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Herskovits e o Projeto UNESCO no Brasil

No documento Projeto UNESCO no Brasil: textos críticos (páginas 162-166)

Nos estudos sobre o Projeto UNESCO no Brasil, o foco não costu- ma ser posto diretamente sobre Herskovits talvez porque ele oficial- mente não fizesse parte do projeto.43 Mas ele exerceu grande influência no curso das investigações, tanto direta quanto indiretamente. Herskovits era freqüentemente consultado pela burocracia da UNESCO e seus associados. Em 1947, por exemplo, a UNESCO pediu-lhe que contribuísse para o rascunho de sua declaração sobre os Direitos do Homem.44 Ele foi também consultado para montar a equipe de um projeto educacional no vale Marbial, no Haiti. Herskovits sugeriu o nome de alguns estudiosos que poderiam trabalhar no projeto, que ter- minou sendo dirigido por Métraux e incluiu sua esposa, Rhoda Bubendey Métraux (1914-), entre outros.45 Herskovits foi consultado quando da fundação do Hylean Amazon Institute, que pretendia promo- ver investigações em uma série de campos, das condições ecológicas às necessidades educacionais das populações indígenas; Herskovits suge- riu que os levantamentos etnológicos fossem ampliados para incluir gru-

pos de negros e suas relações com os brancos na região.46 A UNESCO também pediu que ele indicasse um antropólogo para o projeto. Herskovits sugeriu Ralph Beals (1901-1985) e, quando Beals não pôde aceitar o posto, Octavio Eduardo como alternativa.47 Herskovits foi ain- da consultado acerca da famosa “Declaração sobre Raça” da UNESCO.48 Mas, conquanto fosse o editor do American Anthropologist, ele não discu- tiu a declaração, como fez o periódico britânico Man.49

Para o Projeto UNESCO no Brasil, Herskovits foi consultado por uma série de funcionários. Kleinberg pediu sua orientação acerca das declarações feitas por antropólogos brasileiros e de outras partes do mun- do sobre o tema da “raça”.50 Ramos, então chefe do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, contou a Herskovits em 1949 sobre a formação de um comitê sobre raça, mas não nomeou aqueles que ele havia escolhido para integrá-lo. Disse ainda que desejava criar uma divi- são permanente dedicada ao “estudo dos povos atrasados de nosso mun- do, para quem os benefícios da UNESCO ainda não estão disponíveis”, bem como um programa de Estudos Africanos, envolvendo uma cola- boração entre a Universidade do Noroeste e o Museu do Homem de Paris. Herskovits ficou satisfeito, e buscou, por meio de Ramos, obter um financiamento da UNESCO para o Programa de Estudos Africa- nos.51 Propôs também que o comitê sobre o negro do ACLS fosse utili- zado para estabelecer um programa de projetos de pesquisa nas regiões das Américas com presença africana.52

Ramos morreu em outubro de 1949, e, em abril do ano seguinte, Métraux era o chefe de uma recém-criada Divisão para o Estudo de Problemas Raciais na UNESCO. Métraux advogava para a Antropolo- gia um papel chave nos projetos da UNESCO, e Herskovits publicou seu curto relatório a esse respeito no American Anthropologist.53 Ramos não havia escolhido Herskovits para participar em sua equipe de pes- quisa, e Métraux também escolheu não incluí-lo diretamente no proje- to. As posições de Herskovits eram representadas por Ribeiro, que pesquisou, para o projeto, o papel da religião nas relações raciais no Re- cife após Freyre ter requisitado a inclusão de seu Instituto Joaquim Nabuco.54 E Herskovits teve uma influência direta ao sugerir o nome de seu aluno Coelho, em oposição ao do antropólogo africano-americano

St. Clair Drake (1911-1990), que havia participado do estudo de Myrdal.55 Métraux afirmou a Herskovits que, tão logo os planos do pro- jeto estivessem delineados, ele enviaria o planejamento da pesquisa do projeto brasileiro, que havia sido escrito por Kleinberg e Coelho, para que Herskovits fizesse comentários e críticas, adendando: “afinal, você é o ‘grande ancião’ neste campo”.56

Talvez a questão devesse ser: por que Herskovits não esteve mais diretamente envolvido no projeto? Fazer essa pergunta evita uma espé- cie de teleologia muito freqüente na História da Ciência, e confere impor- tância à atuação dos atores históricos. Herskovits certamente via as “rela- ções raciais” como parte integrante de sua especialidade teórica. De 1929 a 1933 ele revisou o estado das “relações raciais” no American Journal of

Sociology.57 E ele era simpático ao argumento da “democracia racial”, que claramente animava o projeto da perspectiva de Ramos e Métraux.58 desde 1925 ele comparava a situação brasileira com a “color line” nos Estados Unidos, escrevendo que “não há um problema racial no Brasil”, mantendo-se certamente em termos amigáveis tanto com Ramos quan- to com Métraux.59 Ao que tudo indica um amigo e colega devotado, Métraux relatou as dificuldades que estava enfrentando com a editora Payot na tradução francesa do manual escrito por Herskovits, Man and

his Works.60 Ele e Claude Lévi-Strauss (1908-) procuraram tradutores e a

seguir revisaram as traduções apesar do crescente volume de pressões no trabalho — Métraux afirmou que havia “devotado ao livro cada hora vaga em muitos semanas”, e que lamentava “poder devotar ao seu texto apenas algumas horas durante as noites, a maior parte das vezes na cama”.61

Uma evolução no pensamento tanto de Ramos quanto de Métraux pode ser observada. Ramos combateu cada vez mais abertamente o ra- cismo durante a guerra, e passou a advogar uma perspectiva da Ciência Social aplicada, da mesma forma que Métraux, após seus poucos anos na UNESCO.62 Métraux escreveu a Herskovits dizendo que esperava vê-lo reconhecer que o projeto do vale Marbial, no Haiti, “representa tam- bém uma contribuição válida à ciência que você criou”.63 A reação de Herskovits a esse trabalho talvez demonstre as diferenças emergentes entre Herskovits e a Ciência Social orientada para a elaboração de polí- ticas públicas exercitada na UNESCO. Métraux estava respondendo ao

artigo que Herskovits escrevera em 1951, “The present status and needs of

Afroamerican research”, ansiando pelo reconhecimento de sua contribui-

ção à Antropologia Afro-Americana por parte daquele que havia conse- guido definir os termos e maneiras de ver o campo — aquele que havia “criado” a “ciência”. Herskovits respondeu que quando “descobertas científicas” do estudo estivessem disponíveis ele seria “o primeiro a re- conhecer sua contribuição”. E continuou: “eu realmente penso, entre- tanto, como você sabe, que há uma diferença entre a pesquisa que é encampada com o propósito de corrigir uma dada situação e a pesquisa que é levada a efeito com o objetivo de estender as fronteiras do conhe- cimento”.64 Métraux retrucou dizendo: “Meu caro Melville, (...) no Haiti, durante os dois anos que passei no vale Marbial, eu sentia querer fazer um trabalho científico, e nunca permiti a mim mesmo nem a meus cola- boradores que fôssemos influenciados pelo fato de que o resultado de nosso trabalho poderia ter aplicações práticas. Sou em primeiro lugar um cientista, e nunca levarei adiante uma pesquisa que seja apenas a base para um programa prático”.65 Mais tarde, Herskovits abrandou sua posição, dizendo que estava ansioso por discutir com Métraux “a ques- tão da pesquisa prática versus a pesquisa não-aplicada”, afirmando ironi- camente “Com certeza não sou homem de duelar acerca de uma classifi- cação”. E quando ele recebeu o livro sobre Marbial disse: “é um trabalho refinado, e será um ponto de referência básico para todos os futuros estudos sobre a economia do campesinato haitiano”.66

Finalmente, em 1951, Alva Myrdal (1902-1986) foi apontada che- fe do Departamento de Ciência Social da UNESCO. Embora pessoal- mente em bons termos com Herskovits — ele e sua esposa haviam-se oferecido para cuidar das crianças dos Myrdal quando Gunnar e Alva tiveram de voltar para a Suécia após a eclosão da segunda guerra mundi- al — é possível que, dados o seu ativismo e a sua nova posição institucional, esse desenvolvimento não tenha trabalhado a favor de Herskovits. De qualquer maneira, o projeto já havia começado com um pelotão de frente de distintos investigadores.

No documento Projeto UNESCO no Brasil: textos críticos (páginas 162-166)