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CAPÍTULO 2 – UMA ANÁLISE DO SISTEMA DE MARKETING DA SAÚDE SOB A

2.1 Os fenômenos sociais da medicalização e da farmaceuticalização

2.1.5 Medicalização, farmaceuticalização e mercados médicos

Quando bens, serviços ou tratamentos são desenvolvidos e promovidos para o consumo, com a finalidade de oferecer melhorias na saúde, aparência ou bem-estar dos consumidores, surgem mercados relativos aos cuidados com a saúde. De fato, há um aumento nos mercados farmacêuticos, nas condições médicas que têm sido identificadas para tratamento e nos medicamentos que vêm sendo produzidos para novos mercados (GABE et al., 2015).

A expansão dos fenômenos sociais da medicalização e da farmaceuticalização é acompanhada pela abrangência do uso de propagandas relativas à saúde, pelo desenvolvimento de mercados médicos específicos e pela padronização de serviços médicos em linhas de produtos, o que têm contribuído para o aumento da oferta de bens e serviços médicos (CONRAD, 2007), conforme sintetizado na Figura 7. Segundo Conrad e Leiter (2004), é possível observar uma mudança no mercado médico no que diz respeito à propaganda de remédios diretamente para o consumidor final, e ao surgimento de novos mercados médicos privados, como é o caso dos tratamentos estéticos, por exemplo.

Fonte: adaptado de Conrad (2007)

A propaganda relacionada com a saúde comumente apresenta soluções médicas para categorias sintomáticas, entendidas pelo consumidor como bens ou serviços como outros quaisquer e não apenas como bens de saúde. As propagandas diretas ao consumidor podem moldar a forma como o público conceitua problemas, o que possibilita o aumento na demanda por soluções médicas, uma vez que esse tipo de propaganda é um dos maiores veículos para promoção tanto de diagnósticos quanto dos medicamentos que devem tratá-los (CONRAD, 2007).

No Brasil, sob o regulamento da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), somente pode ser feita a publicidade para o público em geral de medicamentos de venda isenta de prescrição médica, que são os que não possuem tarja vermelha ou preta3 em suas embalagens. Para esses medicamentos que exigem prescrição médica, a propaganda permitida, por meio de publicações especializadas, é a que se destina aos profissionais de saúde que podem receitar (médicos e dentistas) ou dispensar4 (farmacêuticos) medicamentos.

A ANVISA proíbe a oferta de elementos promocionais aos médicos, embora tal

conduta possa ser verificada cotidianamente na ação direta dos propagandistas (D’ÁVILA,

2007). A figura do propagandista é elemento chave para influenciar os médicos, tendo em vista que há cerca de um farmacêutico representante de vendas da empresa para cada dez médicos, na maioria dos países desenvolvidos (POITRAS; MEREDITH, 2009).

De fato, uma estratégia que Poitras e Meredith (2009) consideram fundamental no mercado de medicamentos é a de influenciar formadores de opinião, identificados como grupos de especialistas, pesquisadores e prescritores de medicamentos, para que falem positivamente sobre o produto farmacêutico. Entretanto, de todos, o prescritor é aquele que a empresa

3 Medicamentos com venda sob prescrição médica, sem ou com retenção da receita.

4 Dispensação de medicamentos - ato de fornecimento ao consumidor de drogas, medicamentos, insumos

farmacêuticos e correlatos, a título remunerado ou não (ANVISA, 2016). Disponível em http://www.anvisa.gov.br /medicamentos/conceito.htm#1.15. Acesso em 23 maio 2016.

Medicalização e farmaceuticalização Propaganda Direta ao consumidor Direta aos profissionais de saúde Mercados médicos Novos bens e serviços médicos

farmacêutica tenta influenciar mais, pois, mesmo que a propaganda direta ao consumidor tenha crescido significantemente, a propaganda e a promoção de medicamentos ainda são maciçamente voltadas para a classe médica.

Desse modo, os profissionais de saúde, que anteriormente eram os maiores promotores da medicalização e da farmaceuticalização, continuam tendo um papel importante nesses processos, uma vez que são gatekeepers para administração dos tratamentos médicos na forma, especialmente de diagnóstico, prescrição de receitas médicas e procedimentos cirúrgicos. Os médicos são ainda aqueles que detém o conhecimento técnico acerca da doença e de como tratá-la (CONRAD, 2007).

No entanto, a propaganda direta ao consumidor tem, em parte, facilitado a medicalização, na medida em que aproxima o consumidor principalmente dos produtos oferecidos pela indústria farmacêutica (CONRAD; LEITER, 2004), inclusive tornando mais conveniente o acesso a medicamentos sem a necessidade de visita ao médico, o que pode ser demorado, e ampliando a prática da automedicação. A internet tem sido o meio onde muitos consumidores adquirem medicamentos, sem precisar da avaliação e prescrição médica, especialmente quando se tratam daqueles para propósitos de estilo de vida ou aprimoramento (FOX et al., 2005). Desse modo, surgem novas formas de mediação de medicação que ultrapassam a relação médico-paciente (WILLIAMS et al., 2008). A internet ainda possibilita a troca de informações entre consumidores e a formação de grupos de suporte, que podem tanto incentivar como constranger processos de medicalização e farmaceuticalização.

No entanto, há empresas farmacêuticas que, ao promoverem seus produtos em

websites, incluem simples questionários que permitem aos consumidores determinarem se eles têm um distúrbio e devem consultar um médico para tratá-lo. Assim, a internet tem se tornado um veículo importante na promoção de definições medicalizadas de uma gama de distúrbios. Virtualmente quase todos os distúrbios, contestados ou estabelecidos, tem websites destinados aos consumidores, e muitos, se não todos, promovem crescente medicalização de várias dificuldades da vida (CONRAD, 2007).

Com efeito, categorizar doenças e posteriormente vender medicamentos para tratar essas condições é algo que se tornou comum (CONRAD, 2007). Triggle (2007), por exemplo, faz uma análise da promoção feita por um laboratório farmacêutico americano, em 2003, sobre uma condição chamada síndrome das pernas inquietas.

Da mesma forma, Conrad e Leiter (2004) descrevem como as empresas farmacêuticas mapearam o mercado relativo à disfunção erétil e a distúrbios de ansiedade, promovendo essas condições como um problema médico e seus produtos farmacêuticos como

as soluções. O produtor do Paxil, um dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina, percebendo que o mercado para o tratamento de depressão estava saturado, requereu aprovação para aplicações adicionais do produto. Assim, escolheu por se especializar no ‘mercado de

ansiedade’ (ênfase dos autores), o que incluiu distúrbio do pânico, distúrbio compulsivo

obsessivo, no início, seguidos dos distúrbios de ansiedade social (fobia social) e ansiedade generalizada. Nesses últimos casos, a aplicação desses medicamentos tem contribuído para a medicalização de emoções como preocupação, timidez e vergonha. Esse exemplo, para Conrad e Leiter (2004), ilustra como as empresas farmacêuticas estão comercializando doenças e não apenas medicamentos.

Outro exemplo de como as empresas farmacêuticas respondem a demandas por soluções para insatisfações humanas diz respeito ao tratamento da calvície. Conrad (2007) apresenta o caso de um medicamento que originalmente tratava pressão alta, mas que nos testes clínicos apresentou o efeito colateral de crescimento de cabelos em um dos pacientes. Para esse medicamento, o qual era esperado que fosse de baixa lucratividade, uma vez que se destinava a um público específico, foram realizados novos testes.

Mas, antes mesmo que fosse aprovado pela U.S. Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, com indicação para calvície, muitos médicos já o prescreviam, para uso off-label. Após aprovação, o laboratório modificou as informações do produto, mudou o nome do medicamento e investiu fortemente em propagá-lo como um produto para superar um problema, neste caso, a calvície. Outros produtos, posteriormente, surgiram no mercado, tanto na forma de novos medicamentos quanto de cirurgia de transplante, o que sinaliza ser esse um mercado com potenciais consumidores.

Dentro dos mercados médicos, há ainda o que Conrad (2007) conceitua de terceira parte, que representa aqueles que pagam por um procedimento médico, e compõem um mercado mediado (e.g., planos de saúde). A Figura 8 expõe os principais componentes desse mercado.

Fonte: adaptado de Conrad (2007) Mercado médico mediado Planos de saúde Programas governamentais Organizações de cuidados com a saúde Figura 8 – Mercado médico mediado e seus componentes

Nesse contexto, conforme apresentado na Figura 8, o mercado para tratamentos é mediado por políticas de cobertura de empresas de planos de saúde, programas governamentais, ou organizações de cuidados com a saúde. Logo, enquanto publicidade resulta em uma medicalização direta, o mercado para tratamento é mediado estando acoberto ou não por planos de saúde. Algumas vezes, a expansão ou a retração na cobertura pode afetar a quantidade de medicalização que ocorre.

Há evidências de que nem toda propaganda direta de produtos e serviços médicos repercute junto aos consumidores. Dependendo do produto ou do serviço, em termos de esforço do consumidor, principalmente quando não são acobertados pelos planos de saúde, é possível que esse consumo não seja percebido como valoroso (CONRAD, 2007). Isso pode significar que, a depender do benefício ofertado pelo produto ou serviço médico, independentemente da sua eficácia, alguns não encontram consumidores dispostos a sacrifícios, especialmente no que diz respeito aos produtos que são usados com objetivos para além do estritamente médico.

Apesar disso, os mercados médicos são, em geral, eficientes na oferta de bens e serviços relativos à saúde que buscam satisfazer os consumidores. Não apenas no domínio da indústria farmacêutica, embora essa seja a mais acessível, mas também em outros tipos de intervenção médica, é crescente a expansão dos mercados médicos particulares e mediados, como clínicas, hospitais e planos de saúde. Cirurgias cosméticas são um dos exemplos dessa expansão (CONRAD, 2007) e estão alinhadas ao desejo de aprimoramento, e não a uma demanda de saúde, o que remete aos fenômenos de medicalização e farmaceuticalização.

O marketing farmacêutico, por sua vez, está mais alinhado com o consumo do que com a medicina, para o que as consequências não são triviais (APPALBAUM, 2006). Isso porque, como aponta Conrad (1992), embora intervenções médicas sejam julgadas pela sua eficiência, as consequências socais da medicalização ocorrem independentemente da eficácia médica, posto que são indiferentes da validação de definições médicas ou diagnósticas ou da efetividade de regimes médicos. Os fenômenos da medicalização e da farmaceuticalização são acompanhados por padrões desiguais de distribuição, por problemáticas de supermedicalização ou submedicalização e pelo direcionamento para determinados grupos sociais percebidos como mais vulneráveis, como mulheres, crianças e idosos (BELL; FIGERT, 2012), mesmo que haja evidências de processos de expansão que visam a outros grupos, como o masculino (CONRAD, 2007).

Nesse contexto, saber o que é ou não uma condição médica é algo cada vez mais difícil para os indivíduos, os quais se tornam agentes ativos de processo medicalizantes. Conforme ressalta Conrad (2007), como reação às propagandas e informações veiculadas, os

consumidores perguntam a seus médicos se eles têm o distúrbio visto em sites, revistas ou televisão, solicitando, talvez, uma medicação específica. Os consumidores também podem obter bens médicos tanto em mercados particulares quanto mediados. E, ainda, os consumidores estão indo a médicos e solicitando tratamentos para distúrbios autodiagnosticados, como tem acontecido com TDAH adulto. De acordo com Zheng (2015), a demanda do consumidor motiva a expansão médica que, por sua vez, pode diminuir as percepções de saúde subjetiva dos indivíduos, conduzindo a uma maior utilização produtos e serviços de saúde.

Na perspectiva da medicalização e da farmaceuticalização é possível que muitos dos interesses dos consumidores estejam sendo minimizados, na medida em que relações de troca pertinentes à saúde são incentivadas, mesmo sendo desnecessárias e, inclusive, passíveis de produzir riscos para a vida humana. Isso porque, é preciso considerar os efeitos biológicos que os medicamentos produzem no organismo, a legitimidade do problema ou distúrbio em

questão e a disposição dos consumidores de adotarem a tecnologia como uma ‘solução’ para

um problema em suas vidas (WILLIAMS et al., 2008).

Como afirmam Conrad e Leiter (2004), os mercados médicos nem sempre encontram os elementos classicamente definidos de um marketplace competitivo. Isso porque, em um mercado livre, os consumidores devem ser informados, apreciar diferenças na qualidade, ter poder de barganha e livre escolha para comprar, o que são pressupostos violados nos mercados de cuidados com a saúde. A assimetria de informação, principalmente no que diz respeito à definição, reconhecimento e diagnóstico de doenças, é um potencializador de consumos que podem ser prejudiciais ao consumidor. Desse modo, é preciso considerarmos as relações de troca no contexto de saúde por um viés de sistemas de marketing e do conceito de equilíbrio, conforme apresentamos em seguida.