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Não é realmente uma novidade a roupa dentro do espaço museológico. Museus conservam em seus acervos o objeto roupa há muitos anos, e são diversas as circunstâncias que movem esse objeto para essas instituições. As instituições museológicas do século XIX entendiam o objeto roupa por seu caráter etnográfico, e o interesse nesse objeto repousava no conhecimento das identidades étnicas das sociedades. No século seguintes, o viés cultural das artes decorativas veio legitimar a presença da roupa no museu dentro da perspectiva do vestuário enquanto ornamento ou adorno.

120 MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO/ BIBLIOTECA E CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO. Caixa IV;

73 Entendemos também a presença da roupa histórica no museu. O valor desta enquanto artefacto histórico dificilmente é contestado, como é o caso do acervo do Museu Mariano Procópio em Juíz de Fora-MG. Fazem parte do acervo do museu entre outros, o traje da coroação, o fardão da maioridade e o traje do casamento de Dom Pedro II, imperador do Brasil.121 É comum o entendimento do valor da roupa enquanto objeto pessoal de alguma personalidade histórica. Assim, o valor atribuído a esse objeto é remetido a seu proprietário e não repousa sobre o objeto em si, como sendo o objeto ele mesmo o documento.

No entanto, ao longo do século XX, a moda passou a ser estudada por diferentes campos do saber, como a história,122 a filosofia,123 a sociologia124... e a roupa começou a ser estudada enquanto objeto, imagem, conceito, por suas características abstratas e materiais, e por suas relações com as sociedades que as produzem. Neste sentido, a roupa passou a ser entendida como “fenômeno sociocultural [...] que materializa um tempo [...] e nos fornece uma noção ideológica e cultural da sociedade que a criou e consumiu.”125

Em consequência a esse recente entendimento da roupa enquanto indicador de memória podemos constatar o crescente número de narrativas patrimoniais sobre a moda e o protagonismo que a roupa vem alcançando dentro de espaços entendidos como guardiães de memória e responsáveis pela preservação da história e cultura.

3.1 A roupa enquanto objeto-documento

Nomes exponenciais em seus campos de estudo como Simmel e Barthes muito contribuíram para o entendimento da moda não mais como assunto supérfluo, e seus estudos mostraram a moda para além de seu caráter efêmero. Esses autores, entre outros já citados, contribuíram para impulsionar os estudos acerca da moda enquanto conhecimento histórico. A contribuição da moda foi a de incluir a roupa enquanto objeto-documento para os estudos do Homem no tempo.

Os objetos são referências para a delimitação da memória, podendo-nos remeter para um tempo onde este esteve em evidência. Um objeto se converte em objeto-documento quando representa uma experiência transformando-se, assim, em um bem de memória.

O objeto passa a documento no momento que há interesse sobre ele, quando começamos a questionar sobre sua origem, função, importância, sobre seus autores… todas essas 121 PORTELA, 2015: 139. 122 MULLER, 2000; HALLANDER, 1978. 123 SVENDESEN, 2006. 124 LIPOVETSKY, 1989; BARTHES, 1984. 125 BENARUSH, 2009: 2.

74 informações se convertem em valores que atribuímos a esse objeto, que se constitui enquanto documento “a partir do contexto social em que ele se encontra inserido.”126

Assim, as peças desenvolvidas no âmbito do projeto ‘Seleção Rhodia Moda’ podem ser entendidas como objetos-documentos, pois refletem a sociedade e o meio cultural no qual foram desenvolvidas, e despertam interesse sobre sua importância e funcionalidade dentro de um contexto histórico. Essas Roupas se tornam bens de memória ao serem incorporadas pelo MASP enquanto documento de um tempo.

Para além de documentos dentro da narrativa específica do projeto Rhodia - e seu papel cultural nos anos 60 - as peças do acervo MASP também fizeram parte de outras narrativas patrimoniais ao longo dos anos. A participação dessas peças em exposições onde o objetivo não é uma construção patrimonial sobre a moda especificamente, reforça a potencialidade da roupa enquanto objeto-documento de múltiplas narrativas.

As peças fizeram parte das exposições sobre os artistas Hércules Barsotti e Waldemar Cordeiro, sobre o movimento concretista paulistano, e em uma das exposições do contexto das comemorações dos 450 anos da cidade de São Paulo. No início de 2019, o vestido de estampa assinada por Heitor dos Prazeres compôs a exposição ‘O Rio do samba: resistência e reinvenção’, do Museu de Arte do Rio - MAR. O artista Heitor dos Prazeres, que passou a dedicar-se à pintura no fim da década de 30, foi sambista de destaque na cidade do Rio de Janeiro, e trouxe para seu trabalho plástico referências do samba, carnaval e candomblé.

As peças do acervo MASP Rhodia também compuseram exposições onde as narrativas foram desenvolvidas à volta da roupa, como por exemplo a exposição ‘Fashion Passion - 100 anos de moda na oca’ que reforçam a “expansão da comunicação de moda e de sua construção enquanto património cultural”127.

3.2 Além de bem de memória a roupa também guarda memórias.

A roupa só é elevada a condição de documento da cultura material no momento que é colecionada ou guardada por pessoas que tenham vínculos afetivos com estes objetos.128 O colecionismo pode ter várias motivações, entre elas a raridade, antiguidade, autenticidade… a priori temos tendência a guardar o que for bonito e valioso.

No caso de objetos a serem musealizados, que farão parte do acervo, da coleção, de um museu, esses objetos também adentram a instituição por decisão de alguém. No caso das peças

126 FAGUNDES apud FERREIRA, 2015: 4. 127 BENARUSH, 2012: 115.

75 da Rhodia, essa decisão coube ao diretor Pietro Maria Bardi que, em um processo de curadoria, apontou que exemplares daquela coleção tinham capacidade de se tornar documento simbólico daquele determinado período.

Mesmo sendo a roupa um registro histórico que materializa um tempo passado, guardar e colecionar têxteis se coloca como um desafio. Como salienta Stallybrass, “a mágica da roupa está no fato que ela nos recebe.”129 Exatamente por fazerem parte do cotidiano, da vida das pessoas e da sociedade, as roupas também sofrem o ônus do uso, as roupas são frágeis.

Estudar as roupas enquanto artefacto da cultura material corresponde a um estudo arqueológico, onde o objetivo é a compreensão da cultura e costumes de um determinado povo, a partir dos objetos que estes criam e consomem, buscando a valorização da sua história. As roupas revelam mais que formas, cores, volumes, linhas, texturas. As roupas revelam o “envolvimento emocional, corporal e sensorial das pessoas que a usaram.”130Mesmo que concebidas principalmente para os desfiles da FENIT, as roupas que hoje compõe o acervo do MASP, foram usadas pelas modelos do projeto ‘Seleção Rhodia Moda’ em vários eventos relacionados as ações promocionais da Rhodia, o que caracteriza envolvimento sensorial e concede às peças valor de uso.

Enquanto artefacto da cultura material, a roupa é impregnada ela mesmo de memória, e requer uma descrição minuciosa das formas, estilos, qualidade, materiais… e principalmente sobre a condição do objeto como: manchas, acabamentos, ajustes, puídos… Stallybrass ressalta que “os puídos nos cotovelos de uma jaqueta ou numa manga eram chamados de ‘memória’. Esses puídos lembravam o corpo que tinha habitado a vestimenta.”131

A memória que a roupa guarda está nos pequenos sinais de desgaste, nos puídos e marcas de uso que “são evidências de uma história da roupa, sua materialidade e vida.”132

Por tudo estudado acerca das peças no decurso do projeto da Rhodia, podemos vislumbrar a demanda de uso dessas peças: desfiles-shows, apresentações, fotografias, viagens… A condição dessas peças também fazem parte da sua história, e sua interpretação valida o artefacto culturalmente, conferindo-lhe autenticidade, salvaguardando-o do esquecimento e transformando-o em memória.

A observação de Stallybrass corrobora as indicações do departamento de conservação e restauração do MASP que, no âmbito da exposição de 2015, atesta que: “Muitos vestidos

129 STALLYBRASS, 2008: 10. 130 BENARUSH, 2012: 116. 131 STALLYBRASS, 2008: 66. 132 FERREIRA, 2015: 11.

76 possuem um acabamento artesanal, mas que fazem parte da história de cada peça. [...] tratando da coleção de um museu, seria importante preservarmos o máximo possível dessa história.”133

3.3 Museu guardião da memória.

Uma peça de roupa considerada hoje um bem de memória dentro do museu, tem um histórico precedente. Ela passa pela conceção conceitual do criador, é divulgada pela mídia, “apropriada e (re)inventada pelo(s) utente(s) e, finalmente, é descartada do uso, passando, quando adquirida por um museu, a ser indicador de memória de um determinado tempo, espaço e contexto simbólico.”134

A vida do objeto roupa, quando adentra o museu, passa a não ser somente referência da sua história técnica, mas também a ser indicador do seu processo sociocultural, e se torna objeto de património cultural. Dentro do espaço museológico, a roupa perde seu sentido original, deixa de ser objeto utilitário, e sua função passa ao exercício da memória, tornam-se testemunho de sua época.

A seleção de Bardi dos exemplares do projeto Rhodia que viriam a constituir o acervo de costume do MASP - provavelmente respeitou uma ordem estética por parte do diretor - foi um processo de valorização e reconhecimento da autenticidade dessas peças, enquanto significativas e representativas, dentro do processo tanto industrial quanto artístico nacional dos anos 60.

Nas palavras de Lernier sobre as peças com estampas de sua autoria: “Fiz outras roupas, mas tudo ficou perdido [...] como registro e memória essa que tá na coleção do MASP foi que sobrou.”135

Assim ao entrarem no museu essas peças se converteram em memória desse período de moda brasileira, memória essa que ainda está em construção, o que enfatiza ainda mais a necessidade de salvaguarda deste acervo.

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