do que dispõe o enunciado nº 735 de sua súmula de jurisprudência predominante.

Livre-concorrência e livre-iniciativa estão baseadas, fundamentalmente, na liberdade de ação, dentro das regras de mercado. Portanto, o recurso ao Judiciário e a conseqüente consecução de um tratamento favorável em relação a alguns concorrentes, ao invés de configurar ofensa aos princípios em questão, demonstram justamente a sua essência.

421

SCAFF, Fernando Facury. Efeitos da coisa julgada em matéria tributária e livre-concorrência. In: MACHADO, Hugo de Brito. Coisa julgada, constitucionalidade e legalidade em matéria tributária. São Paulo: Dialética; Fortaleza: ICET, 2006. p. 105-106.