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Grata lembrança de Marvin Harris

No documento Projeto UNESCO no Brasil: textos críticos (páginas 95-104)

Waldir Freitas Oliveira*

O autor relembra a figura do antropólogo Marvin Harris, de quem

ouviu falar, pela primeira vez, em 1952, nas aulas de Antropologia, na Fa- culdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, pelo então seu pro- fessor Thales de Azevedo. Fala, a seguir, do convênio firmado entre a UFBa, Governo do Estado da Bahia e as universidades americanas de Columbia, Harvard, Cornell e Illinois, para realizar, na Bahia, pesquisas de campo na área da antropologia, do qual então participou Marvin Harris, atuando em Rio de Contas, na área da Chapada Diamantina.

Esclarece, finalmente, como, por intermédio de Thales de Azevedo, veio a conhecê-lo, mais tarde, em 1992, quando dele recebeu e aceitou o convite para participar de uma nova pesquisa de campo que iria realizar naquela mesma cidade, ali havendo permanecido por dois meses, em sua companhia eventual e contando com a presença permanente da Prof.ª Josildeth Consorte, a dirigente dos trabalhos então efetuados, visando discutir a pertinência, por ele contestada, dos critérios adotados pelo Governo brasileiro, em seus Censos Demográficos, para identificar e denominar os tipos raciais componentes da população do país.

Ouvi, pela primeira vez, o nome de Marvin Harris, há 51 anos, em 1952, quando era aluno do Mestre Thales de Azevedo, em suas aulas de Antropologia, no curso de Licenciatura em Geografia e História, na

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Falou-me, com entusiasmo, do Programa de Pesquisas Sociais Estado da Bahia-Columbia University, da sua “função estimuladora do interesses pelos estudos antropológicos científicos na Bahia”, e princi- palmente da oportunidade que abria “para o treinamento avançado de quase uma dezena de estudantes brasileiros da Bahia e do Rio”, os quais, depois de tomarem parte no trabalho de campo, tanto na busca biblio- gráfica e arquivística, como na elaboração e interpretação de dados do Programa deveriam completar sua formação no Rio de Janeiro, em São Paulo, nos Estados Unidos e na França.

A Bahia fora escolhida como um dos centros do Programa de Trei- namento de Campo resultante do convênio firmado entre a Universi- dade Federal da Bahia e as Universidades norte-americanas de Columbia, Harward, Cornell e Illinois. Quatro localidades foram escolhidas para sua instalação: – a própria Cidade do Salvador, a capital do Estado, São Francisco do Conde, no Recôncavo, Feira de Santana, porta de entrada dos sertões do norte, e Rio de Contas, na Chapada Diamantina. Foi, então, que ouvi falar de Marvin Harris, professor da Columbia University, que iria trabalhar naquela cidade da Chapada e soube, então, com gran- de satisfação, que um dos alunos do Mestre Thales iria acompanhá-lo, participando de suas pesquisas – Josildeth da Silva Gomes (hoje Josildeth Consorte), que se diplomara em Geografia e História, em 1953, dois anos antes da minha graduação.

Somente conheci, pessoalmente, um dos professores americanos que para cá vieram – Harry William Hutchinson, a quem todos chamavam, intimamente, Bill, que efetuaria suas pesquisas em São Francisco do Conde, e me foi apresentado, naquela Faculdade, pelo próprio Thales de Azevedo. Invejei, naquela ocasião, a sorte de Josildeth, por haver tido a bela oportunidade que soube aproveitar muito bem, graças à sua competên- cia, da qual falava sempre o nosso Mestre Thales. Nunca imaginei, con- tudo, que iria, um dia, também, parar em Rio de Contas, a fim de ali trabalhar com Marvin Harris e a própria Josildeth Gomes; o que, no entanto, aconteceu, como passarei a explicar.

Em primeiro lugar, esclareço não haver sido através do estudo da Antropologia que vim a ampliar meus conhecimentos na área das ciên-

cias sociais. Foi seguindo o caminho da Geografia Humana e Econômi- ca que consegui fazê-lo, havendo continuado a minha formação, com curso de especialização nesta disciplina, realizado na França, na Univer- sidade de Estrasburgo.

Tornara-me professor de Geografia Regional, no Curso de Goegrafia e História, na própria Faculdade onde me graduara; e viera, a seguir, a exercer, durante onze anos, a direção do Centro de Estudos Afro-Orien- tais, onde cheguei a convite de George Agostinho da Silva, no próprio ano de sua fundação, havendo tido a honra de substitui-lo como Dire- tor, quando da sua partida da Bahia, em 1961, assim havendo permane- cido até setembro de 1972; havendo fundado, a esse tempo, a revista

Afro-Ásia, corajosa e brilhantemente mantida em circulação até os

nossos dias, por esse Centro de Estudos.

Quando da célebre, e acredito desastrosa reforma da Universidade, concluída em 1968, em razão da qual veio a perder o Centro de Estudos Afro-Orientais, a prerrogativa que possuía de ter seu próprio corpo do- cente, meu cargo de professor de Geografia Regional da África e Ásia deixou de existir e fui forçado a transferir-me para o Curso de História da Faculdade de Filosofia, onde passei a ensinar as disciplinas História da Cultura e História Medieval.

Foi, nessa época, com a responsabilidade que passei a ter do ensi- no de História da Cultura que passei a dar novos passos, não mais como aluno, mas agora como professor, sobre os caminhos da Antropologia. Trazia comigo uma boa bagagem – tudo que aprendera de Geogra- fia, de modo especial na prática de trabalho de campo, por mim adqui- rida graças à participação em sucessivas Assembléias Gerais de Geógrafos, realizadas pela AGB, a cada ano, em alguma cidade do país; mais o conhecimento que adquirira sobre as culturas africanas e asiáticas, bem mais sobre as africanas, em razão da minha longa permanência na dire- ção do Centro de Estudos Afro-Orientais, onde convivi ou mantive contactos freqüentes com grandes especialistas em estudos sobre o ne- gro africano e o negro brasileiro, como os saudosos Édison Carneiro, Pierre Verger e Clóvis Moura e o insuperável e sempre ativo Vivaldo da Costa Lima; também, contudo, com o Prof. Rolf Reichert, islamólogo de reconhecida competência, com quem muito aprendi e de quem, infe-

lizmente, não tenho notícias já faz muito tempo; contando, ainda, com a freqüente presença, ao meu lado, sempre atentos a tudo que eu fazia ou escrevia, dos meus inesquecíveis mestres e amigos Thales de Azevedo e José Calasans Brandão da Silva.

Além de já haver participado, dadas tais circunstâncias, de dois Congressos Internacionais de Africanistas, o primeiro, o realizado em Acra (Gana), em 1962; o segundo, em Dacar (Senegal), em 1966; e de haver tido, por esse motivo, a oportunidade de visitar, no curso de três viagens, seis países da chamada África Negra, neles havendo conhecido pessoalmente, e conseguido com eles manter, desde então, contactos constantes, grandes antropólogos, sociólogos e historiadores que neles atuavam, dos quais guardo, de modo especial, a lembrança de Vincent Monteil, o eficiente e competente diretor do IFAN (Institut Fondamental

de l´Afrique Noire, o ex-Institut Français de l´Afrique Noire), em Dacar.

Veio-me, então, à cabeça, traçar um plano que me permitisse co- nhecer melhor as várias culturas baianas, indo além das predominantes no Recôncavo, área sobre a qual já efetuara algumas pesquisas, todas, contudo, de caráter geográfico. Sabia bem, seguindo os meus critérios de análise e escolha, serem diferentes os modos de pensar e proceder dos habitantes de outras regiões, tais como os da zona do cacau, do sertão semi-árido do norte, do vale do São Francisco e da Chapada Diamantina. Decidi, então ser por ali que eu começaria os meus estudos.

Uma simples circunstância me levara, pela primeira vez, a Lençóis. Ao escrever a biografia de Antônio de Lacerda, o idealizador e constru- tor do Elevador da Conceição, que hoje possui o seu nome e completou, no último dia 8 de dezembro, 130 anos de existência, tive a oportunida- de de ler todo o processo de Inventário do seu pai, Antônio Francisco de Lacerda, um dos homens mais ricos que já viveram na Bahia, e relacioná- lo, até certo ponto, com o comércio de diamantes na área da Chapada. Fui até lá para tentar apurar cousas que somente pressentia, sem delas ter qualquer certeza. Descobri, então, entre outras cousas, que o tão falado “Consulado Francês” em Lençóis nunca existira, havendo os moradores daquela cidade, assim designado a casa de residência de Edouard Callebaut, cidadão de nacionalidade francesa, genro de Antô- nio Francisco de Lacerda, e que era ali conhecido como grande compra-

dor de diamantes, que eram, a seguir, exportados, sem que eu haja con- seguido descobrir, até hoje, como e em que quantidade, para a França e a Holanda; e ainda, que fora Antônio Francisco de Lacerda, sem outra razão aparente a não ser sua participação nesse negócio, grande propri- etário em Lençóis, tendo ali possuído mais de uma centena de casas, infelizmente não descritas em detalhes, no Inventário, o que me impos- sibilitou poder avaliar-lhes as proporções e a qualidade de construção Lençóis abriu-me, pois, as portas da Chapada como área de estu- do. Visitei-a várias vezes. Estive, também, em seus arredores, em Andaraí, Igatu, a antiga Xique-Xique, e Mucugê. Fui, depois, a Morro do Cha- péu. Cada vez mais, a Chapada me impressionava. Chegou, afinal, a vez de ir a Rio de Contas, já em fins da década dos anos 80.

Passei, desde então, a ir até lá, quase anualmente. Deslumbrei-me com a sua paisagem e fiquei surpreendido pela riqueza dos seus arquivos, nos quais centenas ou talvez milhares de documentos da maior impor- tância para a reconstituição da História da Bahia e do Brasil, de modo essencial, a da Chapada Diamantina continuam, até hoje, sem terem sido consultados por qualquer pesquisador. Chamei, então, a mim, a missão de contribuir, de algum modo, para preservá-los, realçando a sua impor- tância junto à Diretoria do Arquivo do Estado da Bahia e até mesmo tendo conseguido impedir que determinada autoridade local mandasse colocar em caminhão e conduzir para Salvador, sem maiores cuidados, todo o precioso arquivo judiciário da comarca de Rio de Contas, sob a alegação de estar precisando do espaço por ele ocupado no prédio do Fórum. Tenho, agora, o dever de comunicar a todos, que os arquivos de Rio de Contas se encontram, finalmente, a salvo, com a inauguração recente do seu Arquivo Municipal, com instalações que ainda não co- nheço, mas que me garantiram ser da melhor qualidade. Considero, en- tão, que uma parte pequena do mérito por sua salvação cabe, sem dúvida, à essa minha participação, fazendo, aqui, questão de registrá-la.

Foi, então, que recebi do mestre Thales de Azevedo, que acompa- nhava a minha luta em favor da história de Rio de Contas, a notícia do retorno à Bahia, de Marvin Harris, em 1992, e o convite para ir conhecê- lo. Àquela altura já lera, pelo menos três vezes, o seu livro Town and

University, resultado da pesquisa de campo por ele ali realizada entre julho de 1950 e junho de 1951, confrontando tudo o que nele afirmara, com a realidade que eu próprio ali encontrara, trinta e tantos anos de- pois, pensando, então, em traduzir esse livro, e anotar seu precioso texto. Após haver conhecido Marvin Harris, no velho prédio de São Lázaro, recebi seu convite para uma conversa, no Hotel da Bahia, onde ele se hospedara. Pretendia fazer, na época, quase exatamente, o que eu também desejara. Algo maior, no entanto, o preocupava mais que tudo. Envolvera-se numa polêmica com o sociólogo Carlos A. Hasenbalg, a respeito da identificação dos tipos raciais na população brasileira, aquela que, com seu prestígio político, conseguira que se tornasse oficial nos Recenseamentos brasileiros; dele discordando, de modo frontal, por haver pretendido estabelecer, em seu livro Race relations in post-abolition

Brazil: the smooth preservation of racial inequalities, um vínculo causal

direto entre escravidão e relações raciais, criticando, principalmente, o modo como tentara Hasenbalg reconhecer e impor seu ponto de vista sobre os tipos raciais na população do país. Queria, então, tomando por base os estudos que fizera anteriormente em Rio de Contas e os que iria realizar, naquela ocasião, valendo-se, agora, de novos métodos de pes- quisa, invalidar as conclusões às quais chegara aquele sociólogo.

Convidou-me, então, para participar daquela missão, levando em conta o que sobre mim ouvira dizer, pelo Mestre Thales de Azevedo e, de modo especial, reconhecendo válidas, as informações que dele e ou- tros recebera acerca do conhecimento que eu passara a ter da história daquela cidade e região, naqueles últimos anos. Disse-me, então, que ao meu lado, na equipe de trabalho que montara, eu teria a companhia da Prof.ª Josildeth Consorte, sua ex-aluna na Columbia University e fora a pessoa que o acompanhara quando das suas primeiras pesquisas em Rio de Contas, em quem depositava a maior confiança; e seria, por isso, a supervisora dos trabalhos a serem realizados, com mais três auxiliares, estudantes de Ciências Sociais por ela indicados, que se encarregariam da aplicação dos questionários e das planilhas por ele idealizados.

Desnecessário é dizer que aceitei, exultante, o seu convite; haven- do partido, quase imediatamente, para Rio de Contas, antes mesmo de me haver sido concedida a aposentadoria que pleiteara, da Universidade

Federal da Bahia; ali havendo permanecido durante dois meses, somente, contudo, havendo contado com a presença de Marvin Harris, por alguns poucos dias, no curso de duas semanas não sucessivas. O que não impediu, contudo, que pudéssemos ter mantido, nesses curtos dias, proveitosas e longas conversas.

Creio que os resultados por nós então obtidos serviram de base para a elaboração do artigo “Who are the Whites? Imposed Census Categories and

the Racial Demography of Brazil”, publicado em dezembro de 1993, na

revista norte-americana Social Forces, no qual figurou como autora, Josildeth Gomes Consorte, em colaboração com Marvin Harris, Joseph Lang e Bryan Byrne. Nunca vi, infelizmente, um único exemplar dessa revista. Pelo que não sei se constou desse artigo, alguma menção a respeito da minha parti- cipação naquela pesquisa, realizada em 1992, em Rio de Contas.

Não mais me comuniquei com Marvin Harris, depois do término desses trabalhos de campo; e, tempos depois, surpreendeu-me a notícia do seu falecimento, que me foi dada por Paulo Ormindo de Azevedo, saben- do, hoje, que ocorreu em Gainesville, na Flórida, a 25 de outubro de 2001. Conservo comigo cópias de grande parte do trabalho realizado por aquela equipe, ao menos da parte da qual participei, colhendo informa- ções nos arquivos de Rio de Contas. Guardo, também, considerável quan- tidade de informações que obtive para uso próprio, pretendendo utilizá- las em trabalhos que ainda desejo escrever sobre Rio de Contas, não referentes, de modo direto, ao trabalho para o qual fui convidado por Marvin Harris, versando, principalmente sobre as comunidades negras locais e as supostamente brancas, que habitaram e ainda habitam o dis- trito de Mato Grosso, e uma intrigante e freqüente relação mantida no passado, como comprovei pela leitura de antigos documentos em Rio de Contas, hoje, no entanto, praticamente inexistente, com uma outra localidade da Chapada, onde aliás, infelizmente, nunca consegui che- gar, a do Morro do Fogo, situada no município de Paramirim, o antigo município de Água Quente.

Que poderei dizer, agora, finalmente, sob um ponto de vista estri- tamente pessoal, sobre Marvin Harris? Muito pouco, em verdade, pois não cheguei a conhecê-lo bem. Em nossas conversas, mantinha-se sem- pre muito reservado, demonstrando, contudo, ter para comigo, alguma

estima. As dedicatórias que para mim escreveu na segunda edição de

Town and Country in Brazil, a de 1971, publicada pela Norton Library e

em sua obra – Our Kind. Who we are, we came from & where we are going, publicada, em New York, em 1990, pela Harper/Collins Publisher, bem demonstram esta estima.

Lembro-me, no entanto, de algo especial que se passou entre nós. Certa feita, quando conversávamos a respeito do que se convencionou chamar sobrenatural, ele percebeu que eu não me mostrava muito segu- ro a esse respeito, e dirigiu-se a mim, com ar enérgico, direi mesmo, impetuoso, dizendo: — “ Por favor, não vá agora me decepcionar!” Le- vantou-se, então, da mesa em torno da qual conversávamos, foi até seu quarto, e de lá regressando, ofereceu-me, com sugestiva e amável dedica- tória, um exemplar do Our Kind, recomendando-me a leitura imediata de alguns dos seus capítulos, por ele, na hora, assinalados. Disse-me, então, não querer que eu continuasse a ter dúvidas sobre aquele assunto. Este incidente não me trouxe qualquer constrangimento. Muito ao contrário, fez-me ver o quanto ele me admirava e queria me ver pen- sando como ele. Ele assumira, naquele instante, a condição de professor, e eu me tornara, aos seus olhos, um seu discípulo, apesar dos meus então já contemplados 63 anos. Isto me fez muito bem e me encheu de orgu- lho e satisfação. Esta é, sem dúvida, a melhor lembrança que guardo de Marvin Harris.

(Salvador, Bahia, 2003)

Nota

Redes, figuras

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