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Herskovits e a estruturação das instituições

No documento Projeto UNESCO no Brasil: textos críticos (páginas 154-161)

Herskovits, nascido em Ohio de uma família de imigrantes judeus da Europa, considerou a possibilidade de tornar-se rabino antes de se alistar como voluntário no serviço médico do exército dos Estados Uni- dos na primeira guerra mundial. No retorno da guerra na França, ele se matriculou na Universidade de Chicago, onde obteve um título em História, indo a seguir para Nova York, onde se tornou aluno de Elsie

Clews Parsons (1875-1941), Alexander Goldenweiser (1880-1940) e Thorsten Veblen (1857-1929) na Nova Escola de Pesquisa Social (New

School for Social Research), e, na Universidade de Columbia, de Franz

Boas (1858-1942), sob cuja orientação escreveu uma tese de doutoramento sobre áreas culturais na África a partir de fontes secundárias.3 Em 1923, Boas conseguiu que Herskovits fosse nomeado para uma bolsa de estu- dos de três anos da Junta de Ciências Biológicas do Conselho Nacional de Pesquisa (National Research Council — NRC), uma instituição fun- dada em 1916 ostensivamente para a pesquisa sobre o esforço de guerra, mas no contexto da política anti-imigração e anti-trabalhista. Até a dé- cada de 1920 o NRC havia sido o palco de batalhas antropológicas entre “cientistas”, incluindo eugenistas, e discípulos de Boas (além de Herskovits foram concedidas bolsas para Margaret Mead (1901-1978), para seu trabalho sobre a adolescência em Samoa, e para o psicólogo Otto Kleinberg (1899-1992), para seu trabalho sobre a questão da “raça” e as diferenças intelectuais).4 Esses desenvolvimentos serviram para ampliar o programa de Boas. No caso de Herskovits, o tema central da pesquisa estava diretamente relacionado a um trabalho prévio de Boas sobre a plasticidade das características físicas na presença de forças aculturadoras no contexto dos Estados Unidos. Já foi dito que a pers- pectiva antropológica de Boas sobre “raça” era paradoxal, especialmente em sua relação com supostas diferenças “raciais” entre brancos e africa- nos-americanos, mas seus pontos de vista eram mitigados por seu humanitarismo liberal. Boas criticava a tipologia racial de sua época, mas operava como se a “raça” existisse e pudesse ser identificada ainda que suas características distintivas se entrepenetrassem.5 Herskovits iria herdar muito dessa propensão. A bolsa de estudos do NRC permitiu a ele se engajar em um projeto de pesquisa em Antropologia Física sobre os efeitos da miscigenação racial na forma corporal dos africanos-ameri- canos. A pesquisa foi conduzida em três locais: no Harlem e nas zonas rurais da Virgínia Ocidental, onde os assistentes de campo eram Zora Neale Hurston (1903-1960) e Louis E. King (1898-1981), e na Univer- sidade Howard, onde Herskovits, durante o ano de 1925, além de pesquisar, ensinava, envolvendo-se em trocas intelectuais com o filósofo Alain Locke (1886-1954), o biólogo Ernest E. Just (1883-1941), o soci-

ólogo E. Franklin Frazier (1894-1962) e o economista Abram L. Harris (1899-1963), que o ajudou a tirar medidas dos estudantes da Howard. Nos dois livros e nos muitos artigos que derivaram desta pesquisa, Herskovits argumentou que o “negro americano” era um “amálgama” racial, “destacável dos demais seres humanos”, em pleno processo de formação de seu próprio “tipo físico definido”, uma população “homo- gênea” com “baixa variabilidade” que, devido ao racismo norte-ameri- cano, estava-se tornando mais “negróide”.6 Assim, ele argumentou, como Boas antes dele, que em última análise eram as forças culturais america- nas que afetavam a “raça”. Boas, na verdade, construiu um argumento muito próximo ao “branqueamento” do nacionalismo latino-america- no.7 Ele advogava a “mistura racial”, e comparava a sina dos africanos- americanos com a dos judeus: “parece que, sendo o homem como é, o problema do negro não desaparecerá na América até que o sangue negro esteja tão diluído que não possa mais ser reconhecido, assim como o anti-semitismo não desaparecerá até que o último vestígio do judeu enquanto judeu desapareça”.8 Ao mesmo tempo, Herskovits utilizou a cultura para desmentir preconceitos racistas disseminados e para com- bater o nativismo da década de 1920 em um certo número de artigos na grande imprensa, mas ele o fez enquanto liberal, e certamente não en- quanto radical.

Herskovits foi contratado como professor assistente no Departa- mento de Sociologia da Universidade do Noroeste em 1927. Ele buscou recursos em uma série de agências financiadoras para um ambicioso estu- do sobre o que ele veio a denominar “o negro do Novo Mundo”, que combinava trabalho de campo em vários locais na América e na África. Esses pedidos foram rejeitados, de forma que ele dependeu do patrocínio de Parsons para realizar trabalho de campo no Suriname (1928 e 1929) e no Daomé (1931), e de pequenas doações de fundações para trabalhos de campo de verão no Haiti (1934) e em Trinidad (1939). Ele recebeu uma bolsa da Fundação Rockefeller para um ano de trabalho de campo no Brasil (1941 e 1942). Após seus primeiros escritos sobre o Harlem, que enfatizavam a “assimilação” de africanos-americanos à corrente principal da cultura dos Estados Unidos, Herskovits buscou em seguida docu- mentar “sobrevivências” culturais africanas em diversas declarações

programáticas.9 Essa dramática mudança de foco foi o resultado, como argumento em outro trabalho, das influências de Parsons e de interlocutores como Jean Price-Mars (1876-1969) no Haiti, Fernando Ortiz (1881-1969) em Cuba, Arthur Ramos (1903-1949) no Brasil, e Gonzalo Aguirre Beltrán (1908-1996) no México.10 Suas atividades não consistiam apenas em escrever, mas também, não menos importante, na tentativa de organizar e definir uma subdisciplina da Antropologia — por subdisciplina entendo o desenvolvimento definido de uma especia- lidade no interior de uma disciplina acadêmica, com a especificação de um conhecimento e uma formação específicas, a identificação de textos- chave, a formulação de histórias oficiais e a identificação de um corpo de especialistas, o que implica em manutenção de fronteiras — e, além disso, em todo um esforço de pesquisa interdisciplinar sob a rubrica do “negro do Novo Mundo”.11 Nas décadas de 1920 e 1930, Herskovits teve recusa- da uma série de pedidos de financiamento para levar a cabo extensos projetos de campo e desenvolver seu programa. Em 1938, ele fundou o Departamento de Antropologia na Universidade do Noroeste, tornan- do-se seu diretor e recrutando estudantes de pós-graduação que traba- lharam nas regiões das Américas com presença africana e na África.

Em 1936, Herskovits solicitou a Frederick P. Keppel (1875-1943), presidente da Carnegie Corporation, uma grande doação para financiar um projeto de pesquisa substancial na África, no Caribe e nos Estados Unidos. Ele não sabia que Keppel estava naquele mesmo momento ten- tando escolher alguém para dirigir um estudo de monta sobre o negro americano. Herskovits foi cotado para dirigir o estudo, mas rejeitado em seguida quando Keppel soube ser ele era uma pessoa com quem era difícil trabalhar. Keppel queria um pesquisador estrangeiro nos moldes de um Alexis de Tocqueville (1805-1859), e pediu sugestões a Herskovits. Ele respondeu que era importante que, se um estudioso estrangeiro ti- vesse que ser indicado como diretor do projeto, ele fosse de um país sem uma história de colonialismo, indicando seu amigo, o antropólogo suísso Alfred Métraux (1902-1963). Herskovits conspirou com outro amigo, o sociólogo Donald Young (1898-1977), para se tornar parte do projeto e dirigir uma equipe de cientistas sociais dos Estados Unidos; a dupla defendeu também a inclusão de africanos-americanos, tais como Abram

Harris, no projeto.12 Keppel terminou decidindo que alguém como Métraux escreveria para uma audiência acadêmica especializada, en- quanto o que era necessário era alguém familiar com a implementação de políticas públicas. E assim o economista sueco Gunnar Myrdal (1898- 1987) terminou sendo nomeado para dirigir o projeto, que resultou no clássico livro “An American Dilemma” (1944).13 Herskovits ficou furioso pelo fato de não ter sido nomeado diretor do estudo. Como seu antigo aluno, Alvin W. Wolfe (1928-), recorda, Herskovits achava que Myrdal havia sido apontado “de acordo com o princípio de que a ignorância é equivalente à objetividade”.14 Em essência, Myrdal não se importava com a abordagem de Herskovits em relação às “sobrevivências” cultu- rais africanas, e o próprio Herskovits não aprovava o fato de que a pes- quisa acadêmica fosse orientada para a elaboração de políticas públicas. Myrdal contratou trinta e um pesquisadores para escrever memoran- dos, incluindo Frazier, que tinha ido fazer trabalho de campo no Brasil, e Ruth Landes (1908-1991) que tinha acabado de retornar. Um certo número de estudiosos africanos-americanos foi incluído. Myrdal deci- diu incluir Herskovits por razões de política acadêmica. Seu memoran- do veio a se tornar seu trabalho clássico, “The Myth of the Negro Past” (1941), escrito em menos de um ano com a ajuda significativa de sua mulher e colaboradora Frances S. Herskovits (1897-1972).15

Em boa medida excluído do projeto da Carnegie, Herskovits foi convidado por Waldo G. Leland (1879-1966), secretário do Conselho Americano de Sociedades Letradas (American Council of Learned Societies

— ACLS), para promover uma conferência sobre os Estudos do Negro.

Era um esforço de enfrentar o Conselho de Pesquisa em Ciência Social (Social Science Research Council – SSRC), que vinha aconselhando a Carnegie Corporation acerca do projeto de Myrdal. A idéia da conferên- cia, realizada na Universidade Howard em 1940, e a formação do Comitê para os Estudos do Negro (Committee on Negro Studies), era promover os pontos de vista da ACLS sobre as Humanidades.16 Herskovits foi no- meado diretor de um comitê de oito estudiosos, que incluía Young, Klineberg, e o historiador Richard Pattee do Departamento de Estado dos Estados Unidos, amigo de Ramos e tradutor do seu “O negro brasi- leiro”,17 e amigo de Ortiz e Price-Mars. Apenas três membros do comitê

eram negros, como o lingüista Lorenzo Dow Turner (1895-1972), que tinha feito trabalho de campo no Brasil na década de 1940. A maior parte dos pontos de vista teóricos desses estudiosos estava de acordo com os de Herskovits. Quando Herskovits tentou expandir seu impé- rio, com a proposta da criação de um Comitê de Estudos Africanos e do Negro em conjunto com o ACLS, o NRC e o SSRC, este último recu- sou-se a participar, e em razão disso o ACLS limitou a alçada do comitê à história, à literatura e à cultura dos negros na América. Durante a década em que o comitê funcionou, ao longo da qual houve inclusões e saídas de pesquisadores, alguns dos membros negros pressionaram por uma abordagem mais ativista da pesquisa e pela organização de uma conferência sobre a discriminação contra acadêmicos negros. No rastro dessa conferência, em 1950, o comitê se dissolveu — o que é algo irônico, dada a visão de Herskovits sobre a aplicação da Antropologia. Ele não era muito simpático à aplicação da Antropologia quando feita em favor de alguma organização ou grupo, pois acreditava que tal atitude amea- çava a objetividade científica do antropólogo.18 Mas o objetivo geral de seu “The Myth of the Negro Past” havia sido fornecer documentação para prover os negros de orgulho por seu passado, e informar os brancos deste passado de forma a “influenciar a opinião generalizada sobre as habili- dades e potencialidades dos negros, e assim contribuir para uma dimi- nuição das tensões inter-raciais”.19

Durante a década de 1940, Herskovits esteve envolvido, junto com Pattee, Ortiz e outros, na fundação, na Cidade do México, do Instituto de Estudos Afro-Americanos, de curta existência, e no periódico

Afroamérica, do qual apareceram apenas duas edições. Em 1945, ele se

tornou presidente da Sociedade Americana de Folclore (American

Folklore Society) e o editor do Journal of American Folklore. Entre 1948 e

1952, foi o editor do American Anthropologist. Foi também o diretor do Comitê para a Cooperação Internacional em Antropologia do NRC en- tre 1945 e 1946, e em 1950 editou o “International Directory of

Anthropologists”.20 Em 1958, foi o presidente da Associação de Estudos

Africanos (African Studies Association). O fato de que ele nunca tenha ocupado o posto de presidente da Associação Antropológica Americana (American Anthropological Association) pode ser um indicador dos efei-

tos do anti-semitismo na academia.21 Durante a segunda guerra mun- dial, Herskovits trabalhou como conselheiro para o Departamento de Estado dos Estados Unidos a respeito da África, e posteriormente mi- nistrou um curso de formação para diplomatas. Em 1948, fundou o Programa de Estudos Africanos na Universidade do Noroeste, com uma doação da Carnegie, e uma série de bolsas oferecidas por fundações tais como o SSRC, a própria Carnegie, a Rockefeller e a Fulbright permiti- ram a ele enviar estudantes de pós-graduação para a África ocidental. Isso não desviou sua atenção do negro do Novo Mundo; ele via a pesqui- sa na África como fundamental para os estudos da presença africana nas Américas, e publicou um panorama definidor do campo em 1951.22

Ao longo de todo esse tempo, Herskovits patrulhava as fronteiras dos estudos sobre o “negro do Novo Mundo”, auxiliando aqueles que compartilhavam sua perspectiva teórica culturalista. Ele enviou alunos para Ortiz, Ramos, Price-Mars e outros, e colocou-os em contato uns com os outros, traçando uma linha divisória entre aqueles que ele consi- derava formados e aqueles que percebia serem “amadores”.23 Por outro lado, ele buscava desautorizar aqueles que não partilhavam de seus pon- tos de vista ou que lhe pareciam estar tentando imiscuir-se no território de seu campo. Pro exemplo, W. E. B. du Bois (1868-1963) havia-se pro- posto, ainda em 1931, a editar uma “Enciclopédia do Negro”, mas Herskovits, preocupado com a possibilidade de envolvimento de ativistas e em conseqüência com ameaças à cientificidade do trabalho, engajou-se de forma secreta em uma campanha de cartas para minar o projeto, ainda que mantivesse boas relações com du Bois e houvesse utilizado a biblioteca particular deste para a pequisa de sua tese de doutoramento.24 King, assistente de Herskovits no estudo do NRC, candidatou-se a uma vaga como aluno de du Bois na Universidade de Atlanta, mas seu antigo professor escreveu uma carta extremamente crítica de suas habilidades, impedindo qualquer possibilidade de conti- nuação de sua carreira acadêmica.25 E Herskovits, apesar de ter inicial- mente apoiado o trabalho de campo de Katherine Dunham (1909-) no Caribe, deixou de fazê-lo quando ela se iniciou na religião vodu; assim como desaconselhou os estudos produzidos por Hurston sobre a Jamaica e o Haiti.26 Todos esses casos envolviam africanos-americanos, o que le-

vanta a questão de saber se Herskovits pensava que estudiosos negros não podiam ser objetivos o suficiente para praticar a Antropologia nas regi- ões das Américas com presença africana.27 Mas os excluídos não eram apenas os negros. Junto com Ramos, Herskovits trabalhou para excluir Landes e suas perspectivas divergentes.28 Ramos revisou o trabalho de Landes para o projeto de Myrdal em termos extremamente críticos.29 Herskovits agiu com igual menosprezo.30 Ainda que esses acontecimen- tos pudessem ser interpretados de maneira mais pessoal, como fez a pró- pria Landes, o que estava realmente em jogo em tudo isso era a criação e a defesa de uma reserva acadêmica particular, o cerrar fileiras, o confronto acerca do significado.31 Em resumo, a imposição de uma ortodoxia.

Herskovits, os antropólogos brasileiros e a Antropologia

No documento Projeto UNESCO no Brasil: textos críticos (páginas 154-161)