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Columbia e sua vinda ao Brasil

No documento Projeto UNESCO no Brasil: textos críticos (páginas 193-200)

Volto a tomar as próprias palavras de Carlos Castaldi para relatar sua experiência acadêmica e vinha à Bahia para realizar seu estudo de campo: “Na Columbia University, onde eu cheguei em 1949, tinha fre- qüentado os cursos e os seminários de Wagley sobre o Brasil e junto tínhamos acertado que eu iria para Salvador estudar formas de catolicis- mo de folk e um “candomblé de caboclos”, no Recôncavo baiano. Esta

pesquisa fazia parte do programa “Bahia-Columbia University” finan- ciado pelo Ministério da Educação brasileiro e pela Wenner-Gren Foundation de Nova Iorque.

No outono de 1953, aos 28 anos, parti, antropólogo inocente, de Nova Iorque para o Rio, onde no aeroporto estava me esperando Eduar- do Galvão (grande amigo de Chuck) ele “verdadeiro” antropólogo já reconhecido como tal.

Conheci nos dias seguintes, apresentados pelo próprio Galvão, Anísio Teixeira, personagem já muito importante na época, alto funcio- nário do Ministério da Educação e responsável pela “Campanha Nacio- nal de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior” e da “Fundação pelo Desenvolvimento da Ciência na Bahia”.

Anísio era um homem miudinho e gentil, de uma gentileza for- mal, muito “ibérica”, ao qual apresentei o programa que tinha discutido com Wagley e após alguns meses deixei o Rio e parti rumo a Salvador.

Meu ponto de referência na Bahia era a “Fundação” que ocupava um lindo prédio da Rua da Graça 13, uma discreta rua de um bairro elegante. A Fundação era dirigida por Thales de Azevêdo, antropólogo, acompanhado, no desenvolvimento de sua atividade, pela irmã de Aní- sio, dona Carmen Spinola Teixeira, e por uma amiga dela, a professora Anfrísia Santiago, uma senhora muito austera, de uma certa idade, que falava com um tom de voz muito baixo e vestia-se sempre de preto.

Sempre através do Wagley, tinha sido apresentado a uma impor- tante família da aristocracia local, os J.A., fazendeiros, produtores de açúcar, os quais usaram uma inesquecível gentileza para comigo. Muitas vezes me convidaram na linda casa deles na cidade e na fazenda para memoráveis festas (às quais participavam “senhores” e “camponeses”) e para outros tantos inesquecíveis passeios a cavalo.

Em Salvador me alojei numa pensão, a “Anglo-Americana”, perto da “Praça dois de Julho” cujas janelas davam para uma deslumbrante vista para o mar. Meus amigos brasileiros, a pensão “anglo-americana” e o “British Club” me serviam como válvula de escape quando a intensidade emocio- nal do mundo afro-brasileiro se tornava, para mim, “demasiado forte”.

Passei meus primeiros meses em Salvador estudando uma “devo- ção” que tinha sido me assinalada pela dona Carmen e pela professora

Anfrísia. Tratava-se de duas irmãs pias, solteironas, que possuíam uma imagem de São José, considerada milagrosa, e que era tida em muita consideração também pela pequena burguesia local. Dai resultou o tra- balho denominado “Um exemplo de catolicismo de “folk” na Bahia”, publicado na revista Sociologia, em agosto de 1955. Castaldi registra ainda que neste artigo foi ajudado pela Dra. Eunice Todescan Ribeiro, na época licenciada.

A esta altura ele considera que já falava bem português. Diz já se sentir em casa e podendo enfrentar situações que exigissem mais dele. Foi através de Thales de Azevêdo que conheceu o doutor Figueiredo, “pessoa muito simpática, que desenvolvia sua profissão de médico tam- bém em Itaparica.”

Prossegue relatando como escolheu o local para realizar seu traba- lho de campo: “Figueiredo me propôs de ir com ele para Itaparica onde me apresentaria a Dona Lilita “mãe de santo” do terreiro de São João (do qual ele era um dos “Ogãs”) e em geral, aos outros amigos dele da- quele mundo totalmente novo para mim: obviamente aceitei logo.”

Com referência a suas experiências anteriores e o estranhamento que teve do campo Castaldi diz: “Eu vinha de Roma, tinha morado três anos em Nova Iorque, depois um breve período no Rio, e enfim em Salvador: tinha em outras palavras, sempre morado em cidades mais ou menos grandes cujo “tempo” com variações de intensidade, era um “tem- po urbano” (e muitas vezes neurótico).”

A “separação” para mim aconteceu quando Figueiredo e eu fomos para o Mercado Modelo para tomar o “saveiro” para Itaparica. O tempo de espera era imprevisível, como era normal que fosse, do momento que o saveiro não era um meio de transporte “público” mas um meio à disposi- ção de um grupo de pessoas (em geral amigos ou conhecidos) vindos para a cidade para os motivos mais diversos (cumprir tarefas, fazer compras, ir ao médico), portanto era necessário esperar que todos tivessem voltado; isso impossibilitava saber a que hora (pergunta muito “urbana”) podia- se partir. Somente quando todos tivessem terminado suas tarefas.

Para mim, o conceito de “tempo” começava a mudar, mas não era fácil para um “cidadão” como eu, adaptar-se logo a esta mudança. As esperas para as partidas, às vezes muito cansativas, eram compensadas

pelo prazer da travessia: o vento, o marulho da água, o lento aproxi- mar-se da ilha.

Embora o saveiro chegasse muito perto da ilha precisava sempre “de- sembarcar” dentro da água; para os homens era fácil: bastava tirar o sapatos e enrolar as calças; as mulheres eram ajudadas só se as próprias o pedissem. Depois iniciavam a desembarcar as bagagens e os animais (até cavalos!).

Na época podia-se alcançar Itaparica também de “ferry boat” [na verdade trata-se de navio da Companhia de Navegação Baiana] e, neste caso, o tempo “urbano” era mais respeitado, mas o ferry boat atracava somente no cais da cidade de Itaparica. Para alcançar os outros povoa- dos, que não possuíam cais [com ponte de atracação], era necessário baldear para saveiros ou embarcações de remos que vinham ao encontro do ferry boat e a baldeação, considerada a mobilidade dos meios, era muitas vezes, ainda mais complicada.

Com Figueiredo desembarcamos em Amoreira onde ficamos hos- pedados na casa do pescador João, ai dormimos em cima de uma esteira desenrolada no chão de terra batida, entre as baratas. Se menciono este episódio não é para sublinhar as “incômodas” condições de vida (que, devo dizer, nunca me preocuparam muito), mas para mostrar como aque- las “condições incômodas” me levaram a fazer uma outra projeção “ur- bana”, em outras palavras, fiquei marcado pela simplicidade (pela ino- cência?) com que os habitantes da ilha viviam sua pobreza, certamente ajudados, por um lado, pela beleza e amabilidade do lugar.

Após uns dois dias transcorridos na casa de João, Figueiredo fez com que eu pudesse me alojar em São João no terreiro de dona Lilita, onde havia uma casa (de barro com o teto de palha) toda para mim e um “criado”, Eliseu, pessoa gentil, que me dava assistência.

São João era uma comunidade de uma dezena de casas dispostas entorno do “barracão” onde moravam Lilita e sua família em senso amplo (avós, pais, primos, netos), uma comunidade animada pelas próprias atividades domésticas, pelo trabalho dos homens (marinheiros e agri- cultores), mas, sobretudo pelas tarefas que Lilita tinha que cumprir como mãe de família, terapeuta e “mãe de santo”.

O culto exigia, entre outras, o respeito ao calendário das cerimôni- as, portanto das festas, cuja preparação requeria um trabalho do nível da

montagem de um verdadeiro espetáculo. É verdade que a tradição regu- lava sua seqüência, mas a organização da festa, desde a preparação dos enfeites até a comida a ser oferecida, a manutenção das roupas de cada orixá (fantásticas se considerarmos estar num ambiente paupérrimo), requeria dias de trabalho por parte das mulheres de São João, e em geral, das filhas de santo do “terreiro”.

Durante a “festa”, que durava em geral três noites, os atabaques tocavam, com breves pausas, do por do sol até ao amanhecer do dia seguinte. Além dos protagonistas do cerimonial havia, naturalmente, o público, um público numeroso devido ao bom nome tido pelo terreiro de Dona Lilita.

Permaneci em São João por quase três meses, empenhado em en- trevistar Lilita e todos aqueles que tinham um papel específico no de- sempenho das obrigações do culto. Sinto muito de não ter freqüentado o candomblé de Eguns em Tum Tum, uma localidade próxima a Ponta de Areia. Fui para lá uma vez só, acompanhado por Pierre Verger que tinha uma grande familiaridade também com aquele grupo.

Os Eguns são as almas dos mortos (são de fato uns esqueletos) e, para não amedrontar muito os participantes, se apresentam na sala (fe- chada, grande, escura) cobertos da cabeça aos pés por enormes mantas cheias de peças de espelhos que brilham a luz das velas; os fieis não podem olhá-los, têm que manter o olhar baixo e comunicar com eles através dos ajudantes.

Embora o candomblé de Eguns seja completamente diferente do candomblé dos orixás-caboclos (“Caboclos e Eguns não se dão”), Olegário, figura central do Tum Tum, aparece muitas vezes nas histórias de vida dos membros da comunidade de São João, e tem, sem dúvida, um lugar de destaque, não somente no parentesco, sobretudo na ceri- mônia fúnebre que descrevo no texto.

Sinto muito também de não ter formulado minha hipótese interpretativa sobre o efeito terapêutico do candomblé, que pode ser ligado, a meu ver, à psicologia arquetípica junguiana, em outras pala- vras o efeito benéfico da iniciação poderia ter sido induzido pela iden- tificação do arquétipo dominante da personalidade do iniciando. A identificação era feita através da interpretação dos “búzios”1 e se o

iniciando aceitasse esse “anjo da guarda” honrando-o segundo as mo- dalidades prescritas, então estaria curado de suas dores. “Neste ponto Castaldi conclui que dado à prevalência da dor na experiência humana da pessoa, a presença de terreiros, de terapeutas tradicionais e muitas rezas seria uma forma de lidar com as muitas formas que a infelicidade

humana assume também na “feliz ilha” de Itaparica, a este propósito relembra a presença de “Boneco” [como é conhecido São Venceslau] e João Caipó, os dois outros terapeutas que estudou.

Tendo dado conta da sua primeira etapa de trabalho, prossegue relatando: “[Mesmo] quando, por motivos de trabalho, fui morar em Mar Grande continuei a visitar dona Lilita, tanto para participar das festas, quanto para bater papo com os meus amigos de São João.

Mar Grande era na época um povoado, com poucas casas pobres: os edifícios de dois andares eram raros, um era a pousada “Mar Grande”, um sobrado construído talvez na época em que a caça à baleia enrique- ceu a ilha. Depois não tinha nada mais que algumas modestas casinhas de pequenos burocratas locais ou casas de praia. A pousada era dirigida por um elegante casal da Romênia e uma cozinheira lindíssima: Regina. Ali eu tinha dois grandes quartos que davam para o mar.

Levei à pousada, emprestado pela “Fundação”, um gravador e, aju- dado por Regina, consegui organizar reuniões onde se gravava a voz de qualquer um que desejasse cantar ou tocar. Após o receio inicial, as “reu- niões” tiveram muito sucesso, sobretudo porque as pessoas se divertiam em ouvir a própria voz novamente. Deste material, a casa americana “Ethnic Folkways” editou um disco “Songs and dances from Bahia”.

O dia começava muito cedo, portanto à noite, após o trabalho, ia- se tomar banho”, as mulheres numa fonte, os homens numa outra: os homens, após o jantar encontravam-se numa certa “venda” (não lembro o nome do proprietário) onde, de cócoras (eu nunca consegui), batiam um longo papo sobre tudo e sobre todos.

No domingo, em vez da venda os homens começavam a se reunir de manhã na “roça dos galos” (não lembro de alguém que fosse à Missa talvez porque a única igreja encontrava-se na cidade de Itaparica).

Depois que deixei a tranqüila comunidade de São João, tive que me organizar para os deslocamentos que a nova fase do meu trabalho

requeria. Na época, se andava pela ilha a pé ou a cavalo, tinha, portanto, necessidade de providenciar um cavalo e de alguém que tomasse conta dele. Comprei Arnold (em homenagem a Toynbee) na feira dos cavalos da Bahia. O segundo cavalo, Segredo, o comprei na mesma feira com Valtério dos Santos, Vavá, seu apelido.

Quem era Vavá? Vavá era o meu melhor amigo, mas jovem do que eu em alguns anos. Tinha conhecido ele na “roça dos galos” (pois a freqüentava muito por possuir ele mesmo galos de combate) quando procurava alguém que cuidasse, inicialmente só do Arnold, e num se- gundo momento também de Segredo.

Sua tarefa principal era aquela de cuidar dos cavalos, mas com o tempo, nos tornamos grandes amigos e passávamos juntos dias inteiros. Embora muitas vezes ele me acompanhasse nos meus encontros de tra- balho, evitava com cuidado de participar e enquanto eu trabalhava ele ficava batendo papo com os amigos, tomando conta de Arnold e Segre- do. Vavá tinha uma postura ambivalente em relação aos cultos afro- brasileiros, participava das festas, mas sem grande entusiasmo. Seu mai- or interesse era as mulheres; Vavá era um jovem bonito. Quando o co- nheci tinha uma mulher e um filho (Tutuca) em Mar Grande, uma namorada em Itaparica e uma amante em Amoreira ou vice-versa, nem por isso subtraia-se a fugazes aventuras com outras moças.

Vavá tinha formulado uma escala de raças muito precisa; falava mal (aliás, malíssimo) dos “negros” (sobretudo dos negros ‘‘azuis’’ de Amoreira). Como eu o via como um negro, perguntei-lhe como ele se considerava. Segundo o ponto de vista dele eram negros aqueles da “cor do telefone” (não sei onde ele podia ter visto um telefone, talvez na Bahia), depois havia aqueles da “cor do café”, cor à qual, parece, ele se considerava perten- cer, e uma longa série de tonalidades, das quais infelizmente não lembro as definições: eu,naturalmente, era sem sombra de dúvida, branco.

Nunca perguntei a mim mesmo como os nativos podiam me ver e considerar e como consideravam o meu trabalho, afinal eu me dava tão bem com todos que nunca me passou pela cabeça de investigar sobre esta questão. Hoje, ao contrário, acho que teria sido muito interessante fazer este tipo de pesquisa: quem sabe quais “associações” teriam surgi- do sobre a minha pessoa e sobre o meu ser antropólogo.

Os deslocamentos a cavalo (Vavá tinha me ensinado a andar a pas- so travado) ou a pé, quando a maré era baixa, fizeram que eu conhecesse aquele trecho da costa em todos os seus detalhes: as palmeiras na beira- mar, os peixes voadores, a lindíssima areia, ou quando a maré era alta e tínhamos que percorrer as estradas da campanha, os pequenos macacos, o vasto silêncio e as mulas que tinham sido objeto de seu desejo (de Vavá obviamente), ou passivas amantes (ou não? quem sabe?) de outros ami- gos comuns dos quais dizia os nomes, até pessoas que não eram mais muito jovens, pai de família, ciumentos das próprias mulheres e talvez também de suas mulas.

Quando chovia, ficávamos de cueca para não molhar as roupas: a cueca de Vavá! Calções de banho feitas de algodão com uma cordinha para segurá-las, eram pudicas, dignas e pobres, como eram também po- bres e dignas as roupas usadas pelo pessoal da ilha, homens e mulheres, fora, no caso das mulheres, quando vestiam o lindíssimo traje “baiano”. Quando releio o esboço da minha tese me dou conta que nada transparece da beleza da ilha e da peculiaridade de seus habitantes. Nunca falo da presença de dona Lilita, de dona Avani, a anoréxica amante de São Venceslau, nem daquele personagem, terrível pelo seu cinismo, que era João Caipó.

Mas uma medida do cinismo, ou melhor, da tendência à vingança, é comum aos três personagens, porque os três tinham prazer de contar histórias onde quem fez a eles o mal ou duvidou de suas capacidades é punido também com a morte, morte de alguma forma, merecida.

Afinal eram como “empresários” e no contexto socioeconômico da ilha, tinham que ser considerados tais, pois embora não possuíssem ca- pital e fossem semi-analfabetos, tinham conseguidos criar algumas ati- vidades bastante lucrativas, graças a suas personalidades fortes, a seus caracteres dominantes.

Estas últimas considerações aplicam-se melhor a “Boneco” e “Caipó” que a Lilita. Tornar-se “mãe de santo” requer uma longa prepa- ração, mas, sobretudo requer “acreditar” no culto do qual a pessoa se torna ministro. Enquanto que os dois homens, “metteurs en scéne de soi même” [diretores de seus próprios atos], eram também livres para não acreditar em sua própria representação.

No documento Projeto UNESCO no Brasil: textos críticos (páginas 193-200)