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CAPÍTULO III: EM BUSCA DO TEATRO FEMINISTA BRASILEIRO

3.1 O teatro feminista no Brasil

3.1.3 Colla e o expressar de sua postura política no teatro

Durante as entrevistas com Colla, realizadas no mês de julho de 2011, perguntei- lhe se é feminista. Ela me diz não saber, pois não sabe o que é uma feminista. Será esta uma resposta que normalmente podemos ouvir quando se pergunta a tantas mulheres sobre o feminismo? Será isto relacionado ao fato de o termo feminista, como já apresentado, ser algo imbuído de sentido pejorativo? Ou ainda, será a própria trajetória histórica do feminismo, com suas contribuições em transformações na organização social, pouco conhecida?

Pelo que se evidencia, a discussão em torno do feminismo no teatro ainda se encontra em processo de difusão no âmbito acadêmico. Observa-se ser ainda recente essa discussão no âmbito acadêmico teatral, e portanto apresenta inúmeros campos a serem explorados, com possibilidades de desencadear reflexões sobre vários aspectos dessa temática. Segundo Andrade e Carvalho (2008), há

[...] um campo em plena expansão para a ação da mulher como difusora e estudiosa dos assuntos teatrais: o campo de ensino e da pesquisa sobre o teatro, a partir da crescente implantação e desenvolvimento de curso de graduação e pós-graduação em artes cênicas no país. A massa crítica resultante de aprofundamento e alargamento dos campos de estudos deverá, certamente, nos próximos anos, desenvolver na comunidade acadêmica e teatral um grupo maior de historiadoras e críticas de teatro,

110 áreas em que a atuação feminina, apesar de bastante representativa, ainda não chega a aparecer hegemônica (Andrade e Carvalho, 2008, p. 32). Verificando as lacunas dessa discussão, proponho a investigação de alguns aspectos, bem como do que está atualmente ocorrendo no que diz respeito às ideias do teatro feminista. Proponho discutir esses assuntos na academia, almejando auxiliar na diluição de preconceitos relacionados ao feminismo, assim como marcar sua presença no teatro. Entendo também ser preciso conhecer/detectar qual é a voz da mulher no teatro brasileiro contemporâneo, dentro da academia, como meio de provocar intervenções, debates e reflexões sobre a história e a crítica do teatro, para (re)ver os cânones, e para legitimar as mulheres como agentes nas produções teatrais.

Feminismo é uma questão ampla. No decorrer das entrevistas com Colla, acima citadas, propus-lhe pensarmos no pressuposto de que o feminismo trata de refletir sobre o ser mulher e sobre o lugar que elas ocupam em nossa sociedade contemporânea, atuando politicamente no intuito de promover a ultrapassagem do regime patriarcal, com compreensão e respeito pelas diferenças. Diferenças essas vistas como complementares e sem juízos de valor, com a busca de equidade e de validade dos direitos humanos para termos uma sociedade mais justa, interrompendo o sexismo e o machismo ditados pelo patriarcado. Dessa forma, sobressair-se-ia o direito de participação e a visibilidade da atuação feminina na tessitura da sociedade.

Em resposta, Colla disse-me que, mais do que refletir sobre a situação, preocupa-se em promover atitudes, em se posicionar e ter voz como uma mulher que vive neste momento atual, que procura escrever teorias reflexivas de suas experiências, e que busca no seu fazer teatral se colocar como mulher que tem seus conflitos. Expõe assim os sentimentos, estados e conflitos de uma mulher que vive neste tempo.

Colla declara: ―acaba que fico muito mais no meu umbigo do que fazendo um

panorama das mulheres‖. No entanto, no decorrer de sua trajetória, encontra e mostra histórias que saem de dentro de seu umbigo e revela mulheres que participam da construção da realidade da sociedade brasileira.

Quando eu fico repassando os espetáculos, eu falo: nossa! Como passa pelo pessoal sempre, mesmo quando é o trabalho da mimese. Se eu pego uma Maroquinha lá trás, no ―Café com queijo‖, doze anos atrás, porque eu escolhi a Maroquinha? Aquela mulher, aquela fragilidade que me identificou com a minha mãe muito forte. Meu irmão

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assistindo falou: ―Nossa, era a mãe que eu vi‖. Nessa você trabalha, faz o que faz e no final volta para o seu umbigo ali . Aí depois vêm as mulheres que vivem na rua com ―Um dia...‖, aí já é outra força, outro visceral, um outro lugar. Chega numa Pao, que é a construção, não só da mimese, mas envolvendo coisas da ação dançada, mais ainda do que o foco da mimese. Vem o ―Você‖ que me leva para as três idades. Então, sendo mulheres eu não fujo disso, ao mesmo tempo não trago a bandeira. Isto está como parte da minha pele.

Como conta Colla, Maroquinha é uma mulher que vive na cidade de Novo Airão, município do Estado do Amazonas, um lugar longe dos centros urbanos de nosso país, onde o povo é quase invisível. Trata-se de uma mulher cujo marido quis matá-la por causa de ciúmes, que teve dois filhos e os perdeu, e que vive triste e sozinha. Com o trabalho de Colla essa mulher torna-se visível e sua história conhecida por muitos.

Vestido rosa, uma menina com rugas e marcas, olhar tímido, voz miúda. Moradora da casa rosa de madeira ao lado da prefeitura. Na geladeira vazia reinava uma lata de leite condensado. Na sala uma rede, o resto eram paredes. [...] Afeição mesmo tem pelo Joãozinho, desde menina, mas casar não pode porque tem o fígado branco e o que acontece nesse caso é que o marido morre. [...] Maroquinha me chegou fortemente através das palavras. Sua narrativa partilhando pedaços da vida foi por onde entrei [...] Sob um abajur verde, sentada numa cadeira de madeira, Dona Maroquinha partilha a história de sua vida no espetáculo Café com Queijo (Colla, 2011, p. 4, artigo não publicado)59.

O olhar de Colla para essa mulher mostra o quanto a sua arte torna-se denunciadora de uma realidade vivida por tantas outras mulheres, na medida em que transforma a existência desses fatos reais, que por ela foram assistidos de perto, em poética. Isso evidencia uma postura política frente à criação de sua arte.

Outra montagem de Colla que apresenta um caráter denunciador da condição da mulher na sociedade é o espetáculo ―Um dia...‖. Colla conta que o espetáculo teve como mote o desejo de dar corpo às situações de trauma. Fez-se mais uma experiência com a

59 O artigo ―Minhas Mulheres‖ de Colla é um material que não se encontra publicado. Faz parte de seus arquivos particulares. No entanto, ela compartilhou-o comigo para a realização desta pesquisa, e por isso o utilizo como referência informativa.

112 mimese corpórea, mas dessa vez a mimese não de um ser individual, mas sim de ―determinado grupo, que os torna semelhantes entre si‖ (Colla, 2006, p. 107). As pessoas investigadas para a realização dessa obra eram moradoras de rua de grandes centos urbanos, São Paulo e Rio de Janeiro.

Tive que redescobrir o contato. Transpor o medo. Elaborei perguntas: qual é seu sonho? (Hoje me parece uma pergunta cruel, mas não é isso que buscamos? A carne exposta?). E fui abrindo feridas. Luciana, Titina, Rosângela, Laura, Beatriz e dezenas de sem nome. Eu tive

tanto sonho, que acabei dormindo e esqueci dos sonhos (Colla, 2011, p. 5, artigo não publicado).

A criação do espetáculo parte de matrizes que surgem de elementos vindos de diferentes pessoas, tornando-as híbridas na composição das personagens. Elementos que vieram de ―seres invisíveis, cobertos pela poeira, pela folha de jornal, caixa de papelão, trapos de pano‖ (Colla, 2006, p. 201). A viagem em busca de pessoas que moram na rua, de suas histórias de vida, ou sub-vidas, de seus sonhos, da loucura e desesperança que passam a habitar esses corpos, tudo é por Colla transformado em poética e estética. Expõe-se a realidade de um povo brasileiro confundido com lixo, e Colla e Hirson, com a direção de Silman, revelam essa realidade em cena.

Não posso deixar de aqui apresentar um impressionante relato de uma moradora de rua, que consta no diário de campo dessa pesquisa de Colla:

[...] quando eu vi estava sendo ‗estrupada‘, até peru na minha bunda estavam enfiando peru na minha bunda. Tavam tentando arrancar meu ânus [...] Eu sinto falta da minha mãe até hoje. [...] Pequenina ele no meu corpo entrado no meu corpo, dando porrada, entrando no meu corpo, levando porrada (Colla, 2006, p. 209).

Colla relata sua experiência com esse espetáculo:

―Um dia...‖ é um espetáculo que incomoda, por isso é até difícil de vender, fala de pessoas que estão na margem da margem, que são excluídas mesmo. Uma vez fomos apresentar e uma pessoa soltou: ―ichiii, já vi isto quinhentas vezes‖. Mas, enfim, cansa mesmo escutar esse discurso, no fim ele veio e disse ―nossa, pegou no estômago‖. Eu gosto desse lugar, mais do que quando falo da bandeira no sentido pejorativo, para mim é isto. Eu vivi algo, li sobre e quando se experimenta na carne é mais potente.

113 Serão essas opções de Colla uma escolha por um teatro político? A meu ver o discurso político faz-se presente com sutileza, mas mostra sua força e veracidade.60 Outro aspecto que se pode observar é que Colla apresenta em cena a quebra dos cânones dramáticos, tanto no tema quanto no processo de criação. Como tema mostra mulheres que vivem em condições de invisibilidade, na margem de nossa sociedade, as quais normalmente não são retratadas nas cenas e nos textos teatrais tradicionais. Quanto à criação, nota-se que o resultado é uma poética que revela a situação vivida por essas mulheres, com uma estética que passa pelo realismo, mas que não segue sua tradicional linearidade. Ao contrário, há uma organização de fragmentos que compõem o enredo do espetáculo, com a apresentação de signos eficazes para mostrar essa realidade.

Averígua-se, portanto, que no trabalho de Colla estão presentes características que correspondem à prática do teatro feminista descrito no Capítulo II. A criação não parte de um texto pronto, mas realiza-se uma dramaturgia que é escrita por mulheres e que passa por mulheres como foco do tema. Anuncia-se o desejo de quem pretende falar em temas que não são encontrados em textos canônicos. Recorre-se a novos modelos metodológicos para criação na cena teatral, em que se enfatiza a presença de mulheres nas artes como sujeitos ativos em produções criativas com qualidade e rigor. Essas produções somente são encaminhadas após controle minucioso por meio de pesquisas precisas em termos metodológicos com aparatos técnicos e poéticos que compõem uma estética particular.

Deve ser ressaltado que, mesmo sem se fazer uso de um discurso feminista mais direto, são tratadas questões da agenda feminista atual. Relacionada às questões de classe, há a exposição em cena de mulheres que se encontram em situações miseráveis, o que, intrinsecamente, leva às questões de gênero, e acaba por gerar a discussão de um espaço representativo de relações sociais por meio de olhares e vozes femininas. Apresenta-se o ter uma voz, com o objetivo de incluir (ou excluir) a multiplicidade e minorias, o que se constitui em um dos casos que, segundo Miranda (2010), desdobrou- se em diferentes contextos culturais. É nesse sentido que se dá o surgimento do trabalho

60 Para maiores informações sobre a experiência da pesquisa e criação dos espetáculos Café com queijo e ―Um dia...‖ consultar Da minha janela vejo... relatos de uma trajetória pessoal de pesquisa no Lume, Colla (2006).

114 criativo daquilo que emerge de si mesma para o processo de composição de elaboração cênica.

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