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Plenária da Marcha Mundial das Mulheres: das práticas de letramento coletivas à genealogia da carta

4 LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA NA/PELA CHAPADA DO APOD

4.1 EVENTOS DE LETRAMENTO DE RESISTÊNCIA NA CHAPADA DO APOD

4.1.1 Plenária da Marcha Mundial das Mulheres: das práticas de letramento coletivas à genealogia da carta

Consideramos importante, como parte da análise, explicar em que consistem as plenárias da MMM. As plenárias da MMM são reuniões que potencializam reflexões, aprendizados e deliberações coletivas do movimento. Uma plenária é convocada com a finalidade de realizar planejamentos, estudos, debates, mobilizações, entre outras ações, definidas de acordo com a necessidade local ou mesmo a conjuntura nacional ou internacional. Nela, as participantes discutem uma pauta pré-estabelecida na convocatória,

que pode ser reformulada no início da sessão, incorporando outras demandas apresentadas pelas participantes.

As plenárias são importantes fóruns de discussão e de construção de resoluções em que as decisões são tomadas sempre por consensos e nunca através do voto, já que, um dos princípios da MMM é discutir as questões até que se obtenha um consenso (FEMINISMO EM MOVIMENTO, 2019). Quando não há consenso, são formados grupos de trabalho para que estudem e amadureçam a(s) questão(es), que será(ão) retomada(s) em plenárias subsequentes ou em outros fóruns do movimento.

Para estimular a participação ativa e contemplar a diversidade das militantes do movimento – que é composto por mulheres que não dominam o código escrito bem como as que têm escolaridade – várias são as atividades desenvolvidas durante as reuniões, tais como: utilização de músicas, poesias, leituras coletivas, batucada feminista15, uso de palavras de ordem. Essas atividades subsidiam a compreensão coletiva sobre um problema social que envolve esse grupo e estimulam o envolvimento – ou engajamento, conforme definição de Giroux (1986) – das militantes nas discussões. Com essas vivências e a pluralidade das participantes, a compreensão de uma questão pode ser potencializada e a complexidade de determinada resolução minimizada.

Ao final de cada plenária são dados encaminhamentos que orientam o tratamento de questões não resolvidas na reunião. Durante a realização de uma plenária há também os momentos dedicados à avaliação da atividade cujo intuito é o de refletir sobre os pontos positivos e os aspectos que necessitam ser revistos nas próximas reuniões. Após o término do evento, uma equipe de registro e relatoria, em geral escolhida no início da reunião, elabora um relatório com informações sobre a quantidade e a localidade das participantes, os destaques das discussões e os encaminhamentos da plenária. Esse relatório é socializado através dos meios de comunicação (e-mail, aplicativos de mensagens, redes sociais) das militantes.

Uma vez que a realização de uma plenária parte de problemas situados que interferem na vida das militantes, trazendo aspectos da individualidade de cada militante para compor a coletividade, podemos admiti-las enquanto práticas de educação popular.

Dito isso, voltemos a atenção para a plenária da Marcha Mundial das Mulheres, tida nesta pesquisa como evento de letramento de resistência, realizada em julho de 2011, na cidade de Mossoró. O evento foi convocado com o objetivo de preparar a participação das

15 A batucada é um dos instrumentos de luta do movimento e apresenta-se enquanto um espaço

irreverente e permanente de organização, sobretudo das militantes jovens. Além disso, é uma ferramenta que garante visibilidade pública das ações do movimento (MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES, s.d.).

militantes da MMM da região Oeste do RN na quarta Marcha das Margaridas (realizada em agosto de 2011). Participaram do evento mulheres com atuação em diversos espaços políticos, sendo lideranças comunitárias, representantes de movimentos sociais, dirigentes estudantis, sindicalistas, comunicadoras populares, coordenadoras de instituições de assistência técnica. Essa múltipla atuação política nos oferece elementos para afirmamos que a agência cívica das militantes contribuiu para trazer para a plenária uma visão diversa, a partir das diferentes realidades vivenciadas por elas, enriquecendo assim as discussões.

Na plenária foram desenvolvidas diversas práticas de letramento, as quais destacamos: (1) estudo e discussão em grupos dos eixos temáticos da Marcha das Margaridas; (2) socialização das discussões com o apoio de cartazes; (3) debate em plenário e (4) encaminhamentos das deliberações da plenária. Vejamos essas práticas esboçadas na Figura 2.

Figura 2 – Práticas de letramento vivenciadas na plenária

Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

As práticas de letramento evidenciadas na Figura 2 foram subsidiadas pelo artefato de escrita “Caderno de textos para estudos e debates”, produzido pela CONTAG16. Essas práticas se associam em favor da construção coletiva da pauta nacional da Marcha das Margaridas, ao

16 Caderno disponível em “O Transformatório da Marcha das Margaridas”

mesmo tempo que, sendo uma ação situada, favorecem reflexões sobre a necessidade de traçar estratégias e táticas locais de resistência e luta contra as desapropriações de terras na Chapada do Apodi.

A leitura em grupo possibilitou a criação de um ambiente de cooperação que favorece reflexões, discussões e aprendizagens coletivas, solidárias, ou em comunhão, conforme Freire (2014 [1974]). A socialização da síntese das discussões, constituiu um momento de aprendizagem coletiva, pois os grupos escolheram mulheres com perfis diferentes de desenvoltura na oralidade para apresentarem os resultados do trabalho em grupo. Com isso umas vão aprendendo com as outras. Desse modo, depreendemos que a coletividade e a cooperação vivenciadas no evento contribuíram para dar suporte às participantes que tinham pouco ou nenhum domínio sobre a escrita. Isso demonstra que o domínio da escrita não é o mais importante nesse evento de letramento de resistência, e sim a interação e solidariedade entre suas participantes.

A leitura, a discussão em grupo e o debate em plenário foram planejadas com o intuito de as participantes compreenderem as temáticas que estruturavam a 4ª Marcha das Margaridas e, a partir desse entendimento, colaborassem com a construção da pauta nacional. Compreenderam que para contribuir com a reivindicação nacional seria importante discuti-la a partir da realidade local. É em razão dessa compreensão que as militantes da MMM construíram nesse evento uma proposta de enfrentamento às desapropriações de terra na Chapada do Apodi. É nessa plenária da MMM que foi construída a ideia de escrever e enviar duas mil cartas à então Presidenta da República Dilma Rousseff.

O processo da genealogia da carta é sintetizado pela colaboradora Macambira. Vejamos.

Eu lembro que a gente lá em Mossoró ((refere-se à plenária da MMM)) a gente discutindo, a gente disse: que tal a gente escrever uma carta para Dilma. Saiu essa proposta lá, né? (+) e as meninas ((refere-se às técnicas do CF8)) disseram: ah, vamos marcar as oficinas! E fizemos, né? Depois saímos nas comunidades e todas /... / contribuíram, as companheiras que estão aqui e as demais companheiras que não estão aqui também contribuíram naquele momento para a carta acontecer.

Colaboradora Macambira. Excerto de fala na primeira Oficina Revivendo Memórias, realizada no dia 03 de fevereiro de 2018.

Da fala de Macambira depreendemos que, enquanto as participantes do evento constroem as práticas de letramento para agirem coletivamente em uma ação nacional da Marcha das Margaridas, elas também arregimentam ações de resistência e de luta em âmbito local, na Chapada do Apodi. A carta é, portanto, resultado de um conjunto de práticas de

letramento que têm como referência o contexto local e as práticas organizativas da MMM, que, reconhecendo o poder que tem a escrita em uma sociedade grafocêntrica, faz uso da escrita de modo tático e estratégico para fortalecer as lutas locais e consequentemente uma ação nacional das trabalhadoras rurais.

As práticas de letramento de resistência vivenciadas coletivamente na plenária conseguiram articular os saberes de cada militante para, juntas, construírem estratégias de defesa do território. Essas práticas coletivas são constitutivas da experiência de educação popular da MMM na região Oeste do RN. Esse processo coletivo de resistência “[...] amplia possibilidades de esperança” (SANTOS, 2012, p. 87), e a esperança fortalece a luta (e vice- versa).

A experiência de educação popular da MMM na região Oeste é estratégica para mobilizar outras mulheres para a luta e ampliar a militância. Isso favorece o reconhecimento do papel da(o) agente de letramento que pode contribuir para que outras(os) agentes possam fazer leituras críticas dos “[...] contextos para que outros atores que se engajarão em atividades relevantes para o grupo venham a se constituir” (KLEIMAN, 2006, p. 422). Compartilhar e ampliar a compreensão do contexto de ameaças ao território da Chapada do Apodi é um dos encaminhamentos da plenária, o que constitui novos engajamentos na Comissão de Mulheres do STTR, nos assentamentos e nas comunidades rurais de Apodi.