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Com o encerramento do projeto ‘Seleção Rhodia Moda’ as roupas desenvolvidas ao longo da década de 60 não tinham mais função para a empresa. Entretanto, em 1972, a Rhodia entra em contacto com o então diretor do MASP, Pietro Maria Bardi - que alguns anos vinha manifestando a intenção da formação de um núcleo de vestuário e até mesmo a fundação de um museu do costume - para propor a doação das peças das coleções Rhodia para o Museu de Arte de São Paulo.

Nas cartas trocadas com algumas personalidades como senadores e ministros, Bardi salientou a importância da doação das peças no cenário da implementação do museu do costume, como representativas de uma moda essencialmente brasileira.70

Em agosto de 1972, em carta endereçada ao Professor Pietro Bardi, o presidente da Rhodia, no Brasil, formalizou a doação dos vestuários ao acervo do Museu.

“Exmo. Sr.

Professor Pietro Bardi

M.D Diretor do Museu de Arte de São Paulo Prezado Senhor Diretor,

Já há muitos anos o valor de sua obra nos mais diferentes setores das atividades culturais e artísticas não pode passar indiferente aos paulistas ou aos brasileiros.

Sendo hoje a cabeça que dirige um dos maiores patrimônios artísticos da humanidade, sem favor nenhum, podemos creditar-lhe o valor de incansavelmente levantar e compor acervo de caráter plástico, artístico e histórico.

Nos diversos contatos que temos mantido através do Sr. Luiz Antonio Seráphico, podemos verificar quanto o interesse e a curiosidade científica se aliam ao museólogo perfeito que v.s. é.

Como é de seu conhecimento ao longo de quase 15 anos, a Rhodia promoveu excursões, shows e desfiles de lançamento da moda brasileira tanto internamente como no exterior.

68 BONADIO, 2005: 21.

69 BONADIO, 2005: 21.

70 As mencionadas cartas fazem parte da documentação do MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO/

BIBLIOTECA E CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO. Caixa II; Pasta 48: 1972- Doação de costumes criados pela Rhodia.

42 Passada essa fase não seria justo que todo esse material que testemunha o bom gosto artístico do vestuário brasileiro não permanecesse adequadamente conservado para conhecimento e estudo das gerações futuras.

Sabemos quanto é de seu desejo poder propiciar um dia a formação do Museu do Traje no Brasil.

Sabemos também, mercê do esforço estendido por esse Museu, que diversas roupas e outros objetos da década de 20 já foram arrebanhados.

Tendo em vista tudo isto, e de acordo com o que ficou acertado, comunico-lhe oficialmente que a Rhodia transferirá para esse Museu o seu guarda-roupa, montado ao longo dos anos. Cabe-me também comunicar-lhe que em princípio o senhor ministro da educação Jarbas Passarinho deverá nos honrar, fazendo visita especial a São Paulo em fins de setembro, ocasião em que simbolicamente doará a mencionada coleção da Rhodia a esse museu.

Aceite excelentíssimo professor os meus protestos de estima e amizade, Paulo Reis Magalhães.”71

Em ocasião da doação, vários jornais noticiaram o recebimento do acervo por parte do MASP e até mesmo a provável criação do Museu do Costume como era a intenção de Bardi. A edição do Jornal da Tarde, do dia 2 de agosto de 1972, trazia as manchetes: “Lugar de roupa fora da moda: o museu, ao lado de um Picasso” e ainda “Esta é a arte que vestiu a mulher em 1970.”72 As manchetes traziam um parecer de certa incredulidade a respeito do espaço que esse acervo viria a ocupar dentro do museu. Tal não impediu, no entanto, que a doação do acervo e os esforços de Bardi fossem amplamente noticiados.

Em cobertura sobre o evento que formalizou a doação, o jornal Diário de São Paulo do dia 28 de dezembro de 1972, ressaltou os esforços do museu no âmbito da moda “Sendo pioneiro em diversas promoções ligadas ao setor, como a montagem de ateliês de costura, modelagem e tecelagem e a instalação de uma escola de manequins.”73

Fig. 17 - Jornal Diário de São Paulo. Acervo MASP.

71 MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO/ BIBLIOTECA E CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO. Caixa II; Pasta

48: 1972- Doação de costumes criados pela Rhodia. Correspondência, 11 de agosto de 1972.

72 MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO/ BIBLIOTECA E CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO. Caixa II; Pasta

48: 1972- Doação de costumes criados pela Rhodia. Recortes de jornal.

73 MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO/ BIBLIOTECA E CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO.Caixa II; Pasta

43 A despeito de todo empenho de Pietro Maria Bardi, o projeto de fundar um museu do Costume na cidade de São Paulo nunca foi posto em prática, e os ateliês que funcionavam no museu aos poucos foram extintos, frustrando assim a pretensão do diretor no âmbito da moda naquela época.

No total, o MASP recebeu 79 peças das que foram produzidas no âmbito do projeto da Rhodia, pertencendo estas, então, a diferentes coleções. Podemos entender que 79 é um número diminuto tendo em vista que cada coleção contava com uma produção de mais de 80 peças.

Contando com informações da investigação de Bonadio,74 sabemos que na altura da doação das peças ao museu, foi feito, por parte da empresa, um inventário dos trajes produzidos para os desfiles-shows. As peças foram classificadas em ‘históricas’ e ‘não históricas’, sendo consideradas ‘históricas’ as peças fruto da integração com os artistas plásticos criadores das estampas.

Através da análise do material promocional vinculados nas revistas da época (Fig.18) podemos observar que, além das peças produzidas com os tecidos estampados a partir das propostas plásticas dos artistas, as coleções também eram formadas por peças produzidas seguindo tendências de moda em vigor na época, “roupas bonitas no estilo hollywoodiano”, como ressalta Carlos Mauro, ex-gerente de orientação de moda da Rhodia.75

Fig. 18 - Propaganda da coleção ‘Brazilian Look’ de 1963. Acervo Edu Rodrigues.

Tomando como base as informações dos critérios aplicados pela empresa - histórico e não histórico - podemos constatar que, por parte da Rhodia, houve uma pré-seleção de peças com potencial de se transformarem em documentos históricos.

74 BONADIO, 2005: 206.

44 Sant’Anna ainda aponta para o fato dessas peças serem centrais em um contexto de espetáculo, onde dialogavam com música, dança, cenário… abarcando assim informações sobre a atmosfera de um tempo e meio cultural, o que permite que se transformem, dentro do espaço museológico, em objetos-documentos de um período.76

Após a primeira triagem realizada pela própria empresa têxtil, coube a Bardi a seleção dos trajes que fariam parte do acervo de costume do MASP. O então diretor da instituição “deu preferência à linguagem industrial e a um visual moderno,”77 privilegiando assim uma determinada plasticidade. É interessante ponderar os critérios de Bardi em relação a essa seleção, que foi feita com base na visualidade das estampas e a linguagem que essas imprimiam. Quando estudamos a coleção ‘MASP Rhodia’ podemos constatar que as peças selecionadas não contemplam a questão do conjunto - o que entendemos como coleção no âmbito da moda.

Entendemos como coleção de moda um “conjunto de produtos, com harmonia do ponto de vista estético ou comercial.”78 Ao analisarmos as coleções lançadas anualmente pela Rhodia, podemos descartar o aspecto comercial - como já sinalizado anteriormente a empresa não tinha como objetivo colocar essas coleções no mercado - e assim nos determos no aspecto estético. Tomando por princípio que uma “coleção é a reunião ou conjunto de peças de roupa e/ou acessórios que possuem alguma relação entre si,”79 podemos destacar o tema de cada coleção como o ponto de ligação entre as peças e através desse tema observar a unidade estética.

Contudo, ao serem selecionadas apenas algumas peças de cada ano, esse conjunto perdeu unidade de leitura, se é que algum dia a conheceu. As peças que formam o acervo são provenientes de anos distintos com temas diferentes, assim perderam o ponto de ligação entre as peças.

Porém ao serem selecionadas para integrar o acervo ‘MASP Rhodia’, esse conjunto perde a identidade no contexto da coleção. Deixa de ser uma coleção de moda, e passa a ser a um conjunto significativo de objetos dentro de um âmbito de produção artística, em que cada um carrega seu valor individual, o que contribui para o entendimento de um cenário mais alargado.

76 SANT’ANNA, 2010: 124. 77 CARTA, 2015: 18.

78 RECH apud TREPTOW, 2007: 42. 79 GOMES apud TREPTOW, 2007: 43.

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2.1 O contexto histórico e cultural no Brasil dos anos 60.

A pertinência da incorporação da coleção Rhodia no acervo do MASP reside no fato dessa produção têxtil expressar a estética e visualidade da época, onde “cada pintor buscou expressar-se dentro de seu próprio universo decorativo, resultando daí uma verdadeira exposição das tendências artísticas do Brasil, desde o figurativo até o abstrato.”80 Por outro lado, a coleção promoveu o diálogo entre duas manifestações artísticas - as artes plásticas e a moda-, conquistando, nesse sentido, valores únicos de expressão.

Contudo, para compreendemos a relevância desse acervo devemos primeiro observar o contexto de onde o mesmo é oriundo, pois “os anos de 1960 trouxeram uma extraordinária série de experiências artísticas, tanto a partir de influências estrangeiras como por diretrizes do próprio ambiente político, social e artístico.”81

Politicamente, o país vinha de um período de governo ditatorial alargado sob o comando de Getúlio Vargas. Já nos anos pós guerra, experienciou um período democrático sob o governo de Juscelino Kubitschek (1956 à 1961), com o seu plano de metas de 50 anos de progresso em 5 anos de realizações. É dentro desse ideal de desenvolvimento implementado por Juscelino Kubitschek que empresas estrangeiras como a Rhodia ganham espaço de atuação no país, tendo em vista que economicamente o Brasil passava por um processo de rápida industrialização. A inauguração de Brasília, em 1960, e a transferência da capital do país para essa nova cidade traduziu a percepção do momento de transição pelo qual passava o Brasil, transição essa observada na mudança de costumes, nas manifestações culturais e nos modos de consumo.

Com o golpe militar de 1964 e a instauração de uma nova ditadura - que em um primeiro momento fica sob a responsabilidade de uma junta composta pelos ministros da guerra, marinha e aeronáutica - os movimentos populares que apareceram na década anterior começaram a desmantelar-se. Contudo, as manifestações artísticas se mantiveram agora com um caráter mais combativo.

A realidade social e política do Brasil, nesta altura, demandou uma atitude atualizada dos artistas em relação ao seus trabalhos e a concepção de um novo olhar crítico sobre suas obras, num momento em que, como afirma Reis, as discussões conceituais e ideológicas giravam em torno de questões mais amplas como: “nacionalismo, subdesenvolvimento,

80 MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO/ BIBLIOTECA E CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO. Caixa IV;

Pasta 28: 1975- Exposição Rhodia. Texto de P. M. BARDI: “A moda como expressão de cultura: as atividades em busca de uma moda brasileira”.

46 dependência cultural, imperialismo econômico e cultural norte-americano, afirmação de uma identidade nacional, arte experimental e arte popular.”82

Assim, no âmbito das artes, a década de 60 foi um período de experimentação dentro de um processo artístico plural e de debates concernentes as produções de vanguarda e sua relação com o contexto sócio-político.

2.2 Os artistas e suas produções

A multiplicidade de vertentes artísticas identificadas nas estampas da coleção Masp Rhodia nos faz perceber o “quão intensas e díspares eram as compreensões das características do momento,”83 e o quanto foi um período “de intenso debate e experimentação num campo artístico plural.”84 Podemos identificar como características artísticas, dos anos 60, a oposição entre a figuração e abstração que rende uma “tensão entre uma produção artística mais ‘conteudista’ e outra ‘metafísica”85, os desdobramentos das pesquisas relativas ao concretismo e a abstração geométrica, as influências internacionais da arte Pop…

O grande dilema que se colocou no campo das artes plásticas - e que contribuiu para essa pluralidade de movimentos artísticos da década de 1960 - foi a hesitação dos artistas brasileiros ligados ao modernismo da primeira metade do século XX entre aderir às vertentes não figurativas que chegavam ao país, em sequência a segunda guerra mundial, ou manter-se no programa modernista. Face às alternativas, os artistas posicionaram-se de formas diversas. Um grupo procurou manter-se fiel ao nacionalismo figurativo de origem, “transformando-se em cáusticos opositores da não figuração,”86 outro grupo optou em aderir integralmente aos novos movimentos, e ainda outro grupo buscou “encontrar posicionamentos plásticos intermediários e, de alguma maneira problematicamente conciliatórios, do ponto de vista formal, resultando obras de forte interesse artístico e estético.87

Dentro do projeto da Rhodia, artistas88 de vertentes plurais foram convidados a desenvolver estampas. Os artistas gozavam de liberdade para desenvolver seus temas plásticos individuais transportados para o universo do design. O que realmente importava, nesse processo, era a relevância plástica de suas produções artísticas. Os artistas escolhidos eram

82 REIS, 2005: 8. 83 ARRUDA, 2001: 19. 84 FERNANDES, 2007: 29. 85 REIS, 2005: 4. 86 CHIARELLI, 2000:16. 87 CHIARELLI, 2000:16.

88 Para maior compreensão da produção de cada artista envolvido no projeto Rhodia com peças no acervo do

47 nomes que figuravam entre os participantes de bienais e ganhadores de prêmios tanto no cenário nacional como internacional.

É interessante assinalar que as produções artísticas na década de 60 se deram em meio a dualidade de um processo que por um lado buscava a aproximação de tendência artísticas internacionais, porém que tinha por objetivo também não negligenciar as linguagens especificamente nacionais. Dentro do decurso de valorização nacional também se deu o movimento de valorização regionalista, que propiciou uma mudança de foco do eixo Rio de Janeiro e São Paulo, trazendo para a luz a produção de artistas de outras regiões do país, como o nordeste por exemplo.

Dentro da proposta de desenvolvimento de uma ‘moda brasileira’ foi importante trabalhar o que era entendido como conceito de brasilidade. Assim, se deu “uma série de processos de atribuição de formas visuais aos discursos de nacionalidade.”89 Levando em consideração que os conceitos de nacionalidade são entendidos de formas diferentes em cada lugar, a participação de artistas de vários lugares do Brasil foi fundamental para o sucesso da empreitada.

Podemos constatar que alguns dos nomes envolvidos no projeto estavam “muitas vezes imbuídos das discussões artísticas que incluíam a questão da cultura e da arte popular como material criativo de suas obras.”90 Um desses nomes foi Aldemir Martins, artista cearense que como nenhum outro foi capaz de interpretar a brasilidade, retratando a paisagem e o homem do nordeste através do “conhecimento das entranhas emocionais do país.”91 Aldemir Martins assina nove trajes entre os que se encontram hoje no acervo do Masp, sendo o artista com o maior número de peças assinadas remanescentes do projeto da Rhodia. (ver Ap.II F. 5, 7, 8, 27, 28, 29, 33, 35 e 52)

Outros nomes fora do eixo Rio-São Paulo são Francisco Brennand, natural de Recife, que através da suas influências regionais desenvolve seu trabalho dentro de um estilo único, e Genaro de Carvalho, baiano, que tem seu trabalho caracterizado pelo “linearismo de traço grosso como contorno, cores fortes e contrastantes.”92 Outro nome do nordeste foi Gilvan Samico, gravador de Recife que usava as manifestações populares como tema de seu trabalho. Também do Recife era Lula Cardoso Ayres, artista que desenvolveu um trabalho impregnado de folclore e literatura de cordel.

89 NEIRA, 2008: s.p.

90 SANT’ANNA, 2007:1.

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