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Coexistem, no livro de René Ribeiro, um tratado de Filosofia da História (que é o que essencialmente interessa a este comentador), larga- mente elaborado sob influência e mesmo pressão de Gilberto Freyre, bus- cando interpretar nossas relações raciais à luz dos princípios fundamen- tais de nossa formação social, cultural e econômica, e, por outro lado, um conjunto de estudos e considerações, de caráter mais diretamente indutivo. Nem sempre é fácil traçar os limites entre esses domínios. O conceito de

etiqueta racial, com uma vertente fortemente empírica, penetra todo o

trabalho e representa uma de suas contribuições mais originais.44 René não chega a uma definição estrita dessa expressão, mas os exemplos são numerosos. Demos a palavra ao autor:

Cerca o assunto em nosso meio certa reserva e discrição, mesmo quando não se tratem de demonstrações de preconceito, desde que este esteja de qualquer modo implícito. [...] Situações embaraçosas surgem por isso mesmo quando pessoas de cor branca referem-se depreciativamente às de cor, por inadvertência, na presença des- tas. [...] O modo mais comum e aceito como polido de alguém

referir-se às pessoas pretas e mulatas é chamá-las de morenos, ou substituir negro por preto, ou escuro, etc. [...] Esse aspecto da etiqueta aqui adotada, distingue-a daquela que vigora em outras partes onde o objetivo parece ser antes o de “manter o negro no seu lugar”, do que poupar-lhe qualquer afronta ou o constrangimento mútuo que aqui resulta dos incidentes em que se acham envolvi- das atitudes racial45.

Para exemplos do funcionamento do sistema da etiqueta, o comentador tem a dificuldade da escolha. Há os mais antigos, tirados de Rugendas e Koster, como os muitos extraídos da vida das classes altas do Recife, que René conheceu inclusive graças à sua posição de observador privilegiado, médico de destaque, diretor de hospital particular, profes- sor universitário, intelectual de prestígio, homem de sociedade. Alguns desses exemplos constituem verdadeiras indiscrições46, as pessoas en- volvidas podendo ser perfeitamente reconhecidas por recifenses de cer- ta idade e origem social. Tal é o caso do

mulato de posição social proeminente que realizara o primeiro casamento com mulher loura [mas] que ao enviuvar, ficando-lhe vários filhos do primeiro matrimônio e não melhorando em nada sua posição econômica, só conseguiu realizar segundas núpcias com mulher mestiça evidente como ele.47

Análogo a este é o caso de

ocultação do membro mais escuro da família e denunciante da ascendência mestiça ou africana, foi outro artifício usado em nos- so meio como técnica de preservação do status social. Conta-nos certo informante que um tio-avô, senhor rural, amasiou-se com uma negra e dela teve um filho mulato a quem educou e cujo progresso social incentivou, a ponto de ser este o membro hoje mais bem colocado economicamente na família. Entretanto, esta guardou tamanha reserva sobe o assunto que só agora, depois de adulto e acidentalmente, foi que veio a ter conhecimento do tal parente.48

René insiste na ausência de segregação racial no Nordeste, senão em todo o Brasil.. E o sistema da etiqueta acarreta

gação racial, da atenuação das formas de discriminação, [...] a transposição do preconceito e dos estereótipos raciais da raça para a cor, bem como a repressão do preconceito e o deslocamento do problema racial do foco de interesse e a preocupação constante49

dos indivíduos de etnia diversa aqui em contacto e inter-relação.50

O sistema da etiqueta tem, resumindo, as seguintes características. 1) Preeminência da cor branca, ou dos indivíduos de cor branca, no plano social, político, econômico, bem como no nível mais simbólico do prestígio. 2) Atenuação ou mesmo ausência de mecanismos de discrimi- nação, que impeçam a realização de casamentos e uniões informais, o acesso às ocupações, à propriedade, ao exercício de cargos políticos, etc, por parte dos indivíduos que, em diferentes graus, não são considerados como brancos. 3) Preferência, por parte destes últimos, pelo casamento hipergâmico, isto é, com cônjuge de cor mais clara ou, no caso dos mais alvos, igualmente clara. 4) Eufemização do preconceito pelo uso de ter- mos como moreno, escuro, ou mesmo preto51, no lugar de negro, pelo evitamento do assunto nos contactos quotidianos e pela repressão do reconhecimento das marcas fenotípicas.52 5) E — diferença fundamen- tal com relação ao sistema tradicional do Sul dos Estados Unidos — a presença de traços fenotipicamente africanos considerada, do ponto de vista dos estratos prevalentes, como uma espécie de inconveniência para o intercurso social e matrimonial, susceptível entretanto de ser com- pensada por outras vantagens53, sobretudo de caráter econômico54, e não como traço intrinsecamente poluente, conduzindo à segregação.

O conceito de etiqueta racial55 não precisa, enquanto tal, ser visto como decorrência da Filosofia da História presente nos trabalhos de Gil- berto Freyre, mas poderia, ao menos à primeira vista, ser encarado como construto resultante de um trabalho empírico e indutivo. É entretanto evidente que, embora se possa pensar que não haja sociedade multi-racial sem alguma forma de etiqueta racial, esse conceito, tal como se manifes- ta no Brasil (ou no Nordeste), sem implicar segregação ou mesmo discri- minação, possui afinidade eletiva com “uma sociedade híbrida e tole-

rante dos contatos de raça que completam e integram os contatos de cultura56”. Permanecemos portanto no terreno de Gilberto Freyre.

No documento Projeto UNESCO no Brasil: textos críticos (páginas 49-52)