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CAPÍTULO 2 – UMA ANÁLISE DO SISTEMA DE MARKETING DA SAÚDE SOB A

2.1 Os fenômenos sociais da medicalização e da farmaceuticalização

2.1.4 Farmaceuticalização

Nos estudos sociológicos, o termo ‘Farmaceuticalização’ foi apresentado por John Abraham, em 2007, e, a partir de então, tem sido crescentemente discutido (GABE et al., 2015). Abraham (2010) conceitua farmaceuticalização como o processo pelo qual condições sociais, comportamentais e corporais são tratadas ou julgadas por médicos ou pacientes como algo que tem necessidade de tratamento por meio de medicamentos, enquanto Williams et al. (2011) definem como sendo a transformação das condições, capacidades ou aptidões humanas em questões farmacêuticas de tratamento ou aprimoramento.

A farmaceuticalização, assim como a medicalização, deve ser classificada como um conceito descritivo, de valor neutro, de maneira que pode resultar externalidades negativas ou positivas, a depender do caso empiricamente investigado. Pode ser, também, um processo bidirecional no qual a desfarmaceuticalização é uma possibilidade, mesmo que na prática seja mais provável que haja uma substituição ou apenas um declínio no uso de um medicamento, especialmente quando a desmedicalização não ocorre. Com efeito, a história do desenvolvimento de medicamentos farmacêuticos demonstra que novos medicamentos são frequentemente concebidos para compensar os efeitos negativos dos seus precedentes, o que mantêm o processo de farmaceuticalização (WILLIAMS et al., 2011).

Assim, farmaceuticalização é compreendida como um processo sócio técnico

dinâmico que faz parte de um ‘regime farmacêutico’. Este regime constitui, segundo Williams et al. (2011), uma rede de instituições, organizações, atores e artefatos tecnológicos, ao lado de estruturas cognitivas associadas com a criação, produção e utilização de medicamentos. Uma das dinâmicas-chave desse regime é seu continuado comércio, e sua expansão clínica e geográfica. O entendimento que fundamenta esse conceito, e o difere do conceito de medicalização, é de que nem todas as formas de medicalização impõem o consumo de medicamentos ou processos de farmaceuticalização (WILLIAMS et al., 2008).

Um exemplo que ilustra o argumento da farmaceuticalização é o tratamento da obesidade com medicamentos de perda de peso quando, previamente, era uma condição tratada apenas com controle de dieta e cirurgia. Com isso, Abraham (2010) explica que a farmaceuticalização pode aumentar sem a expansão da medicalização, porque alguns medicamentos são crescentemente usados para tratar uma condição médica estabelecida, sem

que haja transformação de um problema não médico em médico. Pode ainda ocorrer farmaceuticalização sem medicalização, pois a profissão médica é contornada na escolha, compra e uso de medicamentos.

Pelo entendimento de Abraham, (2010), para ser mais do que uma mera observação do aumento da presença farmacêutica na sociedade, é preciso relacionar a farmaceuticalização com a tese do biomedicalismo. Esta tese alega que o crescimento de tratamentos medicamentosos é uma resposta às necessidades de saúde descobertas pela progressiva capacidade da ciência biomédica na solução de doenças novas ou estabelecidas. Entretanto, em muitas áreas psicossociais de intervenção médica, a medicalização é uma explicação mais convincente para o crescimento da farmaceuticalização do que o biomedicalismo, tendo em vista que novos medicamentos têm falhado em apresentar inovações terapêuticas significativas. Desse modo, Abraham (2010) sugere que a medicalização, juntamente com a promoção e a propaganda que a indústria de produtos farmacêuticos direciona aos profissionais médicos, resultando indicações de uso on- ou off-label2, são fatores de maior convencimento para o aumento da farmaceuticalização em determinadas áreas psicossociais e de estilo de vida. Com isso, é possível entender que as prioridades comerciais farmacêuticas dominaram as aspirações biomédicas, ao ponto de medicamentos com baixa lucratividade, mas de alta necessidade para saúde, não serem farmaceuticalizados (ABRAHAM, 2010), o que representa prejuízo para o consumidor.

Os processos de farmaceuticalização ainda se estendem para além da esfera estritamente médica ou medicalizada, englobando outros usos não médicos para propósitos de estilo de vida e aprimoramento, entre pessoas ‘saudáveis’ (ênfase dos autores) (WILLIAMS et

al., 2011). O uso recreativo de medicamentos para disfunção erétil exemplifica essa noção, assim como o uso de anticoncepcionais para retardo do período menstrual quando a mulher acha que esse processo é inconveniente diante de alguma atividade que será desempenhada nesse período (FOX; WARD, 2008).

Conrad (2007) faz referência a três tipos de aprimoramento biomédico: (1) normalização, quando se usa intervenções para fins de aprimoramento buscando fazer com que o corpo se torne padronizado nos moldes que médicos ou pacientes entendem como normal ou com o que é socialmente esperado; (2) reparo, que são intervenções utilizadas para restaurar ou

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O uso off label é o uso não aprovado pelo órgão regulador, que não consta da bula. O uso off label de um medicamento é de responsabilidade do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em geral trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado (ANVISA, 2005) Disponível em: http://www.anvisa.gov.br/medicamentos/registro /registro_offlabel.htm. Acesso em 23 maio 2016.

rejuvenescer o corpo para uma condição prévia; e (3) intensificação, com intuito de melhorar ou impulsionar uma performance de maneira que confira ao usuário uma vantagem competitiva.

A ideia de aprimoramento, portanto, representa uma tentação social, tanto pelo que se alcança em si, o aprimoramento, quanto pela forma como se alcança, ao utilizar uma interferência biomédica. Cirurgias plásticas, uso de hormônio do crescimento e consumo de metilfenidato para melhorar o desempenho cognitivo são alguns exemplos (CONRAD, 2007).

A análise da farmaceuticalização, de acordo com Williams et al. (2011), deve se basear em processos de nível macro, que se relacionam com desenvolvimento, teste e regulação de medicamentos, e de nível micro, pertencentes ao significado do uso medicamentoso nas práticas médicas e na vida diária. A farmaceuticalização, no entanto, enfatiza apenas uma parte do panorama terapêutico contemporâneo, que são os medicamentos, o que coloca o foco analítico para questões farmacêuticas acima e para além de outras terapias ou outros modos de intervenção (GABE et al., 2015).