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CAPÍTULO III: EM BUSCA DO TEATRO FEMINISTA BRASILEIRO

3.1 O teatro feminista no Brasil

3.1.4 Imprimindo a voz

[...] o quão difícil, e nada simples, é descobrir a própria voz.

(Cris Colla)

A busca da impressão de sua voz de mulher no teatro está presente no discurso de Colla, em Da minha janela vejo ... uma trajetória pessoal de pesquisa no Lume (2006), e em sua tese Caminhante, não há caminho. Só rastros (2010, não publicada), em que se propõe a escrever, mesmo que academicamente, rompendo com os cânones e anunciando a sua voz. Nessas obras podemos verificar que existe uma escrita rigorosa, vigorosa, e com paixão e muita poesia ao descrever seus aprendizados técnicos. Colla abre seus diários de bordo como atriz e compartilha com seus possíveis leitores, seus aprendizados, suas angústias, e seus desafios e encantos de mulher que escolhe a arte teatral como ofício, sendo o teatro o campo onde acaba por se revelar. Mostra, a seu modo, a forma teórica da trajetória de sua prática e de sua ideologia no teatro.

Revivendo na lembrança – e somente na lembrança, porque a vivência dos fatos só nos é permitida uma vez, cabendo aos descontentes a busca do responsável pela imposição da regra, eu mesma já o busquei por diversas vezes [...] Reafirmar o desejo e fazer a escolha [...] Fui em busca de mim mesma (Colla, 2006, p. 62).

Fugindo dos moldes propostos para a linguagem de um teórico canônico que discute sobre o oficio da arte de atuação, sua escrita é a impressão do processo de busca para encontrar qual é a sua voz, e por isso usa uma linguagem mais pessoal: ―O que me

levou a um lugar mais poético, que trabalha com imagens‖. Colla mostra no diário de

sua trajetória os desafios e conquistas no decorrer de seu processo de aprendizado técnico da arte de ser atriz.

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Para mim essa expressão e essa voz estão em tudo que se faz; no que se elege no cotidiano da vida é uma cadeia imensa; além da arte que escolhemos fazer porque ela abarca o tocar neste sensível do meu e do outro, seja por rejeição ou atração, mas ela toca.

Ela realiza uma incessante pesquisa sobre si mesma, utilizando ferramentas técnicas que dinamizam as potencialidades físicas, mexem em camadas internas intramusculares, e produzem diferentes e pulsantes fluxos de energia em movimentos contínuos, que aguçam a percepção corpórea sensorial em sua totalidade. Ativa o contato consigo mesma, o que manifesta o seu humano em camadas psicofísicas de profundidade, tendo por efeito o revelar-se61.

Em busca de sua voz e de sua impressão em cena e na escrita, Colla propõe defender uma tese de doutoramento apresentando academicamente a criação de um espetáculo solo, de modo que reflexão e processo caminhem juntos. Novamente há a abertura do diário da atriz, agora sobre seu processo de investigação individual em profundidade. Sua singularidade revela-se e imprime-se neste solo:

Experiência enquanto uma travessia que envolve perigo, porque ambiciona romper fronteiras, situar-se no espaço vulnerável e ir além, até o fim, no limite possível para que a transformação aconteça. Vida e morte como possibilidade de renascimento. (Colla, 2010, p. 26). Os registros de seus procedimentos técnicos e poéticos da criação vão sendo coloridos com sua escrita acadêmica cheia de poesia. Literalmente coloridos, pois Vermelho, Amarelo, Lilás e Azul são os títulos dados à criação do espetáculo-tese ―Caminhante, não há caminhos, só rastros‖ (2010).

A criação do solo ―Você‖ vem depois de uma longa trajetória de trabalho em grupo. Um trabalho no qual Colla se compromete a desafiar seus lugares de atrito e se revelar como ser humana por intermédio de sua criação cênica.

Eu numa trajetória de vinte anos de trabalho construindo um espetáculo, como meu primeiro solo. Aí tem desafios muito precisos, enquanto atriz estar em cena sozinha, trabalhando elementos que para mim não são lugares que eu circulo fácil; é um lugar de desafio, mas também há lugares que eu me apoio mais tranquilos, que são

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consequências em colheitas de trabalhos. Mas são lugares de desafios dentro do espetáculo.

Por que um solo? Colla, não consegue dar uma resposta pontual para tal desejo. Mas o solo é seu desejo neste momento de sua trajetória como atriz. Desejo, muitas vezes, não se explica em palavras, apenas se sente e se põe a realizar. Trata-se somente do momento de expressar a si mesma, de vivenciar a experiência de sua autorrelação em um processo de criação e mostrar em cena suas particularidades. No entanto, Nerina Dip em sua pesquisa de mestrado sobre solo considera que:

[...] o solo como expressão de um ser humano que se coloca na frente dos outros, supõe uma distancia reflexiva do indivíduo com relação ao seu entorno. Distância fundamental para a construção da história e da cultura. O ato simples de assumir o solo não pressupõe intento de desintegração, senão uma vontade de afastamento transitório, com a finalidade de se comunicar, engajar-se socialmente no seu ato solitário (Dip, 2005, p. 97).

O que está em jogo, no caso de Colla, é criar um espetáculo que se fundamente em sua autobiografia, nas histórias de suas experiências pessoais e na poesia de suas memórias de infância. Criar um espetáculo que tenha por tema o seu universo transposto em uma poética que mostra sua singularidade manifestada em sua estética.

Quando se faz parte, há tantos anos, de um grupo com a força do Lume, chega-se a um momento em que você se pergunta que é e qual a sua contribuição dentro desse todo. Pergunta besta, a resposta talvez não modifique em nada o seu fazer artístico, afinal ele é fruto desse todo, mas essa inquietação passa a rondar, correndo paralelo. Não se trata de angústia, ou sentimento de perda de identidade, é apenas desejo, mais um desafio a ser transposto (Colla, 2010, p. 30).

As observações de Colla na citação acima possuem correspondência com a ideia exposta por Dip, pois foram expressas em um momento transitório de sua vida em que se expõe como indivídua perante a sociedade. Enfatiza ainda, para a criação desse espetáculo, a importância de imprimir não somente sua voz, mas a sua história de mulher e das mulheres que se fizeram e se fazem presentes em sua vida, trazendo como tema a velhice, a idade jovem e madura, e a infância.

117 [...] as três idades têm o fio do feminino absolutamente ligado. Mas eu não persigo isto

como uma bandeira, isto faz parte do meu olhar para as coisas na minha maneira de trabalhar. Isto faz parte da minha pele.

Aqui faço um paralelo com a proposta de Dolan (1988), em que discorre sobre o teatro feminista como um meio de discutir questões das experiências da mulher e a ideologia subjacente às relações sociais implicadas, assim como a quebra dos moldes canônicos nos procedimentos de criação. Esses fatos encontram-se presentes na obra ―Você‖ de Colla, já que nela projeta um universo particular de suas experiências de mulher, bem como das mulheres de sua vida, trazidas da memória de sua infância, sempre em uma linguagem poética transposta para a cena de modo nada literal.

dia de chuva

na roça, em dia de trovoada, a vó botava a mãe e seus irmãos embaixo da mesa da cozinha e rezava pedindo proteção.

na cidade, em dia de trovoada a mãe me trancava no quarto escuro, espelho coberto, eletricidade desligada.

e rezava, pedindo proteção.

eu, em dia de trovoada, olho pro céu e penso na mãe e na vó. e rezo pedindo proteção. (Colla, 2010, p. 84)

Como se observa, além de abordar o tema sobre suas mulheres, Colla elege suas próprias poesias para a criação dramatúrgica; não parte de um texto concebido a priori. Contudo, propõe-se a ampliar suas capacidades criadoras agregando estratégias que passam por suas pesquisas técnicas pessoais de criação para a composição de sua própria encenação. Supostamente, descontrói o convencionalismo do teatro canônico e, consequentemente, faz a revisão dos códigos envolvidos. Este é outro aspecto que se correlaciona com a proposta do teatro feminista.

Cris, mulher com as inquietações daquele momento, desde o quero escrever sobre a minha infância, minhas memorias, as mulheres que passaram pela minha vida, minha avó, minha mãe. Que lugar sensível é este que eu quero fuçar e partilhar?

Colla leva a cabo a proposta de realizar um ―mergulho em profundidade‖, pois,

além do tema vir de seu universo particular, da intimidade de suas memórias, propõe-se a realizar uma pesquisa sobre si mesma em um procedimento técnico que lhe possibilite

118 ampliar suas possibilidades e experiências em ―águas mais turvas‖, o que está de acordo com seus dizeres: ―sinto que o trabalho solo é algo como o verdadeiro trabalho pessoal‖ (Colla, 2011, p. 39). Dá-se a busca de sua ‗dança pessoal‘ para ser transformada em espetáculo. Colla quer descobrir sua singularidade, em meio à linguagem dramatúrgica, assim como a singularidade de sua linguagem corpórea, que constrói o espaço cênico do espetáculo. Assim afirma ela:

E é em busca da compreensão dessa técnica que me dirijo no presente projeto. Depois de tantos anos de pesquisa, tornou-se urgente vivenciar um novo desafio, colocar-me novamente em situação de risco, experimentar um processo prático de pesquisa que conduza a uma ressignificação de meus códigos corporais e à ampliação dos mesmos. Uma experiência. Pretendo que essa seja minha narrativa poética-prática (Colla, 2010, p. 31).

Nessa experiência solo, Colla elege Tadashi Endo62 como diretor para compartilhar a caminhada e acompanhá-la nos desafios da criação do espetáculo. Ela declara que o desejo dessa escolha ―nasce pela possibilidade de troca que este encontro pode propiciar‖ (Colla, 2011, p. 39). Sua autoria como atriz-compositora tem relevância quando em diálogo com a direção de Tadashi Endo. Embora saiba aonde deseja chegar, sabe também que precisa de ajuda para percorrer os caminhos, já que de antemão reconhece não ser fácil a caminhada. Ela tem clareza de seus desejos, mas sabe que precisa do olhar de fora de alguém que lhe ofereça confiança e tenha uma percepção aguçada e sensível, um olhar afiado, tanto para os aparatos dos procedimentos técnicos, quanto para a perceptividade necessária para ajudá-la a encontrar sua poética.

[...] quero caminhar com minhas próprias pernas e dividir a decisão de que trilha tomaremos. Não quero ser levada no colo ou ter as pernas tolhidas. Quero ser parte, ou melhor, quero ser inteira. [...] como ser inteira na parte que me cabe? (Colla, 2010, p. 39).

A referência inicial de Colla para o ―mergulho em profundidade‖ foi a ‗dança pessoal‘, pesquisa realizada pelo grupo Lume. No entanto, Colla não vivenciará este

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Segundo as informações de Colla (2010), Tadashi Endo é um ator-bailarino, que passou por experiências do teatro japonês tradicional, mas que desenvolveu suas pesquisas como artista na linguagem Butoh, tendo como referência direta Kazuo Ohno. ―Ao longo de seus 60 anos de vida, Tadashi definiu seu caminho na dança no que ele chama de Butoh-Ma (estar entre)‖. Dirigiu os seguintes espetáculos do Lume: Shi-zen 7 cuias, Sopro e ―Você‖.

119 olhar particular. Tadashi Endo é a pessoa em quem Colla confia para ser seu cúmplice e olhá-la neste desnudar-se e encontrar-se com sua ‗dança pessoal‘, para assim realizar a concretização da criação de seu solo. Além do tema que emerge de sua intimidade, a composição dramatúrgica corporal do espetáculo também apresenta características que exigem a descoberta de sua singularidade corpórea, o que é um desafio e ao mesmo tempo um convite para a vivência de experiências mais intensas. Conforme Colla mesmo salienta, isso a leva a elaborar ―um processo investigativo que permita colocar- me em situação de risco‖ (Colla, 2010, p. 26).

Em outros termos, quando escolhe a presença de Tadashi Endo, já sabe da importância do olhar de fora, aguçado e exclusivo, para descortinar e encontrar a ‗dança pessoal‘, sendo este um ponto essencial no seu processo criativo. E o olhar de Endo vai conduzi-la a ultrapassar limites, reconhecer suas fragilidades, potencializar suas capacidades criadoras, e vai estimulá-la a investigar as profundidades de sua corporeidade até encontrar sua própria expressão, mesmo que para tal encontro tenha que deparar com circunstâncias críticas e de crises. Todavia, deve-se considerar o fato de que crises estão normalmente presentes em todos os processos criadores.

Tadashi, o encontro foi com ele e o tempo inteiro ele era meu parceiro. Alguém que me

desbastava, a ponto de eu pensar o porquê ele está trabalhando comigo, não sou nada, porra nenhuma. Porque o que é básico eu não tenho, não consigo responder a isto. Só que ao mesmo tempo em que me fazia isto, ele me dava a cordinha, me emprestava a chave, alguma coisa para me auxiliar a sair daquilo. Porque não é só mergulhar, ver e listar o que não tenho e ser só o desafio. Não, é preciso ser construído algo com isto. Nesse lugar que acho que é o mergulho em profundidade, mas é preciso sair para a luz.

Na convivência com Tadashi Endo Colla conheceu o Butoh (técnica japonesa de dança). Ao entrar em contato com esse procedimento, sabia que ali se oferecia algo que considerava precioso, pois é uma forma de criação que trabalha com muitas imagens, e exige um determinado tempo para sua construção o que lhe trazia prazer em realizar. Ao perceber semelhanças com a ‗dança pessoal‘, Colla estabeleceu uma relação direta com a metodologia de pesquisa dessa técnica. Segundo ela mesma, sua proposta para criação desse solo não era ser literal. Portanto, o caminho metodológico de criação envolvido, que atinge as camadas sensoriais e imagéticas dentro de um ritmo particular, era um procedimento por onde pretendia circular na criação cênica do espetáculo.

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O Butoh eu identifico muito com a ‗dança pessoal‘, que é justamente este trabalho em cima das potencialidades e qualidades de energia em cada uma das pessoas. Como você burila, manipula, expõe e trabalha em cima dessas potencialidades.

Na perspectiva de Colla, a ‗dança pessoal‘ é entendida como a potencialização de energias pessoais, levando em conta todo o contexto de suas experiências vividas. É um momento de mergulho em que o ser como um todo faz parte de um percurso de descobertas. Para o mergulho em si mesma, não basta dizer que ―entrou na sala e estou

me pesquisando e estou fazendo ‗dança pessoal‘‖. Ao contrário, é preciso uma busca na

qual as ações, movimentos e a pessoalidade se amalgamem para manifestar na corporeidade e no espaço o que é próprio de cada pessoa, encontrar a sua expressão. Trata-se de um apurar de qualidades energéticas, de ações, de potencialidades dentro de um corpo específico. O corpo não reduzido ao corpo físico. Mas, o acionar potencialidades de energias e colocá-las para dançar e poetizar o espaço. Assim como há a particularidade e a singularidade de cada ser na ‗dança pessoal‘, ―parece que para cada dançarino de Butoh há uma dança Butoh particular, o corpo e o sujeito como obra‖ (Colla, 2010, p. 130). Este é o ponto de encontro entre as técnicas que trabalham com os mesmos princípios e que são utilizadas por Colla no encaminhar de sua criação solo. E em meio a isso:

O desconforto, o contraste, a resistência, a desarticulação, a dissociação das partes. O corpo comprimido, o corpo impotente, o corpo estático. Ruídos, rachaduras, desabamentos. Eu sentia a carne se separando dos ossos. Despregada, dolorida (Colla, 2010, p. 135).

Existe um mergulho, eu posso mergulhar nas águas mais superficiais e mesmo assim estar testando, provando e me descobrindo. Isso normalmente nas águas mais claras, onde eu normalmente circulo como me expresso, quais as qualidades energéticas que tenho ou não, e ações onde normalmente circulo, o que aciono, os lugares onde nunca toco. Agora esse mergulho em profundidade, ele ter sido feito ao longo do caminho, mesmo que coletivamente porque o outro também é um espelho muito forte para você. Descobrir estas pontes e os lugares e não ter as repostas é estar no escuro. Este escuro é muito precioso, mas também não é preciso ser suicida e se trancar numa sala e entrar neste escuro, pode ser que dali não resulte nada, não é este o lugar.

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Eu sinto que quando eu chego no ―Você‖ e tenho o Tadashi comigo na sala, tudo bem que ele vai por outro viés, mas para mim a maneira que ele trabalha o Butoh é trabalhar com este olhar que para nós também é ‗dança pessoal‘, porque é ele chegando ao que é o Butoh do Tadashi, aquela expressão daquele corpo daquele homem que é japonês e mora na Alemanha. A busca dele está ligada a isto e isso para mim é ‗dança pessoal‘, ali eu me senti tendo um pouco este olhar. Porque era eu ouvida, estimulada: vá lá e faz, desnuda. Ali era esse desbastar, como: ―isto você sempre faz; porque está falando tanto? Cadê pausa? Cadê isto ou aquilo‖. Aí eu pude ter este presente de ter o olhar super apurado de alguém em quem eu confio, que além de viver no seu próprio corpo também orienta outras pessoas. Aí o trabalho ―Você‖ é onde está impresso este lugar da minha ‗dança pessoal.

Desse modo, ―[...] todos os exercícios eram realizados com o intuito de ampliar os limites sensoriais e expressivos de meu corpo e detectar ―estilos‖ do meu fazer‖ (Colla, 2010, p. 133). Nesse contexto, deve-se ainda levar em conta os elementos de sua trajetória, de alguém que passou pela mimese corpórea com vários corpos e vozes de diferentes mulheres, viveu as experiências do treinamento psicofísico que busca a presença da ação em seus anos de trajetória no Lume, e toda a bagagem de sua vida, as cirandas de outros inicios.

3.1.5 O espetáculo “Você”

Convoco meus mortos para dançarem comigo. Um a Um, os percebo chegando. Habitamos juntos o espaço ―entre‖, tempos dilatados. Você sou eu ou é você? Ou somos todos? Será isto importante? Saber o espaço que me separa do outro? Meu prazer é habitar o entre que me liga a você. Você me lembra eu‖

(Colla, 2011, programa do espetáculo ―Você‖) A proposta desse trabalho solo pode ser entendida como um momento em que Colla reflete sobre a manifestação de sua individualidade acerca de seu papel na sociedade, e de como constrói sua história social e teatral. Portanto, os traços femininos e o autobiográfico, elementos integrantes da encenação, oferecem-lhe um espaço de exposição de sua condição indispensável de mulher que pode posicionar-se com um papel político. Parte-se da ideia de que ―[...] a maneira como as mulheres se apoderam e

122 empregam esse formato espetacular se assenta na ideia de que o traço pessoal e íntimo é político‖ (Dip, 2005, p. 94). Assim, trata-se de uma criação que não se enquadra na normativa de um discurso ideológico dominante, e que permite refletir sobre a posição política de Colla se revelando em seu solo ―Você‖.

O espetáculo ―Você‖ é dividido em três momentos que Colla denomina JO, HA e KIU (JO, lentidão - resistência, associado à idade da velhice; HA, rapidez – ruptura, associado à idade adulta; e KIU, rapidez - aceleração, associado à idade da infância. O espetáculo apresenta diferentes fases da vida. Inicia-se com a desconstrução do tempo cronológico da vida, indo da velhice (JO), passando pela juventude - idade madura e terminando na infância. Essa forma promove a fragmentação da linearidade tradicional, já que muda o sentido de começo, meio e fim, ou de foco central, e abandona a organização hierárquica dos princípios da forma tradicional. O sentido vai se encontrar na célula de cada cena apresentada, independente do todo. No entanto, cria- se uma dramaturgia que perpassa por todas as cenas, representando o ritmo da vida.

Quanto a essa fragmentação da linearidade, podemos observar o pensamento de Gillian Hanna, da Monstrous Regiment (1978), quando aponta que os homens constroem uma carreira para a vida e continuam após a escola a trabalhar em suas profissões, enquanto as mulheres interrompem os processos por causa de gravidez, criação de filhos, e assim por diante. Assim, "para elas a vida não tem esse tipo de visão linear, que parece haver entre os homens [...] Eu acho que nós temos tentado refletir esta experiência fragmentada no que fazemos" (Hanna, 1978, p.8, apud Case 1988, p. 146).

63 [tradução da autora]

Em outras palavras, o objetivo da não-linearidade talvez seja uma possibilidade técnica adequada de atuação para representar as experiências da mulher, pois pode correponder a uma determinada lógica de percepção da vida, como descrito por Hanna. Embora esse pensamento tenha estado inconsciente na organização das cenas do trabalho, Colla possivelmente não optou por esse caminho apenas por questões

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