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CAPÍTULO I : O TABU DO FEMINISMO / CONTRIBUIÇÕES DE MULHERES NA

1.8 Conceito de gênero

É importante esclarecer que se apresenta o conceito de gênero nesta pesquisa por ser um conceito adotado nas discussões feministas, e por ser utilizado como ferramenta nas discussões acadêmicas.

O termo gênero foi introduzido pelo psicanalista Robert Stoller24 no ano de 1963, com a formulação do conceito de que sexo estava relacionado com a biologia (hormônios, genes, sistema nervoso, morfologia) e gênero com a cultura (psicologia,

24 Robert Stoller foi um cientista da Medicina que passou a integrar a área da Psiquiatria. Em seus estudos profere um desafio à teoria de Sigmund Freud em relação às questões biológicas da bissexualidade. Postulava crença na ―feminilidade primaria‖, a qual está na orientação tanto dos tecidos biológicos, quanto a identificação psicológica para o desenvolvimento feminino. Portanto, para esse cientista, a fase inicial da vida do ser humano, se esta não foi conflituosa, contribui para a identidade feminina, para a formação de núcleos de gênero em meninos e meninas, nos quais uma força masculina está presente para cessar a relação simbiótica com a mãe. Para maiores informações consultar Stoller, Robert J,Sex and

48 sociologia). Segundo Piscitelli (2002), tal conceito vem conquistando espaço dentro das discussões feministas de modo acelerado desde os anos 1980, pelo fato de nessa época ocorrer uma efervescência intelectual, marcadamente na categoria dos estudos sobre a mulher, que buscavam instrumentos para fundamentar suas discussões em parâmetros científicos. Isso pode ser verificado nos dizeres de Scott (1998):

Por ―gênero‖, eu me refiro ao discurso sobre a diferença dos sexos. Ele não remete apenas a ideias, mas também a instituições, a estruturas, a práticas cotidianas e a rituais, ou seja, a tudo aquilo que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento de organização do mundo, mesmo se ele não é anterior à organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primária, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é a causa originária a partir da qual a organização social poderia ter derivado; ela é mais uma estrutura social movediça que deve ser ela mesma analisada em seus diferentes contextos históricos (Scott, 1998, p. 15 apud Grossi, 2004, p. 5).

O produto da cultura sobre a biologia não seria a anulação da pessoa, homem ou mulher. Nos estudos sobre a mulher, mas exatamente a construção desse binômio. Nos estudos sobre a mulher, esse conceito tornou-se central na busca de resolver alguns problemas relativos ao pensamento feminista sobre a causa da opressão feminina. Grossi (2004) mostra que algumas autoras, com base nesses parâmetros, sustentam que a questão de gênero é concebida como um imperativo da cultura que molda mulheres e homens através da relação instaurada pelo parentesco, que, entretanto, ainda se sustenta em bases naturais.

Como mostra Adriana Piscitelli (2002), o conceito de gênero oferece um novo olhar sobre a realidade, situando as distinções entre características consideradas femininas e masculinas no cerne das hierarquias presentes no âmbito social. Houve, portanto, um percurso no qual as imbricações entre a teoria social e os interesses da agenda feminista se retroalimentaram, de modo a se desenvolver e se reformular o conceito de gênero. Por conseguinte, o conceito de gênero tem se difundido notavelmente na teoria social, de modo que, relacionado com a diferença sexual, apresenta o caráter de ser relativamente cultural. Segundo a autora,

Nessa perspectiva, os indivíduos ocupam posições na sociedade, e o desempenho de seus papéis nessa posição é determinado por normas e regras sociais, assim como pelo desempenho que outros fazem de seus papéis. A maneira do teatro, esta perspectiva assume que o desempenho dos papéis resulta das prescrições sociais e do

49 comportamento dos outros, e que as variações individuais na atuação se expressam dentro do quadro criado por estes fatores (Piscitelli, 2002, p. 22).

As feministas da Segunda Onda que começaram a desenvolver suas reflexões no decorrer dos anos 1960, segundo Piscitelli (2002), criaram o conceito de gênero ao se referirem às diferenças entre mulheres e homens na exposição de personalidade e comportamento, sendo o termo empregado na ideia de constituição social, sobretudo como referência a formas femininas e masculinas dentro da linguagem. Segundo Linda Nicholson (2000), professora de História da Washington University, nesse contexto o conceito de gênero foi introduzido nos estudos feministas para suplementar o termo sexo e não para substituí-lo. Assim, ―a aceitação feminista dessas proposições significava que o sexo ainda mantinha um papel importante: o de provedor do lugar onde gênero seria supostamente construído‖ (Nicholson, 2000, p. 10).

No Brasil, como mostra Piscitelli (2002), os estudos sobre as relações de gênero iniciaram-se nos anos 1970 e 1980, tendo como foco a condição problemática da mulher na sociedade. Segundo Mirian Grossi (2004), os estudos de gênero são uma das consequências das lutas libertárias dos anos 1960.

Assim, o conceito de gênero para Piscitelli (2002), em acordo com Grossi (2004), parte do pressuposto da atenção a tudo o que é social, cultural e historicamente determinado, e tem atualmente se difundido na teoria social. Não se edifica sobre as diferenças sexuais, mas como uma categoria que auxilia na compreensão dessa diferença como possibilidade de análise.

O conceito de gênero trouxe instigantes investigações que geraram desdobramentos em seu emprego metodológico e pragmático, como se observa nos dizeres de Grossi:

[...] sexo é uma categoria que ilustra a diferença biológica entre homens e mulheres; que gênero é um conceito que remete à construção cultural coletiva dos atributos de masculinidade e feminilidade (que nomeamos de papéis sexuais); que identidade de gênero é uma categoria pertinente para pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura determinada e que sexualidade é um conceito contemporâneo para se referir ao campo das práticas e sentimentos ligados à atividade sexual dos indivíduos (Grossi, 2004, p. 5).

Nos estudos sobre a mulher o conceito de gênero faz-se frequente. Há variações entre as vertentes com relação a questões epistemológicas, e variações ocorrem também quanto ao uso do termo. Dentre elas há o uso do conceito de gênero em oposição ao

50 termo sexo, no sentido da descrição do que é socialmente construído em oposição ao que é biologicamente dado.

Como afirma Nicholson (2000) há uma desconstrução dos significados dos conceitos centrais na crítica feminista: gênero e sexo. Gênero refere-se à personalidade e ao comportamento, não ao corpo como ponto central da discussão, diferentemente do conceito de sexo, ligado ao corpo. Outro modo de discutir o conceito de gênero relaciona-se ao seu uso como referência para a construção social que direciona o olhar para a distinção entre o feminino e o masculino, na qual se incluem os processos de construção social tanto na formação da personalidade e comportamento, quanto no modo como o corpo é apresentado e percebido.

Nicholson (2000) discute também o conceito de ―fundacionalismo biológico‖, o qual carrega um pressuposto de diferença entre uma base biológica fixa e uma superestrutura relativamente flexível. Aqui, os dados da biologia coexistem com aspectos da personalidade e do comportamento, mas a relação entre eles é acidental. Isso leva à reflexão sobre a identidade sexual, que não é compreendida em termos genuinamente fisiológicos, mas na construção da diferença sexual, na qual é possível reconhecer a diferença entre mulheres em seus contextos específicos, tendo como referência a intersecção entre gênero, raça e classe. Nesse sentido, segundo Piscitelli (2002),

[...] trata-se de uma ideia de que a mulher, atenta à historicidade, não tem um sentido definido. Isto é, seu sentido não é encontrado através da elucidação de uma característica especifica, mas através da elaboração de uma complexa rede de características que não podem ser pressupostas, mas descobertas (Piscitelli, 2002, p. 35).

As discussões desenvolvidas ao longo dos anos sobre feminismo e sobre gênero, e a relação de ambas com a discussão sobre sexo, segundo algumas autoras como Linda Nicholson, Claudia de Lima Costa e Adriana Piscitelli, - as duas últimas com contribuições no contexto brasileiro através de suas experiências - de uma forma ou de outra atualmente acabam por limitar ou problematizar o desenvolvimento das questões da mulher na sociedade contemporânea. Assim, as autoras propõem a formulação de um projeto político feminista, como novo caminho a ser percorrido, como também pensar a ―re-criação da categoria mulher‖ (Piscitelli, 2002, p. 36).

Essas autoras propõem uma tentativa de compatibilizar as críticas ao essencialismo nas suas variadas configurações: a humanista, a universalista e a

51 racionalista. De acordo com as duas brasileiras, o objetivo é criar articulações de diferentes maneiras, mediando os diversos feminismos. Propõem, portanto, que numa ação, sobretudo de categoria política, permita-se o reconhecimento de diferenças entre mulheres e o mapeamento de suas similaridades, viabilizando uma prática política de coalizão a ser encaminhada. Segundo Piscitelli (2002), trata-se de políticas compostas por listas de reivindicações relativas às diferentes necessidades dos grupos que constituem em transitoriedade a coalizão:

[...] trata-se da negação epistemológica de qualquer tipo de essência à mulher. Trata-se, também, da possibilidade de teorizar com mais destreza as complexas e fluidas relações de tecnologia de poder. Mas, paradoxalmente no que se refere à construção de conhecimento, a insistência na re-criação da categoria mulher abandona a utilização do gênero (Piscitelli, 2002, p. 36).

Verificando as configurações do movimento feminista, Piscitelli (2002) afirma que há descompasso entre o processo de ativismo e as formulações teóricas, apontando que se trata de ações diferenciadas, na medida em que estão sujeitas a operacionalizar conceitos ou categorias já abarcados pela interface dos interesses da agenda feminista, da teoria social do gênero. Esses interesses não abarcam certos critérios, o que a autora avalia de ―utilidade‖ política, de modo que não mais contribui com o desenvolvimento do pensamento feminista. Sugere para tal contexto a reavaliação da ―re-criação da categoria mulher‖ esta se situará atrelada às teorias sociais.

O conceito de gênero permite teorizar com maior desenvoltura em torno das complexas e fluidas relações e tecnologias de poder. Costa (1998) afirma que esse conceito se concentra na organização do pensamento da relação entre homem e mulher, mas não se aprofunda nas relações de poder que se estruturam no sistema de desigualdade e opressão. Costa (1998) sustenta ainda que os conceitos de gênero e de feminismo vincularam-se a alguns excessos e que, com a adoção de posturas indiscriminadas, as diferenças deram vazão a uma variedade de feminismos (feminismo cultural, humanista, marxista, socialista, psicanalítico, radical, lésbico, negro, pós-estruturalista, do Terceiro Mundo, etc.).

Para a autora, trata-se de discutir a ideia de que o conceito de gênero não pode ser cristalizado em uma posição singular, o que sugere o retorno à ―noção de mulher‖ (Costa, 1998, p. 138). Em sua proposta, Costa esclarece que o que está em jogo é uma definição na ampla gama de posições políticas no contexto brasileiro. Assim, propõe

52 que a posição política ocorra de modo que não corresponda a uma essência ontológica, nem mesmo no sentindo restrito da mulher como essencialista.

Quando peço um retorno à noção de mulher como categoria política (em vez do conceito de gênero transformado em masculinidade) quero simplesmente relembrar o fato de que a ―mulher‖ é uma categoria heterogênea, construída historicamente por discursos e práticas variadas, sobre os quais repousa o movimento feminista. Dependendo do contexto conjuntural e das exigências políticas, esta categoria é usada para articular as mulheres politicamente. [...] é evidente para o feminismo nos tempos atuais: que a história e o significado de uma categoria deve ser entendida à luz das histórias e significados das outras categorias da identidade (classe, raça, etnia, sexualidade, nacionalidade, etc) (Costa, 1998, p. 138).

Os termos feminismo e teorias feministas, pela perspectiva de Costa (1998), constituem conceitos que muitas estudiosas das áreas científicas adotaram justamente como meio de encaminharem estudos de gênero, com a intenção de trazerem maior rigor às pesquisas científicas, de modo a conquistarem espaço dentro do cânone acadêmico. A autora argumenta ainda que falar de gênero em vez de mulher também dava mais status, angariando méritos para as pesquisadoras, o que as tirava do gueto em que se encontravam para discutirem os estudos sobre a mulher. De fato a criação do termo e sua problematização estão longe de encontrarem um terreno estável. Os escritos de filosofas da década de 1990, como Judith Butler, em sua obra ―Problemas de Gênero‖ (2008) aplicaram ainda mais essa ideia enquanto termo.

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