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2 ANCORAGEM METODOLÓGICA

2.3 COLABORADORAS DA PESQUISA

Antes de apresentar as colaboradoras desta pesquisa, julgamos importante explicitar os espaços políticos nos quais elas se articulam, uma vez que a seleção das colaboradoras levou em consideração o sujeito político feminista que atua no território. Mais do que o sujeito político que luta por terra e território, buscamos os sujeitos que atuam entrelaçadamente na Comissão de Mulheres do STTR de Apodi, na Marcha Mundial das Mulheres (a partir deste ponto MMM) e na Marcha das Margaridas.

A Comissão de Mulheres do STTR de Apodi é composta por dez sócias do STTR. Das dez, uma assume a coordenação da comissão e compõe a diretoria do sindicato. A comissão tem o objetivo de contribuir com a organização de grupos de mulheres das comunidades e dos assentamentos no município, com atividades de auto-organização e fortalecimento da participação política das trabalhadoras rurais em espaços locais e nacionais.

A organização dessa comissão é um dos resultados do 1º Encontro de Trabalhadoras Rurais de Apodi, em 1997. Nesse encontro, foi discutido, como estratégia política das mulheres, a participação política das trabalhadoras rurais no STTR e nas associações locais. Com isso, constituiu-se uma comissão de mulheres para coordenar essa estratégia, que durante três anos construiu forças necessárias para conquistar o direito de ser membro da diretoria do sindicato, com poder de voz e voto nessa instância sindical.

Já no ano 2000, a Comissão de Mulheres, em aliança com outras organizações locais, contribuiu com a construção da primeira ação internacional da MMM na região. A MMM é um movimento feminista internacional que teve origem em 1995, na província de Québec, no Canadá, questionando o neoliberalismo e as bases da violência contra as mulheres. Atualmente, o movimento está presente em mais de 60 países. Quatro eixos orientam sua

atuação: autonomia econômica das mulheres; paz e desmilitarização; bens comuns e o fim da violência contra as mulheres.

Em uma perspectiva de fortalecer alianças com os movimentos sociais para mudar o mundo e a vida das mulheres, “[...] a história da Marcha Mundial das Mulheres está unida a uma dinâmica de leitura da realidade e ação concreta construída no local e sua relação com as demandas internacionais, entendendo que uma atuação não se separa da outra” (DANTAS, 2018, p. 153). A partir da compreensão de que os processos locais não estão desconectados da conjuntura internacional, a MMM se articula com outros movimentos e espaços políticos internacionais antiglobalização de enfrentamento ao capitalismo patriarcal e neoliberal. Na mesma via da articulação entre movimentos, a solidariedade e o internacionalismo são bases da construção da MMM, o que a constitui um movimento permanente no Brasil e em todo o mundo.

No Brasil, a construção da MMM acontece de maneira entrelaçada com a Marcha das Margaridas. Na primeira reunião nacional da MMM, em 1999, foram as mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) que propuseram realizar uma ação das trabalhadoras rurais em adesão à MMM. Essa ação compôs o calendário da campanha internacional “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência sexista” e foi realizada em agosto do ano 2000, na cidade de Brasília. Essa ação das trabalhadoras rurais recebe o nome Marcha das Margaridas em homenagem a uma liderança rural que foi assassinada por latifundiários, em 1983, no estado da Paraíba, por defender os direitos de trabalhadoras e trabalhadores rurais.

A Marcha das Margaridas transformou-se na maior mobilização nacional de mulheres rurais, das águas e das florestas na história do país. É ainda a mais importante mobilização conjunta de mulheres do continente latino-americano, que, em sua 6ª edição (em 2019), contou com a participação de 100 mil mulheres. Entre elas, militantes de 26 países de diferentes continentes.

Feita essa explanação, apresentamos as colaboradoras deste estudo. Elas são trabalhadoras rurais que integram a atual gestão (2017-2020) da Comissão de Mulheres do STTR de Apodi e também as que integraram a gestão 2009-2012. Além de considerar o sujeito político feminista que atua na luta contra as desapropriações de terra e território na Chapada do Apodi norte-rio-grandense, levamos em conta a significativa atuação das colaboradoras a partir de práticas de escrita, sobretudo as que resultaram nas duas mil cartas enviadas à Presidência da República, em novembro de 2011, conforme veremos na análise de dados.

No Quadro 1, apresentamos a caracterização dessas colaboradoras e seus respectivos espaços de atuação política. Vejamos.

Quadro 1 – Caracterização das colaboradoras da pesquisa

Colaboradoras Espaço de atuação política

Lideranças locais Grupos de mulheres, associações de comunidades e assentamentos, STTR de Apodi e Marcha Mundial

das Mulheres Diretoras

Coordenadora da Comissão de Mulheres Ex-coordenadoras

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

Conforme observamos no Quadro 1, além de se organizarem na Comissão de Mulheres do STTR de Apodi, as trabalhadoras rurais atuam em outros espaços políticos.

Essa múltipla atuação fortalece a resistência local e as reverberações nacionais e internacionais da luta, tendo em vista as alianças construídas com movimentos de âmbito

local, nacional e internacional.

Vale salientar que a nomeação das colaboradoras, no âmbito deste trabalho acadêmico, está de acordo com as pesquisas em LA, a saber: a identificação por pseudônimos. Eles foram

escolhidos pelas próprias colaboradoras, a pedido da pesquisadora, durante as oficinas de rememoração e as entrevistas.

Vejamos, no Quadro 2, esses pseudônimos e as respectivas justificativas dadas pelas colaboradoras.

Quadro 2 – Pseudônimos e suas respectivas justificativas

Planta/Pseudônimo Justificativas

Juazeiro11

“Se eu pudesse ser uma planta e gostaria de ser um juazeiro. O juazeiro é uma planta nativa da caatinga. Acho muito interessante quando é no período de verão todas as árvores estão sem nenhuma folha, mas o juazeiro não, ela está lá bem verdinha. Ela acolhe muito os animais nesse período, tanto pela sombra que ela tem quanto pelo fruto que ela dá. Então se eu pudesse ser uma árvore eu queria ser um juazeiro porque no momento que o animais mais precisam ela está pronta para servir a eles. Eu sempre admirei o juazeiro por isso”.

Macambira12

“Eu seria macambira porque ela é uma planta resistente e nos anos de seca ela alimenta os animais, e já salvou até mesmo milhares de pessoas que utilizaram a massa da macambira para fazer cuscuz".

Mastruz13

“Se eu pudesse escolher ser uma planta, era mastruz que eu queria ser. eu sou apaixonada por mastruz, porque desde que me entendo por gente eu admiro muito essa planta. Ela tem muitos benefícios, ela tem. Ela serve para muita coisa, muita coisa mesmo, muitas doenças, para inflamação... as vezes a gente tem um machucado... até para os animais também serve, por exemplo, uma galinha que quebra um pé, ela pode ficar boa com o suco de mastruz. É por isso tudo que eu sou apaixonadinha por mastruz, na minha casa mesmo eu tenho uns três pés de mastruz”.

Angico14

“Se eu pudesse ser representada por uma planta era um angico. Lá na minha comunidade tem um pé de angico e foi lá onde aconteceu as primeiras reuniões de organização da nossa comunidade, assim foi lá que a comunidade nasceu. Lá a gente conversou como ia ser a primeira associação e quem ia ficar ou não no assentamento quando tinha noventa famílias para apenas trinta casas. Foi lá nesse pé de angico o nosso começo. É lá que as crianças da comunidade brincam. E também era lá que o carro do DNOCS parava quando queria saber alguma coisa e a gente corria pra saber o que eles queriam... era lá que as conversas da comunidade sobre o projeto aconteciam”.

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

A ação de escolher um pseudônimo para a pesquisa acabou por mobilizar, nas colaboradoras, a construção de representações discursivas de si, conforme podemos verificar na sequência.

11 Juazeiro é uma planta que pode atingir até 10 metros de altura formando grandes copas. Mesmo em

períodos de seca, ela permanece sempre verde, graças às suas raízes profundas que buscam água no subsolo. Assim, onde existe juazeiro é um indicativo de umidade no local.

12 Macambira é uma planta de grande importância para o ecossistema por acolher outras espécies

vegetais, o que garante a diversidade biológica do ecossistema.

13 Mastruz é uma planta fitoterápica bastante utilizada no Nordeste para o tratamento de gripe,

bronquite, tuberculose, contusões e fraturas.

14 Angico é uma árvore que mede entre 3 e 15 metros de altura, o que favorece seu uso na arborização

de parques, rodovias e praças. Por apresentar rápido crescimento, é utilizada para o reflorestamento de áreas degradadas e de preservação permanente.

“Juazeiro” escolhe para si a representação de uma árvore da Caatinga que é muito resistente à seca: “[...] Acho muito interessante quando é no período de verão todas as árvores estão sem nenhuma folha, mas o juazeiro não, ela está lá bem verdinha”. A colaboradora se representa discursivamente como um lugar de acolhimento e partilha para pessoas e animais. Essa representação de si é muito significativa no processo de luta por terra e território na Chapada do Apodi, uma vez que na resistência e na luta contra o agro e hidronegócio – que com as desapropriações de terra expulsa diversas famílias para se apropriarem da água e da terra para produzir para a agroexportação – é necessário acolher, proteger umas as outras para manter-se na luta, na resistência. Ter entre as(os) lutadoras(es) da Chapada do Apodi trabalhadoras rurais com a compreensão desse acolhimento e então compartilharem os saberes da terra, das sementes crioulas, do clima semiárido e das trocas solidárias é fortalecedor para os indivíduos e grupos que cotidianamente têm que resistir e manter-se na luta para continuarem existindo.

Na linha discursiva de resistência, “Macambira” busca sua representação em uma planta resistente. O fato da macambira, na base de suas folhas acumular água – em uma espécie de tanque –, ela oferecer à fauna local, água, alimento e abrigo. Essa representação de “Macambira” é significativa da luta da Chapada do Apodi, uma vez que a luta que nela se trava é pela proteção e sobrevivência da biodiversidade e das vidas humanas no território. Essa planta com a sua capacidade de abrigar e alimentar outras espécies “[...] já salvou até mesmo milhares de pessoas que utilizaram a massa da macambira para fazer cuscuz”. Essa planta é abrigo e alimento, é vida na Caatinga. As organizações da Chapada do Apodi (STTR, Comissão de Mulheres do STTR, grupos de mulheres, associações comunitárias) são como esse abrigo da macambira para cada trabalhadora e trabalhador que na vida e na luta resistem para continuar existindo, ampliando a luta e a resistência.

Associa-se às noções de acolhimento (“Juazeiro”) e alimento (“Macambira”) a representação de cura feita por “Mastruz” que, desde criança, admira essa planta por suas propriedades medicinais, seja para pessoas ou para animais. Esse reconhecimento e valorização das plantas com potencial curativo (e também preventivo) é bem representativo na Chapada do Apodi, onde as trabalhadoras rurais produzem em seus quintais, junto com hortaliças e frutas uma grande variedade de plantas fitoterápicas que servem para prevenir e curar doenças de baixa complexidade (gripes, alergias, febres, dores de cabeça, problemas intestinais). Essa representação do mastruz demonstra o reconhecimento e a valorização do saber popular do potencial curativo da natureza. Isso é bastante significativo por se apresentar como uma alternativa de resistência a um modelo imposto pela indústria farmacêutica e

farmacológica, que também são empresas interconectadas com o agronegócio, como a Bayer e Monsanto, por exemplo.

Coerente com as representações construídas pelas três anteriores, a colaboradora que escolhe ser representada por “Angico” traz para representar a si própria a árvore angico como um lugar de nascença coletiva, pois “[...] foi lá onde a comunidade nasceu”. Essa concepção de lugar de compartilhamento, de organização e resistência, tendo em vista que é em embaixo dessa árvore que “[...] as crianças da comunidade brincam” e “[...] E também era lá que o carro do DNOCS parava quando queria saber alguma coisa e a gente corria para saber o que eles queriam... era lá que as conversas da comunidade sobre o projeto aconteciam”. “Angico” recupera na representação de si a origem, o cotidiano e a resistência da comunidade, haja vista que foi nos arredores dessa árvore que nasceu a comunidade. Debaixo dessa árvore as crianças brincam e ao redor dela a comunidade continua se organizando, resistindo e lutando para seguir existindo.

As representações de si, construídas a partir das escolhas lexicais de cada uma das quatro trabalhadoras rurais, apresentadas no Quadro 2, evidenciam o entrelaçamento que se dá a partir da vida, do bioma Caatinga, do lugar de moradia, dos conhecimentos e das relações que cada uma estabelece com as plantas do território e com o conjunto da biodiversidade da região. De fato, na porção norte-rio-grandense da Chapada do Apodi, há uma vegetação que acolhe, que alimenta e cura, e há mulheres que juntas resistem, se organizam e lutam pela vida e pela biodiversidade.