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Um olhar sobre a argumentação em Sermão de Misericórdia

TÍTULO / NOMEAÇÃO QUANTIDADE DE FÓLIOS

3.2 SERMÃO: UM TEXTO ARGUMENTATIVO

3.2.1 Um olhar sobre a argumentação em Sermão de Misericórdia

A argumentação, segundo Grize (1990, p. 40), é “[...] um procedimento que visa intervir sobre a opinião, a atitude e até mesmo sobre o comportamento de alguém”. É com estes objetivos que Frei Domingos apresenta o Sermão de Misericórdia, no qual trata da relevância de se assistir aos mais necessitados.

Conforme Vignaux (1981), argumentar equivale a enunciar algumas proposições que escolhemos compor entre si. Reciprocamente, enunciar equivale a argumentar, pelo simples fato de que escolhemos dizer e avançar determinados sentidos em vez de outros. No Sermão de Misericórdia Frei Domingos faz escolhas bem coerentes com sua meta. Toma como ponto inicial a apresentação de exemplos e lições de misericórdia deixados pelo Salvador. Ele lembra aos fiéis que todos os bens vieram do Senhor e que estes devem ser divididos entre as pessoas de modo justo, portanto, não agrada a Deus a existência de ricos com grandes fortunas e pobres com inúmeras necessidades.

Carismático e profundo conhecedor da palavra cristã, o frei mostra-se sempre cauteloso e modesto ao apresentar suas ideias aos ouvintes, o que também não deixa de ser uma estratégia argumentativa bastante usual no

universo religioso cristão. É o que se observa em várias passagens do Sermão de Misericórdia:

Quadro 9 – Modéstia como estratégia argumentativa em sermões de Frei Domingos

FÓLIO LINHA TRANSCRIÇÃO

1r 1v

23 1-3

me naõ considera <mais> digno de de ser um interprete, senaõ quan- do advogar a causa dos misera- veis

2r 1-4 Deos de Misericordia, agora mais que nunca necessita vosso indigno Ministro dos vossos auxilios; vinde pois em meu socorro

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Ele inicia o Sermão convidando os “ricos do século” a seguirem o exemplo do Salvador, estratégia retomada ao longo do texto.

Quadro 10 – Início de Sermão de Misericórdia

FÓLIO LINHA TRANSCRIÇÃO

1r 1-5 Taes saõ os tocantes exemplos e as liçoens de /misericordia/, q(ue) nos deo o Salvador do mundo: Ricos do seculo, eis o vosso modelo, reconheceis nelle o caracter de vossa religião. Semelhar- Fonte: Arquivo pessoal da autora

Frei Domingos tem a preocupação em preparar seus ouvintes para as ideias que serão apresentadas. Para isso, ele faz uma oração e depois se dirige diretamente ao público:

Quadro 11 – Preparação dos ouvintes em Sermão de Misericórdia

FÓLIO LINHA TRANSCRIÇÃO

2r 4-10 preparae

tambem a alma dos meus ouvin- tes, e fazei que elles comprehen= daõ q(ue) he necessario usar de mise=

ricordia p(ar)a com os pobres a fim de poderem /alcançar/ a vossa; e vós, Cristãos, /prestae-me/ attençaõ. Fonte: Arquivo pessoal da autora

Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 54) afirmam que

[...] uma argumentação eficaz é aquela que consegue incrementar a intensidade de adesão, de modo a desencadear entre os ouvintes a ação visada (ação positiva ou abstenção), ou de modo a pelo menos criar, entre eles, uma disposição para a ação, que se manifeste no momento oportuno.

Por se tratar de uma pregação o desejo de alcançar uma ação é evidente. Além de seu carisma, Frei Domingos utiliza diversos argumentos, através de fatos, histórias-relato, questionamentos, suposições, como estratégias de convencimento.

Quadro 12 – Argumentos em Sermão de Misericórdia

FÓLIO LINHA TRANSCRIÇÃO

2v 1-4 A principal causa de nosso erro nesta matéria é não nos remontar-mos aver- dadeira fonte de todos os bens trans- mitidos p(o)r nossos Pais

34r 5-17 os ultrajes que mais

despedaçaõ meu coração, e minhas en- tranhas paternaes, são as lagri-

mas e as murmuraçoens sacrile- gas, q(ue) vossa barbara insensibili- d(ad)e arranca dos desgraçados, porque é então, q(eu) é atacada a m(esm)a miseri- cordia, o principal de meus attri-

butos, a alma dos meus desejos, a

essencia da m(esm)a essencias eu dissimu- lo todos os outros crimes, os suppor- to com paciencia, esperando a ine- vitavel eternid(ad)e;

5r 4-6 o pobre vos é confiado e não tem outro recurso outro pai, e p(ar)a as- sim dizer outro Deos senaõ vós 5r 6-12 De-

os vos favoreça repito ainda! es- tas palavras ditadas pelo habito e

não pela reflexão são uma chime-

ra em vossa boca um objecto de desespero p(ar)a o pobre, e uma ironia

p(ar)a Deos. 5r 20-22 El-

les são o ôsso do vosso ôsso, a carne da vossa carne;

6v 7-15 ó ricos injustos? todos os seres ra- cionaes tem um fim a cumprir so- bre a terra, qual é pois o vosso? sap- tisfazem vossos fantasticos desejos, por em trabalho toda a natureza, e todas as artes em torturas p(ar)a saptisfazer vossos caprichos? Ah! se vos julgais p(ar)a um fim tão fricolo que ideia for- mais de Deos?

8v 5-9 Em causa mais consolante do que dar uma esmola que sem distruir o meu luxo nem o meu fausto pode le- var a alegria ao seio de uma familia honesta e virtuosa

10r 16-21 Assim mesmo morto como o vedes, he sempre o Deos de justiça, e de vingança.

Estes olhos assim mesmo fechados ainda estão sondando o vosso cora= çaõ feroz e insensivel.

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Em algumas passagens do Sermão, o Frei é ainda mais enfático em seu propósito, dirigindo-se diretamente ao seu público, declarando-lhe como agir e pensar.

Quadro 13 – Orientações de Frei Domingos ao público FÓLIO LINHA TRANSCRIÇÃO

6r 9-13 se por um momento

vos despojasseis de vossas decoraco- ens e vos colocasseis a par de um pobre, vós dirieis; - todos nós somos filhos da mesma mai, elles são como nós

6v 1-5 vós vos julgarieis in-

justos(,) p(ar)a com os pobres, abaxarieis os olhos em sua presença, e vos en- vergonharieis de vossa pretend(enci)a felicid(ad)e

10v 10-16 Vinde pois peccadores, vinde

aproveitar vos d’este preciosos sangue vinde prostar-vos aos pes de J(esus) e di= zer com migo

Meu Deos, meu Divino J(esus), meu bom Redemptor, tende misericordia de nós

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Acredita-se que o Sermão de Misericórdia alcança seu papel, na medida em que, por meio de argumentos variados – uso de fatos, história-relato, indagações, entre outros – consegue convencer que a ideia nele defendida é coerente. Assim, Frei Domingos elimina a dúvida e a contestação de seus ouvintes, fundando então uma crença justificada e um consenso legítimo acerca de tudo que deve ser feito para que ricos e pobres cumpram a sua função aqui na terra. Neste Sermão, portanto, a função doutrinária é atingida devido ao uso adequado da argumentação, que “[...] incide sobre aquilo em que é preciso crer, sobre aquilo que é preciso fazer, a que é preciso renunciar ou não, recusar ou aceitar” (PLANTIN, 2008, p. 45).