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2 A RELIGIOSIDADE DO MUNDO AFRICANO: TRADIÇÃO, ISLAMISMO E

4.2 O comércio no Atlântico

A despeito do interesse europeu pelo oceano Atlântico, fico com a apreciação de M’Bokolo (2009), no qual aborda a problemática das razões contrárias de que tal interesse não tenha se iniciado com os europeus, em específico com a península ibérica. Ele apresenta, em contrapartida, os motivos pelos quais, o período do “descobrimento” foi, por muito tempo, imbuído de “romantismo lusitano, de triunfalismo eurocêntrico e de nostalgia hispânica”.

Em primeiro lugar, muito antes dos portugueses, os navegadores árabes tentaram durante muito tempo explorar as costas ocidentais africanas. Em segundo lugar, sabe-se hoje que os próprios africanos não alimentaram, nas relações com o mar, a irreprimível fobia que lhes foi durante muito tempo atribuída. Não só o mar começou a ser cedo objeto de uma exploração atenta, mas, em certas regiões, houve navegadores que tentaram a exploração. [...]

Em terceiro lugar, a abertura do Atlântico foi uma operação de grande fôlego durante a qual a sede de ouro e a busca das especiarias, a audácia de navegadores portugueses, assim como de espanhóis e de italianos, interessados no lucro das operações, os lentos progressos técnicos e o conhecimento progressivo do terreno acumularam os seus efeitos (M’BOKOLO, 2009, p. 257).

Por outro lado, esse período não pode ser simplificado como o período das “grandes descobertas” ou como o período das “grandes navegações”, como são intitulados em livros didáticos, como se em um “passe de mágica” surgissem heróis navegadores e reinos que investiam numa repentina iniciação científica. Outrossim, tem-se um quadro tolhido por questões econômicas e sociais, as quais não estenderei o debate, mas vale salientar o surgimento de uma classe de comerciantes que ascendeu no período da revolução portuguesa (1383-1385); o estado de penúria de alguns territórios na África; a ganância pelo ouro; a crise do açúcar nas ilhas Canárias, Madeira, Açores e São Tomé; as primeiras experiências da mão de obra escrava nas plantações de cana-de-açúcar nessas ilhas.

Havia um interesse intenso e progressivo pelo comércio no Atlântico e dentre as mercadorias que despertavam interesse aos espanhóis e portugueses, era o comércio de escravos, o qual só findou no final do século XIX.

O movimento no comércio de trocas (séculos XV e XVI) evoluiu para um comércio regular que significou aos cofres reais um avanço financeiro que levou adiante as “tarefas da descoberta da África”. Também recuperou os investimentos da coroa que tinham sido empregados para manter a captura dos negros.

As rotas do tráfico negreiro que se deram a partir do século XV e se estenderam até o século XVIII podem ser visualizadas na Figura 09. A África passa a partir daquele momento a não só abastecer o mundo islâmico, como também o mundo cristão, encaminhando homens, mulheres e crianças para todas as partes do mundo, principalmente as do chamado novo mundo – a América.

Figura 09 – Os tráficos negreiros nos séculos XV-XVIII

O tipo de escravatura ocorrido na costa da África e utilizado nas plantações de cana- de-açúcar nas ilhas Canária, Madeira, Santiago e São Tomé foi imitado pelos portugueses no Brasil e pelos espanhóis na América do Sul e Central.

[...] o tráfico transportou primeiro para a América escravos principalmente brancos, originários de Espanha ou, em menor medida, da África do norte. Em 1503, os raros escravos negros empregados em Hispaniola revoltaram-se [...] refugiaram-se junto aos índios [...] o que travou a introdução dos negros na ilha. [...] Mais ou menos em 1510, o movimento ampliou-se, mobilizando números cada vez mais elevados. Com efeito, numerosas vozes começavam a denunciar os abusos a que levava a exploração dos índios da América, particularmente nas minas. Foi decidido substituí-los por negros. Em 1511, os primeiros negros foram introduzidos no Panamá. [...] Foi em 1518 que se realizou o primeiro transporte direto da África para as Antilhas: a coroa espanhola tinha autorizado o transporte de 4 mil negros [...] (M’BOKOLO, 2009, p. 272).

Fato é que, o comércio de negros africanos tornou-se lucrativo para os grandes Estados europeus. A mão de obra escrava passa, progressiva e crescentemente a ser utilizada nas minas de ouro e prata e nas plantações de cana-de-açúcar, posteriormente, tornando-se um comércio lucrativo para os donos das grandes plantações e para os traficantes de homens negros.

A historiografia mais europeizada nos diz que em princípio, o tráfico de escravos para o Novo Mundo foi monopolizado pelos Estados da península ibérica (Espanha e Portugal), muito embora, navegadores não ibéricos tenham também se envolvido nessa tarefa dos “descobrimentos”, tanto que portugueses e espanhóis tiveram dificuldades no controle da situação.

Primeiramente as várias marcações, a exemplo do tratado de Tordesilhas, que dificultou a definição das terras para espanhóis e portugueses, uma vez que as terras do novo mundo ficavam, basicamente, em posse dos espanhóis e a mão de obra escrava sob o domínio dos portugueses.

Ao mesmo tempo, o chamado sistema de asientos, licença estabelecida no contexto das práticas ibéricas, dava direito aos dois Estados (Espanha e Portugal) a comercializar negros da África. No entanto, abria uma prerrogativa aos particulares, no sentido de que estes podiam comercializar escravos desde que obedecendo a um certo controle:

[...] uma licença dava o direito de importar apenas um negro na América, 10 licenças o direito de importar 10, etc. O asiento pelo contrário, dava ao seu beneficiário o direito exclusivo de importarum certo número de escravos num período determinado, que podia ser de vários anos (M’BOKOLO, 2009, p. 276).

Obviamente que os demais comerciantes europeus não iriam ficar de fora desse grande negócio e das manobras para isso, a partir do momento que estrangeiros começaram a adquirir os asientos, dando fim ao monopólio. “[...] verificava-se que o monopólio reservado aos espanhóis só existia no papel, já que o direito de comprar e explorar as licenças foi reconhecido aos estrangeiros (M’BOKOLO, 2009, p. 277)”. Além dessas negociações, dentro da “legalidade”, inicia-se um outro processo, que é o da pirataria, que envolvia franceses, holandeses, ingleses – grandes Estados europeus. Mais para a segunda metade do século XVII, pequenos Estados, como Dinamarca, Suécia, Brandemburgo, as cidades alemãs livres e a Corlândia, se envolveram no comércio dos negros. Assim, ficaram os Estados ibéricos impossibilitados de controlar o comércio negreiro no Atlântico.

O envolvimento de Portugal com o tráfico relacionava-se basicamente com o Brasil, tanto para atender as demandas das plantações de cana-de-açúcar quanto para atender o setor mineiro. Os navios negreiros saiam dos portos de Luanda e Benguela. Aqui no Brasil, aportavam nos portos da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro (Ver Figura 09), obrigatoriamente. Os plantadores comercializavam os escravos diretamente da África, sem negociar com os navios europeus. Assim, adquiriam os escravos mais baratos. Foi um direito adquirido desde 1559, limitados a 120 escravos para cada plantador.

A bordo dos tumbeiros31, vários negros morriam. Na viagem aconteciam revoltas, suicídios, doenças parasitárias, escorbuto, choque da passagem à situação de servidão, choque com a partida para um mundo desconhecido, outros se suicidavam na chegada ao novo mundo. Assim, calcula-se que havia uma perda de cerca de 22% dos negros nessas viagens. M’Bokolo (2009, p. 294-295) cita Fréderic Mauro:

Os homens estavam empilhados no fundo do porão, acorrentados, por medo de que se revoltassem e matassem todos os brancos a bordo. Às mulheres estava reservada a segunda entreponte. As que estavam grávidas eram concentradas na cabina da ré. As crianças estavam empilhadas na primeira entreponte como arenques num barril. No caso de quererem dormir, caíam uns em cima dos outros. Para satisfazer as necessidades havia sentinas mas, como muitos receavam perder o seu lugar, aliviavam-se onde se achavam, sobretudo os homens cruelmente acumulados de tal modo que entre eles o calor e o cheiro se tornavam insuportáveis.

Paralelo ao tráfico de negros havia também o interesse por outros produtos da África, como o ouro e algumas especiarias, não só por parte dos portugueses, mas de outras potências europeias da época. “[...] os homens nunca representaram a única mercadoria do comércio, sendo contudo sem dúvida a mais procurada. [...]” (M’BOKOLO, 2009, p. 318). Assim que,

31 Navios negreiros portugueses.

nos finais do século XVIII, quando o tráfico negreiro já não se caracterizava como um futuro rentável, o comércio desses produtos (marfim, ouro, malagueta, madeira para fins diversos, peles, azeite de dendê, goma, tecidos) manteve as negociações entre África e Europa.

A experiência de portugueses e espanhóis era anterior à instituição da escravidão na América Latina por pelo menos um século. A experiência dessas duas potências é, inclusive, maior que a experiência dos franceses e ingleses. O Brasil foi o maior importador de escravos africanos: “Ao longo de todo o período de tráfico negreiro, este país recebeu cerca de 38% do efetivo total de africanos introduzidos no Novo Mundo” (KNIGHT; TALIB; CURTIN, 2010, p. 890).

Vários autores, a exemplo de Silva (2005), afirmam que as principais etnias africanas que vieram para o Brasil, na época de sua colonização, foram os grupos sudaneses e bantus. (1) Os sudaneses vindos da África Ocidental (hoje Nigéria, Benin e Togo), se concentraram nas regiões da Bahia e Pernambuco, por volta do século XVII até o XIX. Os grupos étnicos que formavam essa região eram, basicamente, os iorubás ou nagôs e jêjes (ewe ou fon). Por sua vez, os nagôs eram subdivididos em ketu, ijexá, egbá, entre outros. Os hausás, tapas, peuls, fulas e mandingas também faziam parte do grupo dos sudaneses. Estes eram nações islamizadas. Concentraram-se na região açucareira da Bahia e de Pernambuco, por volta do século XVII até meados do século XIX; (2) os bantus, vindos das regiões, onde hoje se localizam o Congo, Angola e Moçambique, se instalaram por quase todo o litoral brasileiro, Minas Gerais e Goiás, em fins do século XVI até o XIX, eram formados por angolas, caçanjes, bengalas, entre outros. De acordo com Silva (2005), foram os bantus quem mais influenciaram a cultura brasileira. Influenciaram na música, na língua, na culinária etc.