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Oficinas de escrita em mutirão: agência coletiva na escrita como prática social

4 LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA NA/PELA CHAPADA DO APOD

4.1 EVENTOS DE LETRAMENTO DE RESISTÊNCIA NA CHAPADA DO APOD

4.1.3 Oficinas de escrita em mutirão: agência coletiva na escrita como prática social

Em Tupi Guarani, po significa mão; tiron, junto. Da união dessas duas palavras temos, em Língua Portuguesa, “mutirão”, que significa ajuda entre membros de determinada comunidade ou, simplesmente, “mãos juntas” (CHIARADIA, 2008). Com a mesma noção de ajuda, trabalho coletivo e ação de mãos dadas do povo Tupi Guarani, são construídos os mutirões de escrita para o envio das duas mil cartas à então Presidenta da República Dilma Rousseff.

Os mutirões nas oficinas de escrita foram coordenados pela Comissão de Mulheres do STTR de Apodi e realizados em comunidades e em assentamentos rurais do município. A ação consistia em reunir as mulheres de cada comunidade e cada assentamento para juntas discutirem o Decreto de 10 de junho de 2011 e as consequências desse documento para a região e para a vida de cada uma e a partir disso construírem propostas de enfrentamento ao projeto do DNOCS.

A partir das informações obtidas nas oficinas de geração de dados, nas sessões de entrevistas e nas notas de campo conseguimos sistematizar um fluxograma com as atividades realizadas durante os mutirões para as oficinas de escrita. Vejamos a Figura 5.

Figura 5 – Etapas do mutirão de escrita

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

As estratégias traçadas durante a realização da oficina de escrita coletiva na sede do STTR de Apodi, cujo propósito foi o de replicação da carta nas comunidades e nos assentamentos de Apodi, constituem uma rede de atividades, sendo que cada nó dessa rede depende de outros nós, o que fortalece a auto-organização das mulheres, afirmando as alternativas coletivas da MMM (FEMINISMO EM MOVIMENTO, 2019).

As práticas orais foram mediadas pelos gêneros programas de rádio, em especial o programa do STTR Notícias do Campo na Rádio AM 1030 Vale do Apodi, e por telefonemas e conversas durante as visitas domiciliares. Esses gêneros cumpriram o propósito de mobilizar as mulheres das comunidades e dos assentamentos para participarem do diálogo escrito com a Presidenta Dilma Rousseff.

Durante a realização do mutirão, as participantes vivenciaram a construção de diferentes práticas de letramento, que foram mediadas por gêneros orais, escritos, verbais e não verbais. Embora o mutirão seja uma ação que tem como meta a replicação da carta, portanto, tem rastros de semelhança com a primeira oficina realizada na sede do STTR de

Apodi, o planejamento do evento adquiriu outros contornos. O tempo disponível para a oficina – que concilia com o trabalho no roçado, no quintal e em casa –, os olhares (as pressões) de moradoras(es) favoráveis às desapropriações e a pouca habilidade de leitura e escrita de algumas participantes são alguns dos elementos que reafirmam que os eventos de letramento são sempre situados e irrepetíveis.

Desse modo, diferentemente da que foi realizada na sede do STTR de Apodi, nas oficinas do mutirão não há a leitura do decreto, possivelmente devido à linguagem demasiadamente técnica que dificultaria a interação das participantes. A leitura foi substituída por uma explicação do documento, feita oralmente pelas coordenadoras da oficina e por lideranças locais que tinham propriedade do conteúdo do decreto. Além disso, para subsidiar a discussão sobre as consequências, que incluía a prática da pulverização aérea e o uso de sementes transgênicas, foi utilizado o documentário “O veneno está na mesa”, produzido em 2011 pelo cineasta Silvio Tendler.

Após as discussões, as coordenadoras socializavam a carta produzida na oficina realizada na sede do STTR para que as participantes tivessem como referência e, a partir disso, escrevessem suas próprias cartas. Esse foi um dos momentos mais significativos do mutirão, pois nessa etapa coube a cada participante escrever a carta de próprio punho, formando então um grande mutirão. Sendo a escrita, nessa atividade, constituinte de uma prática social situada do grupo, em que a solidariedade e a educação popular são horizontes da luta e da vida, o mutirão fortaleceu as potencialidades de cada agente de letramento. Vejamos os excertos a seguir que ilustram esse processo.

(a) Foi um desafio muito grande para as mulheres escreverem essa carta, pois a maioria sabe escrever muito pouco e muitas vezes tínhamos que dizer letra por letra para que todas pudessem expressar em suas próprias palavras, sua luta e indignação contra o projeto.

Excerto extraído de matéria do Blog do Centro Feminista 8 de Março publicada dia 18 de novembro de 2011

(b) /.../ e depois levamos ((refere-se à carta escrita pela Comissão de Mulheres do STTR)) para os assentamentos para outras mulheres escreverem e umas assinarem ((refere-se às mulheres que apenas sabe escrever a assinatura)) /.../ para as que não sabia escrever, a gente lia a carta, escrevia para elas e elas assinavam.

Colaboradora Mastruz. Excerto da entrevista concedida à pesquisadora no dia 30 de abril de 2018.

(c) /.../ a coordenadora ia todo mês para minha comunidade fazer reunião. Aí foi um dia, ela foi e passou essa informação da carta para a gente...

mas nem todas quiseram fazer, não sei porque... e eu fiz muitas para as que não sabia ((refere-se às mulheres que não sabiam escrever))

Colaboradora Angico. Excerto da entrevista concedida à pesquisadora no dia 30 de abril de 2018.

Pode-se perceber, nesses excertos de fala, que para colaborar com as trabalhadoras que não conseguiam escrever sozinhas algumas mulheres assumiam o papel de escribas, o que favoreceu o trabalho coletivo e a solidariedade na comunidade. A escrita das cartas foi estendida até as casas das mulheres que não podiam participar do mutirão. Essa atividade foi assumida pelas lideranças de cada comunidade e assentamento. As práticas de letramento no mutirão de escrita se revestem de pensamento crítico, trabalho coletivo e ação solidária. Com isso, o que poderia representar um problema, um déficit na quantidade de cartas, apresenta-se como uma oportunidade de praticar a solidariedade, a coletividade, reforçando o sentido do mutirão.

Vejamos, na Figura 6, a atividade de encerramento da oficina do mutirão de escrita.

Figura 6 – Participantes da oficina do mutirão de escrita

Fonte: Blog Notícias do Campo <<https://noticiasdocamposttr.blogspot.com/>>

Na Figura 6, dos constituintes visíveis de um evento de letramento, observamos o ambiente, as participantes, os artefatos e as atividades realizadas nesse evento. É manifesto que o evento está ambientado em uma área rural, possivelmente um alpendre de uma

comunidade ou assentamento rural de Apodi. A disposição das participantes, sentadas em círculo tendo, ao centro, os artefatos de escrita sobre uma mesa, sugere os Círculos de Cultura propostos por Freire (1991) nas experiências de alfabetização de adultos em Angicos-RN.

A estratégia de escrever uma carta coletiva, aliada às táticas de cada uma escrever e enviar a sua própria carta, a escolha da cor roxa para o envelope, além de causar um impacto visual, serviu ao propósito de imprimir uma importante simbologia da luta das mulheres. Todos os dias uma pequena remessa de cartas em envelopes de cor roxa chegando ao Palácio do Planalto se reveste de uma representação coletiva. É como se comissões locais de reivindicação e negociação com a Presidenta da República chegassem todos os dias para juntas formarem um coro de duas mil vozes e reforçassem cotidianamente as reivindicações.

Outro artefato que garantiu o envio das cartas foi o selo postal na modalidade Carta Social dos Correios. Vejamos na Figura 7 a versão do selo de Carta Social, utilizado no ano de 2011, para o envio da carta.

Figura 7 – Modelo do selo utilizado nas cartas

Fonte: Acervo digital dos Correios, 2011.19

O serviço Carta Social foi instituído em 1995, sendo consideradas sociais apenas as correspondências em que a(o) remetente é pessoa física e que no verso do envelope contenha a inscrição manuscrita “Carta Social” e pese até dez gramas. Em 2011, para utilizar o serviço, e poder enviar a carta à Presidência da República, cada escrevente pagou o valor de dois centavos (R$ 0,02). O acesso ao serviço, pouco utilizado pela população, por desconhecimento, foi sugerido por uma das escreventes que já conhecia o serviço, o que

reforça que em um evento de letramento o conhecimento prévio das participantes é tão importante quanto os que são construídos durante a realização do evento.

Embora na primeira oficina de escrita, realizada na sede do STTR, a carta tenha sido escrita coletivamente para representar todas as trabalhadoras rurais de Apodi, a Comissão de Mulheres do STTR de Apodi mobilizou as duas mil mulheres de modo que cada uma escrevesse individualmente uma carta de próprio punho, fortalecendo a simbologia do mutirão, de mãos dadas, mãos juntas. O que também fortaleceu a estratégia da Comissão de Mulheres foi o envio das cartas em pequenas remessas, ao invés de remessa única. O fato de todos os dias chegarem envelopes roxos na Secretaria da Presidência da República criou a possibilidade de – a partir das cores, da regularidade, do trabalho de abri-las, de lê-las – construir no Palácio do Planalto durante quatros meses uma memória contínua da Chapada do