• Nenhum resultado encontrado

Dos tecidos estampados a peças de moda

90 SANT’ANNA, 2007:1 91 KLINTOWITZ, 1989: 12.

2.3 Dos tecidos estampados a peças de moda

Não foram só artistas responsáveis pela produção das peças da ‘Seleção Rhodia Moda’. Além dos artistas anunciados que criaram as estampas, a Rhodia também convidou costureiros102 de renome para criarem os modelos a partir dos tecidos estampados, o que podemos entender como intuito de reafirmar o potencial do setor produtivo nacional. Para além disso, ter nomes exponenciais no setor da criação de moda, desenhando e criando peças confeccionadas a partir de tecidos de fibras sintética, vinha a demonstrar ao público consumidor que os grandes nomes da moda corroboravam a ideia de que o tecido sintético podia sim, vestir uma mulher elegante.

No decorrer da pesquisa sobre a coleção Rhodia me deparei com a escassez de informação envolvendo a confecção das peças de roupa em si. A ênfase em relação a esse conjunto acaba sempre por recair sobre os autores das estampas.

Em primeiro lugar, se faz importante elucidar o papel desses profissionais, os costureiros - como denominado na época - dentro dessa produção. Nos tempos atuais denominamos aos profissionais responsáveis pela criação e desenvolvimento de moda, estilista ou designer de moda. A denominação costureiro é aplicada ao profissional responsável pelo ato de costurar, não é atribuído a este profissional uma função criativa. A habilidade de costurar geralmente é uma habilidade também requerida ao profissional da criação, contudo ao costureiro da cadeia produtiva da roupa não é requerido a habilidade criativa.

57 Os títulos de estilista, e principalmente o mais recente, designer de moda, passam a ser empregados com a aproximação entre os conceitos do design de moda e os conceitos do design industrial.103 Atribui-se ao design características como: “inovação, confiabilidade, racionalização, evolução tecnológica, padrão estético, rápida percepção da função-uso de produtos, adequação às características sócio-econômicas e culturais do usuário.”104

Ao refletirmos sobre a função atribuída ao profissional denominado costureiro no contexto da produção Rhodia podemos entender que esse não era o profissional responsável pela costura das peças, mas sim, responsável pelo processo criativo, pela concepção do modelo e por fim pela construção da peça, fazendo com que possamos considerar os costureiros da Rhodia como equivalentes aos estilistas e designers da atualidade.

Os nomes envolvidos nessa empreitada são listados de forma recorrente em investigações ou matérias publicitárias sobre a ‘Seleção Rhodia Moda’. No que é concernente às peças do acervo MASP são eles: Alceu Penna, Dener Pamplona, Jorge Farré, José Nunes, José Ronaldo, Júlio Camarero, Sônia Coutinho e Ugo Castellana. Contudo, para além de seus nomes relacionados ao projeto da empresa francesa poucas informações sobre suas vidas e mesmo sobre os seus trabalhos são encontradas.

Com exceção de Alceu Penna, Dener Pamplona e Ugo Castellana, que tem maior exposição de seus trabalhos, os demais nomes envolvidos não renderam informações que colaborassem para o entendimento do desenvolvimento e confecção das peças que hoje encontram-se no museu.

Muito pouco temos registrado sobre o processo relativo à produção das peças. É sabido que o profissional à frente da elaboração dos modelos era Alceu Penna, que foi um dos integrantes fixos da equipe da Rhodia, que trabalhava de forma regular na elaboração e execução dos desfiles e editoriais. Alceu, entre os responsáveis por assinar as criações, não era considerado costureiro, tendo sido um dos pioneiros na ilustração de moda, sendo o autor da secção “As garotas”105 publicada pela revista ‘O Cruzeiro’ de 1938 a 1964 (Fig.26 e 27), que na época se converteu em referência de moda, estilo e comportamento para o público feminino.

103 TREPTOW, 2003: 44.

104 PERRUZZI, 1998: 11.

105 A coluna “As Garotas” publicada pela revista ‘O Cruzeiro’, que também ficou conhecida como “As Garotas

do Alceu” trazia histórias ilustradas que abordavam a vida cotidiana de jovens mulheres de classes média e alta, urbanas. “O enredo gira em torno dos pequenos trajes e dos dotes físicos das bonecas de Penna.[...] Entre as bonecas destacam-se maiôs, chapéus, lenços, sandálias. também se tornou conhecida pela disseminação das tendências de moda pelo ilustrador que também consagrou-se como figurinista”. CAMPOS, 2016: 307

58

Fig. 26 e 27 - Reproduções da coluna “As Garotas” na Revista ‘O Cruzeiro’. Disponível em <www.alceupenna.com>

Alceu Penna também foi figurinista e desenvolveu, além de figurinos para balé e teatro, fantasias de carnaval. Foi também responsável por figurinos para Carmem Miranda durante a turnê da artista nos Estados Unidos, no final da década de 1930. São atribuídas a Alceu Penna a autoria de 11 dos modelos do acervo do Masp e mais 15 de forma colaborativa com outros costureiros: Jorge Farré (2 modelos), Dener Pamplona (1 modelo) e Ugo Castellana (12 modelos). Penna se torna assim o criador de 26 dos modelos do acervo.

Em parceria com Alceu Penna, Ugo Castellana desenvolveu 12 modelos e assina sozinho outros 6. No âmbito da produção da exposição de 2015, no Masp, Castellana concedeu uma entrevista106 onde relata um pouco de sua participação no projeto. Castellana diz que era Lívio Rangan quem determinava que tecido ia ser trabalhado por cada costureiro. Nas palavras de Ugo “era ele (Rangan) quem decidia, porque ele tinha um conhecimento muito grande”. Castellana ainda conta que os costureiros convidados não eram pagos por suas criações, porém aceitavam por ser uma boa oportunidade de propaganda para os envolvidos.

O relato de Ugo Castellana acaba por também desconstruir um entendimento comum sobre esse projeto. Muitas vezes a coleção da Rhodia é descrita como um processo que desenvolveu peças de roupa de forma colaborativa entre artistas plásticos e criadores de moda. Aqui se faz necessário uma reflexão sobre o entendimento dessa colaboração. Castellana declara que: “Nós tínhamos os tecidos que vinham já estampados”, assim desconstruindo a noção que essas peças eram criadas, pensadas e desenvolvidas em conjunto com os autores das estampas.

59 O fato dessa colaboração se dar no aspecto da continuidade - a artista desenvolve a estampa e posteriormente o criador de moda desenvolve a peça- e não de maneira concomitante - artista e criador trabalham em conjunto ao mesmo tempo - não diminui o valor estético dessas peças. Pelo contrário, ao analisarmos algumas delas podemos ressaltar que o exercício de criação, por parte dos autores dos modelos, era ressaltar ao máximo o valor estético das estamparias.

Se faz interessante assinalar que os criadores dos modelos foram responsáveis por solucionar questões de equilíbrio, cores, linhas, volumes, ritmo… questões concernentes a qualquer desenvolvimento artístico. Assim os costureiros atuaram também no campo das artes, conferindo às peças, a partir de suas técnicas, qualidade estética e forma.

As peças da ‘Seleção Rhodia Moda’ contam com poucos exemplares com estampas localizadas.107 A maioria das peças foi desenvolvida a partir de tecidos estampados com o que chamamos estampas corridas ou rotativas108. Em um processo de criação conjunto, a realidade de modelos desenvolvidos para valorizar as estampas ou de estampas desenhadas para servirem aos modelos seria facilmente entendido. Contudo não há registro, documentação ou relato que aponte para esse processo conjunto.

Então cabe aqui recorrermos à análise de algumas peças, no intuito de avaliar a modelagem desenvolvida no sentido de valorizar as estampas.

No modelo assinada por Júlio Camarero (Fig.28) a partir de estampa de Aldemir Martins, podemos perceber como o idealizador da peça posiciona a estampa de maneira a centralizar os elementos compositivos principais no centro da peça. Ao criar a túnica com mangas de inspiração nos quimonos orientais, Camarero ainda posiciona a estampa na “borda” das mangas criando assim um equilíbrio visual no modelo.

Fig. 28 - Blusa quimono de Júlio Camarero e estampa de Aldemir Martins, 1964

107Estampas localizadas: Estampas fixas em determinados locais da peça.

108 Estampas corridas ou rotativas: estampas que representam uma sequência de padrões que preenchem toda a

60 No vestido longo (Fig.29) assinado por Alceu Penna com estampa de Hércules Barsotti, o que chama atenção é a construção da peça cortada em camadas, na qual a estampa é “encaixada” de forma a criar uma sensação de continuidade. O ponto de unificação das linhas que compõem a estampa parte do centro / frente da parte superior do vestido, criando um sentido de expansão. A modelagem da peça com a sobreposição das camadas faz com que a estampa abstrata geométrica de Barsotti adquira um aspecto visual do Op-Art.

Fig. 29 - Vestido longo de Alceu Penna e estampa de Hércules Barsotti, 1966

O vestido de noite com estampa de Gilvan Samico (Fig.30) é resultado da criação em conjunto de Alceu Penna e Ugo Castellana. A opção dos criadores de concentrar na parte superior do vestido o maior volume da estampa em um corte enviesado e drapeado valoriza a silhueta marcando a cintura. Por ser a parte superior construída com modelagem de um ombro só, alonga a silhueta.

O macacão de Alceu Penna para coleção de 1965 (Fig.31) faz uso do recorte princesa da cintura para valorizar uma das formas da estampa. Na peça produzida a partir da estampa de Maria Bonomi (Fig.32), para a coleção de 1968, a modelagem da gola - do vestido curto de corte trapézio - faz uso das linhas da estampa para criar novas formas e detalhes.

61

Fig. 30, 31 e 32 - Vestido longo de Alceu Penna e Ugo Castellana, estampa de Gilvan Samico, 1968. Macacão longo de Alceu Penna, estampa de autor desconhecido, 1965.

Vestido curto trapézio de criador desconhecido, estampa de Maria Bonomi, 1968.

Mesmo sendo Dener Pamplona um dos principais nomes da moda na década de 1960, a coleção Masp Rhodia conta com apenas 4 modelos da autoria do costureiro, 3 assinados só por ele, e um em parceria com Penna. Jorge Farré assina 7 modelos sozinho e 2 com Alceu. José Ronaldo assina 2 modelos e José Nunes, Júlio Camarero e Sônia Coutinho assinam um modelo cada um.

Bonadio salienta que 1965 foi o último ano que as coleções contaram com peças assinadas por costureiros de renome assumindo, a partir dessa data, a função da criação dos modelos a equipe permanente da Rhodia liderada por Alceu Penna com a contribuição de Licínio de Almeida. A autora citada atribui esse fato à expansão do Prêt-à-porter109 em meados

109 Em livre tradução pronto para usar. Prêt-à-porter é a denominação da roupa produzida dentro de uma

determinada organização que busca a melhoria da qualidade da indústria de massa, envolvendo pesquisa de tendência.

62 da década de 1960 e ao aumento do espaço de atuação e aceitação de confecções em grande escala.

No entanto, a coleção ‘Brazilian fashion team’, de 1966, é composta por peças assinadas por Jorge Farré, e a coleção de 1968 por peças assinadas por Ugo Castellano, sozinho ou em parceria com Alceu Penna.

É interessante salientar a importância desse acervo ser composto por peças de roupa e não somente pelos tecidos estampados. Por mais que os tecidos estampados a partir de desenhos desenvolvidos por talentosos artistas plásticos já lhe atribuíssem grande valor estético, é somente quando esse tecido é convertido em roupa que ele passa a ser dotado de “uma identidade cultural, social, nacional”, e essas peças passam assim a ser “testemunhas de sua época.”110

Documentos relacionados