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4 EDIÇÃO CONSERVADORA: FIDELIDADE TEXTUAL

4.2 COMENTÁRIO SOBRE A REVISÃO

Segundo Tavani (1988), quando não se dispõe de um texto fidedigno, todas as operações hermenêuticas e críticas podem se tornar arbitrárias, intempestivas e inseguras. Assim, no intuito de garantir a qualidade das análises e edições produzidas, revisou-se a edição conservadora dos sermões que são objeto deste estudo, preparada em 2009 pelo Grupo de Pesquisa do Mosteiro de São Bento da Bahia.

Sabe-se que no processo de transmissão de um texto podem ocorrer dois tipos de modificações: exógenas, derivadas, fundamentalmente, da corrupção do material, e endógenas, advindas do processo de reprodução do

texto (CAMBRAIA, 2005). A partir da descrição intrínseca e extrínseca dos sermões de Frei Domingos pôde-se perceber que alguns fólios estão deteriorados, com manchas e corrosões no papel. Essa corrupção do papel dificultou a transcrição dos sermões, se configurando como uma das prováveis razões de alguns erros encontrados na edição de 2009.

Quadro 14 – Modificação exógena

CORRUPÇÃO FAC-SÍMILE EDIÇÃO

2009 EDIÇÃO 212 mancha por tinta São Sebastião, 2r, l. 7 fazer fazia mancha por tinta

Nossa Senhora de Montserrat, 1r, l. 24

dividas devidas clareamento da tinta Sobre o Escândalo, 2r, l. 10 [†] se deve se clareamento da tinta Sermão de Misericórdia, 1r, l. 14 S(e)n(h)or Ceo

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Quanto às modificações endógenas, nesse processo de revisão, foram consideradas apenas as não-autorais involuntárias, também conhecidas como erro de cópia, ou seja, aquelas ocorridas por lapso de terceiros (CAMBRAIA, 2005, p. 10). Entende-se como erro “qualquer desvio, qualquer inovação num

texto original” (CUNHA, 2004, p. 330). Acredita-se que o fato de a edição conservadora dos sermões de Frei Domingos ter sido feita a seis mãos contribuiu para tais ocorrência.

Um erro bem comum entre os copistas, em geral, é o salto-bordão, assim caracterizado:

Quando há no modelo utilizado para a cópia duas palavras iguais em pontos diferentes de uma mesma página de um manuscrito ou impresso, não raramente costuma-se saltar o texto que há entre essas duas palavras. Isto dá-se porque o copista não percebe que, ao retornar os olhos para o modelo, após ter registrado na sua cópia a primeira ocorrência da palavra em questão, seus olhos se fixam em uma palavra igual, mas em um ponto situado adiante no modelo (CAMBRAIA, 2005, p. 10).

No fólio 3r, l. 20-21, de São Sebastião, não se tem duas palavras iguais mas a semelhança gráfica da sua terminação pode ter sido a causa do erro na transcrição:

Quadro 15 – Modificações endógenas: salto-bordão

EDIÇÃO DE 2009 EDIÇÃO REVISADA

fac-símile São Sebastião, 3r, l. 20-21

Este socorro vencerão os estímulos da carne

Este socorro tão á proposito decidia a vic toria, e eles vencerão os estímulos da carne Fonte: Arquivo pessoal da autora

No sermão Nossa Senhora de Montserrat, 4r, as linhas 8 e 9 se iniciam por uma palavra semelhante, <delicias> e <Selicias>, respectivamente, gerando o salto-bordão.

Quadro 16 – Modificações endógenas: salto-bordão em Nossa Senhorade Montserrat

EDIÇÃO DE 2009 EDIÇÃO REVISADA

fac-símile Nossa Senhora de Montserrat, 4r, l. 8-12

delicias de seu festim.

Finalm(ent)e todos estão expostos á mi-

delicias de seu festim.

Sedicias é levado captivo p(ar)a Babi- lonia sem ao menos ter olhos p(ar)a chorar sua desgraça.

Finalm(ent)e todos estão expostos á mi- Fonte: Arquivo pessoal da autora

Outro fator que pode ocasionar a modificação endógena involuntária é a semelhança gráfica entre algumas letras e palavras. Frei Domingos grafa, por exemplo, a abreviatura das palavras “por”, “pois” e “para” de forma muito parecida. As letras <r>, <s> e <z>; <p>, <f> e <ss>; <n>, <m> e <u>; <l> e <t> se assemelham bastante.

Quadro 17 – Modificações endógenas causadas por semelhança gráfica

EDIÇÃO DE 2009 EDIÇÃO REVISADA

fac-símile Nossa Senhora de Montserrat, 1r, l. 18

antes p(o)r mandar do q(ue) p(o)r antes p(ar)a mandar do q(ue) p(ar)a

fac-símile Paixão, 5v, l. 21

fac-símile Paixão, 23v, l. 8

Juis Juiz

fac-símile Paixão, 9v, l. 1

p(o)r p(ar)r

fac-símile Sobre o Escândalo, 5r, l. 21

f/or*/ssar passar

fac-símile Sobre a Maledicência, 2r, l. 4

imnocencia innocencia

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Na revisão se percebeu também o que Vidmanova (1979 apud CUNHA, 2004) classifica como lacuna de copista, que é a omissão de palavras e frases.

Quadro 18 - Modificações endógenas: lacuna do copista

EDIÇÃO DE 2009 EDIÇÃO REVISADA

Nossa Senhora de Montserrat, 3v, l. 5

geito á as <miserias> males geito á todas as <miserias> males

Paixão, 21r, l. 3

p(oi)s, á p(oi)s meos Ir (mão)s, á Fonte: Arquivo pessoal da autora

Em outros casos, constatou-se, como causa provável do erro, um lapso na digitação, no momento da transcrição, não sendo, portanto, fruto de leitura equivocada do editor. Houve, ainda, erros decorrentes da variante do copista, que, por distração, efetuou a transcrição segundo os padrões de sua época.

Quadro 19 – Modificações endógenas: lapso na digitação e variante do copista

CAUSA FAC-SÍMILE EDIÇÃO DE

2009 EDIÇÃO REVISADA lapso Paixão, 24r, l. 2 comreender compreender lapso Sermão de Misericórdia, 6r, l. 5 AH! Ah! variante do copista Sermão de Misericórdia, 2r, l. 4 socorro soccorro

Ao se revisar a edição de São Sebastião notou-se que faltavam dois fólios, 4r e 4v, que não foram editados em 2009. Em Nossa Senhora de Montserrat, se constatou que o fólio 1 foi costurado com as faces recto e verso invertidas, portanto, onde, em 2009, se tinha 1r, na revisão se tornou 1v, e vice- verso. No Sermão de Misericórdia observou-se uma diferença na sequência dos fólios:

Quadro 20 – Diferença na sequência dos fólios de Sermão de Misericórdia

EDIÇÃO DE 2009 EDIÇÃO REVISADA

3r 4r 3v 4v 4r 5r 4v 5v 5r 6r 5v 6v 6r 7r 6v 7v 7r 3r 7v 3v

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Contudo, a mudança mais expressiva nessa revisão se deu no sermão Paixão. Percebeu-se que tal sermão estava incompleto e que os 15 fólios atribuídos ao sermão Corpo, na verdade, eram sua continuação. Assim, constatou-se que Paixão tem 24 fólios e que, em vez de dezenove, são dezoito os sermões manuscritos constituintes do acervo de Frei Domingos. Esse problema se deu nos textos São Sebastião, Nossa Senhora de Montserrat, Sermão de Misericórdia e Paixão pelo fato de que os cadernos originais dos sermões estão com sua costura ou cola, as quais prendem as folhas, deterioradas, tendo, com isso, muitas folhas soltas; outro fator é a falta de paginação nos cadernos.

Vale ressaltar, porém, que a constatação de erros na primeira edição dos sermões de Frei Domingos não diminui seu valor filológico, afinal, se sabe que, por mais afinco que tenha o filólogo na prática de seu ofício, está suscetível ao erro, posto que, como bem afirma Tavani (1993),

[...] a filologia textual, aplique-se ela a textos de hoje ou de ontem, é um terreno repleto de armadilhas de todo tipo, por meio das quais é preciso andar sempre com o maior cuidado: para o filólogo, o texto é um pouco como o ciclope de Karl Kraus que, com o olho maligno, procura sabotar o trabalho do editor. A única vantagem que este tem sobre o adversário é que o ciclope textual tem, como todos os ciclopes dignos do nome, um único olho, enquanto o filólogo geralmente tem dois: se os souber usar, terá boas probabilidades de poder dominar o outro e de o obrigar a revelar a sua verdadeira natureza (TAVANI, 1993, p. 571).

Aquela edição fez jus ao papel fundamental da Filologia de garantir a preservação e divulgação do patrimônio linguístico. Espera-se que a edição que aqui se apresenta possa também alcançar o objetivo de trazer um texto mais fidedigno.