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CAPÍTULO I : O TABU DO FEMINISMO / CONTRIBUIÇÕES DE MULHERES NA

1.5 Feminismo na ditadura brasileira

Em 1964 ocorre no Brasil o golpe militar, com a implantação de uma ditadura que perdura até 1985. Pessoas são presas, torturadas e obrigadas a deixar o país por suas posições contrárias ao governo autoritário. O Ato Institucional nº 5 (AI5), editado em 13 de dezembro de 1968, foi o ponto culminante do processo de restrição aos direitos civis. O período posterior a essa data marca a repressão máxima do regime. São os ―anos de chumbo‖ da ditadura, em que qualquer atividade política que questionasse o regime era considerada crime.

No Brasil, o feminismo era mal visto pelos militares, como aponta Pinto (2003) e Gabriel Jacomel (2011), pelos homens da esquerda e em geral por toda a sociedade, conservadora daquele contexto cultura sexista. As feministas agiam de modo discreto, as reuniões eram levadas a efeito em clima doméstico e eram realizados encontros forjados dentro de casa, caracterizando seu caráter privado. Segundo Pinto (2003), as mulheres uniam-se por afinidades intelectuais e políticas ou amizade, e a entrada de uma nova participante no grupo ocorria por meio de convite das próprias mulheres que o compunham. Na grande maioria dos casos, os encontros sucediam-se nos centros urbanos.

Apresentando dados históricos, Pinto (2003) mostra que no período da ditadura no Brasil havia um clima de repressão e morte, realidade que afetou muitas mulheres militantes contra o regime às quais restou o exílio para os Estados Unidos ou países da Europa, muitas vezes. O clima nesses países era de efervescência política, de revolução de costumes e de radical renovação cultural, ou seja, havia grande agitação social e cultural. Muitas brasileiras exiladas entraram em contato com a efervescência do movimento feminista presente nesses países. Esse contexto propiciou o novo pensamento feminista que se desenvolveu no Brasil, a Segunda Onda, acima comentada.

38 Essas brasileiras encontraram uma inovadora face do feminismo, a qual, além de tratar das questões gerais da organização social, abordava também a especificidade da questão feminina em uma perspectiva marxista, e seus desdobramentos tais como as questões da saúde da mulher, do planejamento familiar, da sexualidade e do aborto. De acordo com Maria Lygia Quartim Moraes, estava agora colocada a ―dupla tarefa de pensar teoricamente a questão da mulher e estudar a realidade da mulher brasileira‖ (Moraes, 1996, p. 5).

É importante salientar que muitas das mulheres brasileiras exiladas eram, em sua maioria, jovens militantes do Partido Comunista, ou de grupos de esquerda, de ideologia marxista. Segundo Pinto (2003), o contato que essas jovens começaram a estabelecer com o feminismo no exílio (Europa ou Estados Unidos) acabou por causar sérias tensões no interior de seus grupos de luta de classe, pois os homens viam o feminismo como ameaça e dispersão da luta contra a ditadura no Brasil.

As mulheres, sem a ajuda e compreensão de seus companheiros na militância de esquerda, como mostra Pinto (2003) e Jacomel (2011), propuseram-se a lidar com a interface da opressão política e das questões da agenda feminista. As mulheres que se engajavam na intersecção das lutas sofriam ameaças, pois a luta de classe era a palavra de ordem, de modo que quem se afastava desse tema aparentava cometer uma traição. Portanto, o movimento feminista não era bem visto pelos militantes masculinos de organizações de esquerda, já que eles viam a luta de classe e a questão da mulher como duas questões distintas. Pinto (2003) ressalta que se chegou ao ponto de a Frente Brasileira no Exílio ameaçar retirar o apoio financeiro às famílias, caso as mulheres frequentassem as reuniões feministas, o que intensificou a pressão para que as mulheres rejeitassem a ideia de se aliar ao movimento feminista. Mesmo nesse clima de tensão, muitas mulheres continuaram apoiando-se em seus ideais porque acreditavam que

[...] o feminismo tinha que estar associado à luta de classes e associavam o feminismo a um movimento libertário que dava ênfase ao corpo, à sexualidade e ao prazer [...] parece ter sido ela a grande propulsora de um feminismo mais vigoroso e mais capaz de pôr em xeque as estruturas de dominação. (Pinto, 2003, p. 55)

Foi com esse ideário que algumas mulheres passaram a agir de modo mais radical. Apresenta-se como exemplo Danda Prado, brasileira exilada em Paris, que se deparou com os fortes contrastes repressores masculinos do Partido Comunista, e se

39 colocou em prol de fortalecer o movimento das causas feministas. Ela fundou em 1972 o Grupo Latino-Americano das Mulheres. Relata Danda Prado, em tentervista:

Eu fiquei muito espantada quando cheguei a Paris, porque eu, até então, só tinha participado de grupos políticos, nunca tinha atuado em grupos de mulheres. No Brasil, não existiam grupos de mulheres. E quando eu cheguei à França, em 1970, em todo canto eu via uns cartazes estranhos, às vezes escritos à mão, dizendo REUNIÃO DAS MULHERES. [...] realmente, nessa época, era difícil para mim não aceitar que o inimigo principal não fosse o capital, mas sim o homem. Quer dizer, o sexo masculino tinha ocupado, dentro da sociedade, uma limitação à vida da mulher. Isso eu aprendi lá. Eu via o pessoal discutindo e até achava que poderia convencê-lo do contrário, porque eu estava convicta de outra visão (Cardoso, 2004).

O grupo criado por Prado reunia mulheres de diferentes países, que se encontravam para discutir questões referentes à condição da mulher na sociedade. Os encontros para a mobilização ocorriam de modo informal, em bares. Esse movimento acabou por estabelecer ligação com grupos feministas de outros países, inclusive do Brasil, e juntamente com elas lançou o folhetim Nosotras, que foi publicado até o ano de 1976.

Como expõe Pinto (2003), a experiência do Grupo Latino-Americano das

Mulheres, propiciou a reorganização do pensamento feminista e, entre os anos de 1975 e 1979, estruturou-se a importante organização do Círculo de Mulheres Brasileiras em

Paris, um espaço no qual a presença simultânea de uma postura política de esquerda claramente identificada com a luta de classes, e de um trabalho interno de grupo de reflexão, ao estilo feminista europeu, fizeram-se presentes.

Constata-se que nesse grupo feminista havia uma ideia particular de autonomia e da especificidade da condição da mulher nas relações de gênero, ao mesmo tempo em que havia o comprometimento com o ideário marxista, que procurava reduzir a condição da mulher às formas de dominação presentes no caráter capitalista. O Círculo

de Mulheres Brasileiras publicou numa carta política o seu ideário, que em certo trecho dizia o seguinte:

[...] ninguém melhor que o oprimido está habilitado a lutar contra a sua opressão. Somente nós, mulheres organizadas autonomamente, podemos estar na vanguarda dessa luta, levantando nossas reivindicações e problemas específicos. Nosso objetivo é defender a organização independente das mulheres, não é separar, dividir, diferenciar a nossa luta das lutas que conjuntamente homens e

40 mulheres travam pela destruição de todas as relações de dominação da sociedade capitalista (Pinto, 2003, p. 55).

Na capital francesa existiram nessa época, portanto, dois importantes grupos de mulheres: o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris, estabelecido por Danda Prado, em 1972, e o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris, fundado por um grupo de mulheres brasileiras em 1976. Como mostra Anette Goldenberg (1987), o primeiro deu maior importância à questão da classe social e à luta contra a ditadura, e o segundo, com uma composição híbrida, seguiu duas orientações: a das mulheres que defendiam a dupla militância (gênero e classe) e a das que estavam mais fortemente influenciadas pelo movimento de libertação das mulheres, com ênfase nas questões da sexualidade e do corpo.

Para Goldenberg (1987), os grupos organizados no exílio influenciaram a agenda do feminismo brasileiro. Foi por meio dos documentos produzidos por eles que, segundo Cardoso (2004), as primeiras bandeiras e conceitos de gênero chegaram ao Brasil, promovendo a reflexão das feministas brasileiras, cujas prioridades não eram somente relacionadas à luta de classes, mas apontavam rumo às questões da agenda feminista. De acordo com Pinto (2003),

O encontro do feminismo à moda do primeiro mundo com a realidade brasileira daquela época promoveu situações tão complicadas quanto criativas: as mulheres [...] que estiveram na Europa [...] voltam para o Brasil trazendo uma nova forma de pensar sua condição de mulher, em que o antigo papel de mãe e esposa não mais servia (Pinto, 2003, p. 65).

Por essa perspectiva, é oportuno ressaltar que o feminismo brasileiro foi um ―feminismo revisitado‖, como propõe Elizabete Souza-Lobo (1991). O movimento feminista no Brasil ganhou impulso, principalmente a partir da chamada década da mulher propagada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU), que vai de 1975 a 1985. Essa propagação contribuiu muito para o desenvolvimento das atividades feministas e dos movimentos de mulheres no Brasil. A partir desse momento o tema da mulher assume nova conotação aos olhos da sociedade e do próprio regime autoritário. Formou-se então um panorama propício para a formação de um novo corpo do movimento feminista no Brasil.

Com as reuniões de mulheres em suas casas, em caráter privado, os grupos informais agiam discretamente na cidade do Rio de Janeiro. Organizadas, as mulheres

41 solicitaram o patrocínio da ONU e realizaram o evento que levou o nome de O papel e o

comportamento da mulher na realidade brasileira, o qual mobilizou a construção do

Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira (CMB) em setembro de 1975. De acordo com Pinto (2003), a construção do CMB foi um marco na história do feminismo no Brasil, pois havia de um lado a vigilância cerrada do regime militar e de outro a pressão dos militantes masculinos de esquerda, que lutavam contra a ditadura militar e não se indagavam sobre a condição da mulher na sociedade.

Outro fato importante que Pinto (2003) apresenta é que, no ano de 1975, em meio às discussões e comemorações do Ano Internacional da Mulher, sobreveio o

Movimento Feminista pela Anistia, organizado pela advogada Terezinha Zerbini. O objetivo principal desse movimento era, por meio de uma ação organizada, reunir famílias de exilados, presos políticos e desaparecidos para reivindicar seus direitos, com a proposta de mobilizar a opinião pública contra as arbitrariedades do governo militar. Sua campanha foi deflagrada em 1979, com a seguinte declaração de Zerbini:

Nós, representantes de entidades feministas brasileiras, cumprimos nosso papel em defesa dos Direitos Humanos, e alertamos o povo para a dramática situação, pois se omitir nesta hora é corroborar para o prosseguimento de tamanha injustiça humana e social. Mais uma vez, perante tais arbitrariedades, unimos nossas vozes por uma anistia ampla, geral e irrestrita (Pinto, 2003, p. 65).

Nota-se que a década de 1970 foi um período marcante na história do feminismo, pois lançou para o mundo e para o Brasil a questão da mulher. As mulheres marcaram nessa época sua presença, e continuam até os dias de hoje na luta por seus direitos de cidadãs e por melhorias das condições sociais, o que acaba por refletir-se nas estruturas da sociedade. Conforme Pinto (2003), nessa época houve uma rede de mulheres participantes e ativas cuja militância dirigia-se a pressionar, limitar e modificar ações no interior da nova sociedade brasileira. Foi nesse contexto que o movimento feminismo tornou-se institucionalizado.

Durante os vinte e um anos em que o Brasil esteve sob o regime militar, as mulheres estiveram à frente nos movimentos populares de oposição, criando suas formas próprias de organização, lutando por direitos sociais, justiça econômica e democratização (Soares, 1998, p. 34).

42 É importante salientar que o feminismo, sendo um movimento legítimo, atravessou várias décadas e transformou as relações entre homens e mulheres. Assim, torna-se quase incompreensível o porquê de sua desconsideração pelos formadores de opinião pública. Pode-se dizer que a vitória do movimento feminista é inquestionável quando se constata que suas lutas mais radicais tornaram-se parte integrante da sociedade, como, por exemplo, a mulher obter direitos de posse, frequentar a universidade, escolher a profissão, receber salários iguais, candidatar-se ao cargo que quiser, além de ter direitos sobre o seu corpo e resolver sua sexualidade com direito ao prazer sexual. Vale lembrar que tudo isso já foi um sonho utópico e hoje faz parte do dia a dia no Brasil, e que ninguém nem imagina mais uma forma diferente na sociedade. É importante haver a consciência de que se trata de conquistas sedimentadas por meio das lutas das mulheres e de que ainda há algumas situações que precisam ser equalizadas e outras revertidas, como é o caso da violência contra a mulher. Pode-se citar aqui também a questão da visibilidade da produção feminina e da estimulação do ato criativo, por parte da mulher, no teatro brasileiro.

Outro aspecto do feminismo é a sua diversidade de pensamento e de encaminhamento de ações, ou seja, dentro do feminismo coexistem as mais variadas vertentes. Dentre elas é possível apontar algumas como o feminismo liberal, o feminismo cultural, o feminismo lésbico, o feminismo socialista, o feminismo humanista, o feminismo psicanalítico, o feminismo negro, o feminismo pós- estruturalista, o feminismo marxista, o feminismo radical e o feminismo acadêmico. É o que ilustra Piscitelli (2002):

O pensamento feminista, como expressão de ideias que resultam da interação entre desenvolvimentos teóricos e práticas do movimento feminista, está longe de constituir um todo unificado. No entanto, apesar das importantes diferenças presentes nas diversas vertentes desse pensamento, as abordagens desenvolvidas após o final da década de 1960 compartilham ideias centrais. Em termos políticos, consideram que as mulheres ocupam lugares subordinados em relação aos mundos masculinos. A subordinação feminina é pensada como algo que varia em função da época histórica e do lugar no mundo (Piscitelli, 2002, p. 9).

Em meio a essa diversidade existente no movimento feminista é importante apontar alguns pressupostos e conceitos desenvolvidos, sobretudo em relação às vertentes que se alargaram após a década de 1960. Em suas reivindicações sobre a prática do direito à igualdade, questionam-se as origens culturais da desigualdade, a fim

43 de encontrar meios que expliquem a causa da subordinação, e rompem-se estruturas que enquadram a mulher num pensamento patriarcal.

Dentre as diversas vertentes, o presente trabalho ater-se-á em apresentar alguns pensamentos de algumas delas, a saber: a marxista e a radical e também o feminismo acadêmico e sua apropriação do conceito de gênero.

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