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CAPÍTULO 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

4.2 Comentários adicionais

Mediante os conceitos de sistemas de marketing e equilíbrios dos sistemas buscamos compreender as relações de trocas de maior evidência no escopo dos fenômenos de medicalização e de farmaceuticalização, caracterizando a atuação daqueles que consideramos os principais agentes, as ações e os fluxos mais recorrentes e os desequilíbrios decorrentes destas relações. Com isso, acreditamos ser possível extrairmos algumas conclusões.

Inicialmente, verificamos que, apesar de o consumidor ser colocado como um agente de propulsão tanto da medicalização quanto da farmaceuticalização, segundo conceituação de Conrad (1992; 2005; 2007; 2010; 2015) e de Williams et al. (2011), respectivamente, os maiores desequilíbrios do sistema recaem, de fato, sobre esse stakeholder. Além das evidências teóricas, o resultado das entrevistas realizadas com médicos indica um

entendimento de que as maneiras com as quais os consumidores passaram a se relacionar com as questões pertinentes à doença e saúde se modificaram, ao passo em que há novas formas de se obter informações médicas sem que o profissional médico seja a única fonte a ser consultada.

A percepção de que o médico, dentro do escopo da medicalização e farmaceuticalização, atua como um gatekeeper parece se confirmar, apesar de esse profissional ainda apresentar uma grande influência nas decisões de consumo médico, principalmente decorrentes de indicação de procedimentos e medicamentos e de legitimação perante diagnósticos (principalmente relativos a transtornos comportamentais e mentais). Nesse sentido, diante do discurso dos médicos entrevistados, há uma aparente responsabilização

acerca da conduta do consumidor, de modo que os profissionais se colocam quase como ‘reféns’

de uma nova maneira de lidar com os pacientes.

Todavia, é preciso considerar que o poder médico permanece com os profissionais e que os consumidores são apresentados a um modelo biomédico dentro do qual, muitas vezes, uma atuação emancipatória é limitada. Isso porque, as ações de questionamento em relação à conduta médica podem se dissipar na medida em que o saber médico entra em pauta e sobrepõe o saber leigo. Igualmente, decisões que levam o paciente a procurar outros profissionais são um meio de questionamento, mas pode mantê-lo na mesma lógica medicalizante ou farmaceuticalizante, quando o problema a ser tratado pode ser que não seja de cunho médico, em termos fisiológicos ou anatômicos, mas comportamental, social ou emocional.

Diante disso, concluímos que há uma necessidade de abranger o entendimento sobre condições medicalizadas e de farmaceuticalização, de modo que sejam mais compreendidos os riscos e benefícios que estão no cerne da perspectiva de que praticamente quaisquer males do corpo, da mente e das relações sociais podem estar relacionados a questões de saúde e doença, de modo que há soluções biomédicas capazes de resolvê-los. No entanto, esse não seria um tópico a ser disseminado pela maioria dos agentes do sistema de marketing de saúde, visto que são estes que ofertam os bens e serviços, o que têm aumentado consideravelmente em opções de tratamento, tanto para condições que já são conhecidas, como para novas condições que surgem constantemente.

Ao mesmo tempo, a demanda dos consumidores aumenta em termos de soluções para questões do corpo, da mente e das relações sociais, o que nos faz entender que a medicalização e a farmaceuticalização, enquanto fenômenos sociais aparentemente já arraigados na cultura brasileira, promovem desequilíbrios no sistema de marketing de saúde. Com efeito, muitas das relações de troca que se alinham com os fenômenos da medicalização e da farmaceuticalização são passíveis de encargos diante da escolha dos próprios

consumidores, como é o caso de cirurgias plásticas, consumo de medicamentos com a finalidade de aprimoramento cognitivo ou automedicação.

Concluímos que a medicalização e a farmaceuticalização de fato têm mudado a forma como as pessoas percebem os benefícios da medicina, incorporando seus bens e serviços no seu cotidiano, e estreitando a relação entre saúde e doença. Com isso, indústria farmacêutica, profissionais de saúde e canais de dispensação, como farmácias e drogarias, podem ser agentes de incentivo a esses fenômenos. Quanto aos órgãos reguladores, diversas falhas são observadas de modo que geram uma fiscalização que reduz ineficientemente questões relativas à medicalização e farmaceuticalização, com é o caso da cessão de patente para medicamentos que não apresentam inovação terapêutica.

Desse modo, o objetivo da indústria farmacêutica e das farmácia é comercializar a maior quantidade de produtos, que têm a premissa de combate a doenças e promoção da longevidade humana; o dos planos de saúde é comercializar acesso, principalmente, aos serviços médicos. No que diz respeito aos profissionais de saúde, mais do que a esses demais agentes, é exigida uma conduta ética na qual se privilegie o melhor interesse do seu paciente. Relações mantidas entre a indústria farmacêutica e o médico, especialmente, são passíveis de provocar distorções éticas na prática médica, de modo que o profissional receba benefícios por meio de ações de marketing farmacêutico, como brindes e patrocínios, mesmo que algumas dessas práticas sejam proibidas por órgãos reguladores.

Todavia, no escopo da medicalização e da farmaceuticalização isso pode ser mais abrangente, na medida em que o próprio médico tem sua formação baseada em uma lógica biomédica, de que as condições do corpo, da mente e do comportamento podem ser enquadradas em classificações médicas e tratadas por meio de soluções médicas. Nesse aspecto, tanto médico quanto consumidor podem atuar impulsionados por um viés médico dominante, independentemente de serem influenciados ou não pelas ações propagandistas dos laboratórios farmacêuticos. Isso solicita ações contrárias à lógica médica para que a medicalização e a farmaceuticalização sejam questionadas em seus encargos sobretudo para os que recebem as externalidades negativas dos processos de troca relativos a esses fenômenos.

Como alternativa para evidenciar as questões pertinentes à medicalização e farmaceuticalização, e seus possíveis desequilíbrios, foi sugerida a ação de grupos sociais organizados, os quais teriam mais força social, por meio de práticas estruturalmente bem definidas que buscam garantir os interesses dos menos favorecidos, de modo que possa proporcionar trocas mais justas dentro de um sistema de marketing. Contudo, organizações sociais de enfrentamento à medicalização e à farmaceuticalização (ou mesmo outros termos que

se assemelham em conceituação a esses fenômenos) podem ser consideradas embrionárias, na medida em que têm formação recente, mesmo que seus membros debatam práticas desmedicalizantes há muitos anos.

Sobre o Despatologiza, portanto, ainda é difícil estender seu impacto no sistema de marketing de saúde, se questionarmos se suas ações repercutem de maneira a representar um efeito contrário mais abrangente. Consideramos que essa organização, particularmente, carece ainda de encaminhamentos de institucionalização que podem melhorar sua atuação, a qual pode ser prejudicada pela falta de um modelo organizacional bem definido.

Apesar disso, nosso foco foi apresentar o Despatologiza como ilustração da potencialidade que esse tipo de organização pode promover para o equilíbrio de um sistema, principalmente à medida que grupos sociais aderem ao modelo organizacional para alcançar um melhor funcionamento e maiores resultados de atuação. Com isso, o Despatologiza pode ser entendido como uma organização que busca alternativas para conter os desequilíbrios causados pela medicalização e farmaceuticalização, mesmo que de forma mais pontual.

Além disso, ao passo que buscam atuação conjunta com outros grupos que tenham o mesmo interesse, na forma de redes de ONGs, o impacto desse tipo de organização no sistema de marketing pode ser maior. Ainda assim, embora os efeitos da atuação específica do Despatologiza, e de outras possíveis organizações sejam ainda pequenos do ponto de vista macro, concluímos que impactam em alguma medida o sistema de marketing de saúde ao qual pertence, ou seja, em Campinas (SP) sua ação alterou o consumo do metilfenidato, por exemplo. No que diz respeito às ações, foi interessante observar no discurso médico a indicação de que deveriam se pautar na educação do consumidor e na formação médica, ambas já realizadas pelo Despatologiza. Isso parece reforçar a ideia de que o consumidor deve compreender melhor os benefícios e encargos que podem decorrer do consumo de bens e serviços relativos à medicalização e farmaceuticalização, assim como os médicos devem ter uma formação para além do modelo biomédico, de modo que se torne um profissional mais sensível às necessidades dos pacientes que não são pertinentes ao domínio médico, mas têm outra natureza, como social ou emocional.

Ao mesmo tempo, desvios éticos continuam passíveis de ocorrer, pois dependem de cada profissional em sua conduta particular, da mesma forma que os consumidores que se sentem mais beneficiados do que prejudicados pelo consumo de bens e serviços médicos podem optar por continuar a utilizá-los sem considerar riscos inerentes. Desse modo, retomamos a ideia de que há uma assimetria de informação que pende mais para o lado do modelo biomédico dominante, o qual é entendido como a melhor opção para a saúde dos indivíduos, e que pode

ser questionável, para o que informações mais completas devem ser fornecidas para aqueles que consomem os bens e serviços. Com isso, acreditamos que a atuação de grupos como o Despatologiza ganha uma importância na disseminação de um pensamento contrário ao socialmente arraigado no Brasil.