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CAPÍTULO 2 – UMA ANÁLISE DO SISTEMA DE MARKETING DA SAÚDE SOB A

2.1 Os fenômenos sociais da medicalização e da farmaceuticalização

2.1.3 Expansão da medicalização e novos agentes

Uma dimensão da medicalização é a elasticidade da categoria médica, no que diz respeito à expansão de diagnóstico, ou seja, de novas classificações de condições entendidas como doenças, como é o caso da síndrome da sensibilidade química múltipla ou síndrome das pernas inquietas. De fato, a expansão da medicalização tem alcançado outras áreas além das inicialmente atingidas. Verweij (1999) identifica a medicalização de desvios sociais, com base no que é moralmente aceito socialmente em termos de comportamentos dos indivíduos; das experiências normais da vida, como nascimento, envelhecimento e morte; e a medicalização preventiva, que pode ser observada principalmente de alguns grupos sociais, como de idosos e mulheres (e.g. uso de contraceptivo).

Desse modo, sob o julgamento de que há o risco de que uma doença ocorra, mesmo

que o indivíduo não se sinta doente, é indicada uma ‘medicalização preventiva’ para diminuir

esse risco. Vacinas, historicamente, representam o tratamento preventivo mais comum; no entanto, tem se observado o crescimento na prescrição de medicamentos para diminuir o risco de ataques do coração ou diabetes, por exemplo (BUSFIELD, 2015). Esse tipo de medicalização

de ‘doenças em potencial’ representa seus riscos por si só, podendo resultar doenças

iatrogênicas e submissão a procedimentos diagnósticos invasivos (e até cirúrgicos) devido a resultados falso positivos decorrentes de processos de screening, que é o prodecimento de rastreamento de doenças(VERWEIJ, 1999).

Rose (2007) alega que algumas pessoas são mais clinicamente medicáveis do que outras, ou seja, as mulheres são mais passíveis à medicalização do que os homens, e as crianças e os idosos mais do que os adultos. Além disso, os ricos são clinicamente medicáveis de forma diferente dos pobres, assim como o uso da medicina ocorre distintamente em diferentes países e regiões do mundo.

Com isso, é possível observar que há características tanto biológicas como sociais que tornam certos grupos, aparentemente, mais suscetíveis a processos de medicalização. Em termos biológicos, questões inerentes ao funcionamento do corpo fazem de processos como menstruação e envelhecimento condições a serem medicalizadas. Igualmente, há uma crescente medicalização de aspectos de estilo de vida e aprimoramento mais direcionada para ricos do que para pobres, apesar de ser possível observar que a medicalização parece atingir, mesmo que de maneira diferente, cada vez mais pessoas.

Um exemplo que demonstra a potencialidade que as mulheres têm em termos medicáveis diz respeito ao processo de medicalização relacionado ao nascimento, posto que

pode haver intervenção médica não apenas no parto em si, mas no pré-natal, pós-natal e no cuidado pediátrico; não apenas na concepção, mas na fertilização; não apenas no processo de reprodução, mas de questões relacionadas à própria atividade sexual; e, atinge a vida antes mesmo da sua existência, mediante aconselhamento genético.

O parto que, em contextos sociais prévios, ocorria no espaço doméstico e sem supervisão médica, passou a ser realizado dentro de um processo medicalizante (ZOLA, 1972), o que alcança um aspecto positivo, na medida em que possibilitou uma redução na mortalidade infantil e materna por problemas de parto, tanto durante quanto antes (e.g., eclampsia) e depois do parto (e.g., infecções pós-parto). Além disso, processos de fertilização e concepção têm permitido que casais com problemas de infertilidade possam gerar filhos. Portanto, apesar de serem considerados eventos humanos naturais, e não médicos em sua essência, esses processos podem resultar benefícios para as mulheres, e extensivamente para os homens, ao serem medicalizados.

Ainda assim, movimentos contrários à medicalização do nascimento emergiram, e derivaram em algumas mudanças no parto médico, bifurcando as suas práticas em partos com procedimentos menos medicalizantes (e.g. parto humanizado) e partos completamente medicalizados (e.g, parto cesária); todavia, mesmo tendo havido resistência ao parto medicalizado, esse tipo é predominante e assim deve permanecer (CONRAD, 2007).

Desse modo, é preciso reconhecer que o fenômeno da medicalização é dinâmico, o que permite que sua expansão, muito mais do que redução, seja frequente na medida em que outras variáveis sociais e mercadológicas são inseridas no contexto médico. A despeito da suscetibilidade do corpo feminino ser mais medicalizado, uma das áreas que evidentemente tem sido colocada dentro da jurisdição médica é a saúde masculina, e é crescente a medicalização do corpo e do envelhecimento do homem. Conrad (2007) analisa três casos da medicalização da masculinidade: andropausa, calvície e disfunção erétil.

Conrad (2007) ilustra ainda a expansão do diagnóstico de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade). Embora originalmente uma condição relacionada à infância, o TDAH tem sido crescentemente diagnosticado em adultos, sob a alegação de que esses adultos não tiveram seus sintomas diagnosticados enquanto crianças. Dessa forma, aparentemente, embora alguns grupos possam ser organicamente mais suscetíveis a processos de medicalização, isso não limita que condições medicalizantes alcancem, ou tentem, pelo menos, outros grupos. Em alguns casos, essa expansão encontra resistência. Foi o que ocorreu mediante a tentativa do processo de medicalização de disfunção sexual feminina (CAMARGO JR., 2013), para o qual a indústria farmacêutica buscou produzir um medicamento que chamou

de ‘Viagra Rosa’, mas que não foi bem aceito (TRIGGLE, 2007).

De fato, a partir dos anos de 1980, mudanças na medicina ocidental resultaram consequências para a saúde, e proporcionaram a emergência de novos agentes nos processos de medicalização. A autoridade médica deixa de ser um fator primário na medida em que os médicos passam a atuar como gatekeepers1, mediante a aplicação de princípios de mercado no campo médico como consequência da corporatização da medicina (ZHENG, 2015). A expansão médica se torna primariamente direcionada por interesses de mercado, pela transformação de pacientes em consumidores, e pelo desenvolvimento de novos conhecimentos médicos. Consequentemente a essas mudanças no conhecimento e na organização médica, os agentes da medicalização (Figura 6) nas sociedades ocidentais, passam a ser a biotecnologia, os consumidores e a gestão do cuidado com a saúde (CONRAD, 2005; 2007; ZHENG, 2015).

Figura 6 – Novos agentes da medicalização

Fonte: adaptado de Conrad (2007)

Conrad (2007) identificou grupos de pacientes e movimentos sociais como motores da medicalização entre os anos de 1970 e 1980. No entanto, com as mudanças na medicina, os pacientes têm se transformado crescentemente em consumidores, diante de um mercado cada vez mais diversificado de serviços e produtos relacionados à saúde humana. Os indivíduos estão mais demandantes, inclusive com a automedicalização individual se tornando um fenômeno comum, no qual o paciente procura o médico buscando uma solução específica para um problema que ele considera medicalizável, como é o caso da medicalização da infelicidade, tratada com antidepressivos (CONRAD, 2007). Com isso, os consumidores são considerados relevantes agentes de processos de medicalização, na medida em que têm procurado satisfazer

1 Termo que pode ser traduzido como a pessoa que controla o acesso a algo.

Biotecnologia Consumidores Gestão do cuidado com a saúde Medicalização Indústria Farmacêutica Genética e aprimoramento Farmaceuticalização

seus desejos e demandas por serviços e produtos médicos (BLASCO-FONTECILLA, 2014). Outro aspecto que se destaca como resultado das mudanças na medicina tem sido o domínio das organizações de cuidados médicos. Blasco-Fontecilla (2014) coloca que a transição dos indivíduos de pacientes para consumidores se adequa à transição do uso dos serviços públicos de saúde para o uso dos particulares, na medida em que os usuários passam a ter uma mentalidade consumidora.

Em certo grau, o cuidado gerenciado, muito presente no contexto norte-americano, tem comercializado a medicina, de modo que as organizações de cuidados com a saúde e os médicos enfatizam mais os benefícios econômicos do que os cuidados com o paciente (CONRAD, 2007). No que diz respeito à medicalização, esse agente pode ser tanto um incentivador como um delimitador, uma vez que afeta as condições medicalizadas pelas políticas de convênio de saúde que podem ou não cobrir determinado tratamento.

Em termos de novos conhecimentos médicos, a biotecnologia, por meio das indústrias biotecnológica e farmacêutica, tem se tornado um dos maiores atores da medicalização (CONRAD, 2007). A indústria farmacêutica sempre esteve presente na promoção de produtos para diversas doenças, oferecendo medicamentos para condições medicalizadas, como TDAH, depressão e menopausa. Apesar disso, era preciso que médicos ou outros profissionais atuassem como principal agente nesse processo de medicalização e indicação medicamentosa.

Contudo, esse cenário mudou. O médico ainda é considerado um gatekeeper, na medida em que tem o poder de prescrever e intermediar o uso de medicamentos; mas a

indústria farmacêutica se tornou também um grande agente na medicalização (CONRAD,

2007), diante da possibilidade de propagar seus produtos diretamente ao consumidor, criando mercados para esses produtos. Um exemplo disso é a ideia da andropausa e o uso da terapia de reposição de testosterona que estão emergindo, movidos pelos avanços tecnológicos no domínio farmacêutico e pela distribuição de medicamentos para uma diversidade de problemas masculinos.

A medicina genética, para Conrad (2007), ainda está no nível da idealização mais que da prática. Entretanto, pode ser considerada um potencial fator da medicalização. De fato, a combinação de emergentes tecnologias entre genética molecular e genética populacional tem representado uma expansão na medicalização na forma do que tem sido chamado de

‘genetização’ (LOCK, 2001). Dessa forma, testes genéticos e screening de fetos, recém- nascidos e adultos tornam-se cada vez mais institucionalizados, o que amplia as alternativas de vigilância.

O conceito de genetização foi sugerido por Lippman (1991), que entende ser esse um processo contínuo pelo qual as diferenças entre os indivíduos são reduzidas aos seus códigos de DNA, ou seja, muitos dos distúrbios, comportamentos e variações psicológicas são definidas, pelo menos parcialmente, como genéticos em sua origem. Esse processo se refere, também, às intervenções em que tecnologias genéticas são adotadas para lidar com problemas de saúde. No entanto, conforme apontam Shostak et al. (2008), informação genética nem sempre acarreta genetização, que, por sua vez, não conduz inevitavelmente à medicalização, tendo em vista que depende de como a informação genética é interpretada. Apesar disso, o potencial da medicina genética expandir a medicalização existe e é reconhecido por diversos estudiosos (CONRAD, 2013).

Ainda nesse contexto biotecnológico, Clarke e Shim (2011) colocam que práticas que enfatizam as transformações de doenças, disfunções ou defeitos corporais por meios tecnocientíficos dizem respeito à biomedicalização. O termo biomedicalização foi sugerido por Clarke et al. (2003), os quais entenderam haver uma mudança da medicalização para a biomedicalização, na medida em que procedimentos são realizados em grande parte mediante rápidas intervenções de alta tecnologia não só para o tratamento, mas cada vez mais para o aumento ou otimização (CLARKE; SHIM, 2011). Entretanto, enquanto Clarke et al. (2003) entendem que houve uma mudança, Conrad (2013) defende que a medicalização não sofreu alteração, mas intensificação, discordando com a proposição desses autores, pois acredita que o conceito de biomedicalização abrange um conjunto de mudanças que compromete o foco da medicalização em si.

Com efeito, a área classificada como novo agente da medicalização reconhecida por Conrad (2007), que combina genética e medicalização, é a de aprimoramento biomédico, a qual determina o uso de meios médicos para melhorar o corpo ou a performance humana e permite novas formas de medicalização. O aprimoramento biomédico pode ser alcançado por meio de medicamentos, cirurgias, ou outras intervenções médicas com a finalidade de aprimorar a mente, o corpo ou a performance de um indivíduo. Exemplos são as cirurgias plásticas e o uso de esteroides, hormônios e medicamentos estimulantes para melhorar performance física. Para Conrad (2007), a medicalização pode incorporar esses desenvolvimentos, contudo, Gabe et al. (2015) argumentam que o conceito de farmaceuticalização é necessário para capturar a importância crescente de produtos farmacêuticos como uma forma específica da medicina, dentro e além da medicalização. Sobre isso, Conrad (2013) reconhece a farmaceuticalização como um fenômeno que impulsiona a medicalização e a torna global. Desse modo, a farmaceuticalização diz respeito, especificamente, ao crescente uso de

medicamentos como fenômeno social e pode ser entendida como complementar à medicalização.