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Embora a máxima do pragmatismo forneça uma condição fundamental para a introdução de novas hipóteses explicativas no decorrer de uma pesquisa, não há menção alguma, na fórmula sugerida por Peirce como estrutura geral dos supostos argumentos abdutivos, a qualquer critério que determine a preferência por uma hipótese em detrimento de outras igualmente explicativas. Que tem de haver um tal critério de preferência é uma exigência imposta pelo próprio filósofo à sua definição de abdução, já que esta deve incluir

“uma preferência por alguma das hipóteses em detrimento de outras igualmente explicativas dos fatos” (PEIRCE, CP 6.525, tradução nossa)67

, mas é difícil ver no que consiste esse critério, já que ele deve atuar antes da hipótese escolhida ser submetida a qualquer teste

indutivo ou dedutivo, ou seja, “sem que a preferência se baseie em qualquer conhecimento

prévio a respeito da verdade das hipóteses, nem em qualquer teste delas, após admiti-las para

exame” (PEIRCE, CP 6.525, tradução nossa)68 .

Talvez uma pista se encontre na primeira premissa do esquema: “O fato surpreendente F foi observado”. Ora, o reconhecimento de um fato ou conjunto de fatos como surpreendente

supõe que se identifique alguma incongruência explicativa entre o que foi constatado e o que se esperava que acontecesse naquelas mesmas circunstâncias. Mais precisamente, a abdução requer, como condição necessária do argumento, a constatação de um fato surpreendente e essa surpresa, por sua vez, pode advir tanto do caráter inédito (com relação a algum conhecimento prévio) do fato observado, quanto do seu caráter anômalo, ou seja, do seu

67“a preference for any one hypothesis over others which would equally explain the facts”.

68 “so long as this preference is not based upon any previous knowledge bearing upon the truth of the

conflito com as previsões de uma determinada teoria. Atocha Aliseda chama a essas

ocorrências surpreendentes de “gatilhos” (“triggers”) abdutivos e propõe para elas a seguinte

formalização (ALISEDA, 2004, p. 353):

Novidade abdutiva ~(T  E) e ~(T  ~E)

Anomalia abdutiva ~(T  E) e T  ~E

Tabela 1c. Dois tipos de “gatilhos” abdutivos

Nesse quadro, o símbolo  representa o que Aliseda denomina relação de “inferência

explicativa” (“explanatory inference”) que, nos casos em que E representa um gatilho

abdutivo inédito, não se verifica nem entre T e E, nem entre T e a negação de E. Em outras palavras, E é consistente com a teoria T, embora ainda não explicável por ela sozinha (ou seja, sem a adição de outras premissas ou hipóteses auxiliares). Nos casos em que E representa um gatilho abdutivo anômalo, T explica ~ E e, por isso, a eventual introdução de E entre os

explananda de T tornaria esta última inconsistente.

A distinção entre dois tipos de gatilhos abdutivos, proposta por Aliseda, faz parte de um

esquema geral para a abdução compreendida como “um processo geral de explicação, cujos

produtos são explicações específicas, dotado de certa estrutura inferencial” (ALISEDA, 2004, p. 352, tradução nossa)69. Nesse esquema geral, produzir uma explicação significa encontrar ou, de algum modo, introduzir C, um conjunto de fatos, regras, hipóteses ou outros tipos de proposições que, em conjunção com T, permita explicar E:

T, C 

No entanto, é perfeitamente viável reconstruir a constatação de um fato anômalo como o resultado de uma dedução. Dado um conjunto de conhecimentos prévios Q, com relação ao qual a ocorrência de fatos de um tipo P seria surpreendente ou incompatível com outros fatos,

69 “a general process of explanation, whose products are specific explanations, with a certain inferential

‘Ver’ que P é contrário a Q ou improvável, dado Q, é constatar que Q ou bem

implica ou bem torna mais provável ~P, o que, nesse caso, faz da observação subjacente a um julgamento de contrariedade exatamente uma típica dedução. Portanto, a inferência de que um fenômeno é surpreendente, carente de explicação,

parece dedutiva”(ALISEDA, 2004, p. 352, tradução nossa)70

.

Na tentativa de defender a “autonomia” da abdução com relação a outras formas de

inferência, Norwood Hanson sugere que as teses de Peirce sobre a peculiaridade da abdução podem ser mais bem compreendidas se considerarmos a distinção entre razões para se aceitar uma hipótese específica como verdadeira e razões para se considerar inicialmente um tipo de hipótese como o mais plausível (dada uma determinada situação-problema) (HANSON, 1960, p. 94). A distinção traçada por Hanson leva-nos, portanto, a outra alteração no esquema da retrodução apresentado anteriormente, resultando em algo próximo da versão proposta por Niinniluoto, na qual a segunda premissa e a conclusão do argumento passam a referir-se apenas a tipos de hipóteses capazes de explicar os fatos surpreendentes, ao invés de falarem de uma hipótese explicativa específica.

“O fato surpreendente C foi observado;

Há razões para suspeitar que alguma hipótese de tipo K explica C,

Logo, há razões para suspeitar que alguma hipótese de tipo K é verdadeira” (NIINILUOTO, 2004, p. 440, tradução nossa)71.

De acordo com Hanson, as semelhanças estruturais entre as formas geométricas circulares e a trajetória aparente dos astros que orientaram Kepler, por exemplo, na formulação de suas hipóteses sobre o movimento de Marte são exatamente as razões especificamente abdutivas da sua investigação, as razões para se sugerir ou utilizar um tipo de hipótese ao invés de outro. A sua peculiaridade está no fato delas não servirem como critérios racionais para se confirmar ou refutar uma hipótese específica e por isso não seria apropriado

70To “see” that P is contrary to Q or improbable given Q, is to realize that Q either implies our makes likely ~P,

in which case the observation underlying a judgment of contrareity is exactly the sort that typifies deduction. Hence, the inference that the phenomenon is surprising, in want of explanation, appears to be deductive”.

71 “The surprising fact C is observed; There is reason to suspect that some hypothesis of kind K explains C,

descrevê-las como partes do esquema de premissas e conclusões dos modelos indutivos e dedutivos. E mais uma vez, por estarem baseadas na identificação de semelhanças, Hanson as qualifica como mais próximas de alguma espécie de raciocínio analógico, no qual a conclusão

de que uma hipótese como “Todo os A’s são B’s” é a mais plausível não é derivada de uma

generalização a partir de casos particulares, mas das similaridades entre o modo como a

hipótese associa A’s e B’s e a maneira como alguma outra hipótese associa outros elementos C’s e D’s (HANSON, 1960, p. 95).

Seria essa uma distinção sem diferenças? Haveria razões específicas para a sugestão de hipóteses, diferentes daquelas geralmente usadas para confirmá-las ou refutá-las? Em alguns momentos, Peirce de fato identifica a originalidade de uma ideia com o resultado do que ele

chama de “associação por semelhança” (“association by ressemblance”72

). Ou seja, uma ideia inédita deriva de alguma associação jamais feita entre outras ideias previamente conhecidas. Uma afirmação, aliás, bastante trivial, se ela não fosse seguida pela ressalva de que não é a semelhança que conduz à associação, como insinua a expressão, mas antes uma certa associação entre noções nunca comparadas é que “constitui a semelhança” entre elas (PEIRCE, CP 7.498, tradução nossa)73. Foi a partir de uma associação desse tipo, vagamente percebida de início, que Kepler chegou à sua célebre hipótese explicativa final sobre a órbita de Marte; essa semelhança apenas vislumbrada orientou-o a olhar de certo modo para as evidências. Peirce nos fornece um outro exemplo:

Suponha que eu esteja a muito tempo intrigado com algum problema – digamos, como construir uma excelente máquina de escrever. Há várias ideias vagas em minha mente, nenhuma delas, tomadas isoladamente, possui qualquer analogia com meu problema principal. Mas algumas dessas ideias, presentes na consciência, porém ainda muito obscuras nas profundezas do pensamento subconsciente, conseguem conectar-se de um modo particular, de tal maneira que essa combinação apresenta uma estreita analogia com a minha dificuldade. Quase instantaneamente, essa combinação destaca-se com vividez. Esta vividez não pode ser [o resultado de] uma contiguidade; pois se trata de uma ideia completamente nova. Ela jamais me ocorrera antes e, portanto, não está sujeita a nenhum hábito adquirido. Aparantemente, deve ser a sua analogia, ou semelhança formal, com o ponto crucial do meu problema aquilo que a faz emergir com vivacidade. O que seria isso senão

72

Peirce (CP 4.98).

pura associação por semelhança? (PEIRCE, CP 7.498, grifo do autor, tradução nossa)74

Todavia, se finalmente deve-se a essa associação por semelhança a origem de novas conjeturas, por que então chamá-la de retrodução ou abdução?75 Essa questão não se reduz a uma disputa inútil sobre nomenclatura. O problema fundamental é que não se vê como essas associações de ideias, tal como descritas na passagem acima, podem contar como razões para se gerar nem muito menos para se aceitar provisoriamente uma hipótese. Novamente recaímos na mesma dificuldade de não conseguir determinar o que haveria de estritamente específico nesse tipo de inferência chamado abdução. Mais do que isso: a própria ideia de uma lógica da descoberta permanece sem qualquer sentido e um autor como Wesley Salmon, por exemplo, pode assim utilizar os conceitos do cálculo probabilístico bayesiano para incorporar a vaga

noção de “plausibilidade” aos critérios de avaliação exclusivos do contexto de justificação de

uma hipótese.

Considere a probabilidade inicial P (A,B) [onde A é uma hipótese e B a evidência por ela explicada]. Trata-se da probabilidade de que nossa hipótese seja verdadeira, sem levar em conta os resultados de nossas predições. Essa probabilidade é logicamente anterior ao teste empírico proporcionado pelo método hipotético- dedutivo. Como dar sentido a uma tal probabilidade? Independentemente de qual seja nossa resposta detalhada, um ponto preliminar é manifesto. Probabilidades iniciais satisfazem a descrição de Hanson para argumentos de plausibilidade. Argumentos de plausibilidade incorporam considerações relevantes para a avaliação de probabilidades iniciais. Eles são logicamente anteriores aos dados de confirmação que emergem do esquema hipotético-dedutivo e envolvem considerações diretas sobre a probabilidade de uma hipótese de certo tipo ser bem sucedida. Esses argumentos de plausibilidade não constituem, obviamente, uma lógica da descoberta. Não só eles são admissíveis na lógica da justificação; eles são uma

parte indispensável dela (SALMON, 1966, p. 118, grifo do autor, tradução nossa)76.

74“Suppose I have long been puzzling over some problem, - say how to construct a really good typewriter. Now

there are several ideas dimly in my mind from time, none of which taken by itself has any particular analogy with my grand problem. But someday these ideas, all present in consciousness together but yet all very dim deep in the depths of subconscious thought, chance to get joined together in a particular way such that the combination does present a close analogy to my difficulty. That combination almost instantly flashes out into vividness. Now it cannot be contiguity; for the combination is altogether a new idea. It never occurred to me before; and consequently cannot be subject to any acquired habit. It must be, as it appears to be, its analogy, or resemblance in form, to the nodus of my problem which brings it into vividness. Now what can that be but pure

fundamental association by resemblance?”.

75

Cf., por exemplo, Hoffman (2000, p. 285 e seq.)

76 “Consider the prior probability P (A, B). It is the probability that our hypothesis is true regardless of the

outcome of our prediction. This probability is logically prior to the empirical test provided by the hypothetico- deductive method. How are we to make sense of such a probability? Regardless of our detailed answer, one

preliminary point is apparent. Prior probabilities fit the description of Hanson’s plausibility arguments.

Como veremos no terceiro capítulo, essa dificuldade só será vencida satisfatoriamente em um quadro teórico no qual seja possível distinguir claramente regras estratégicas e regras

definidoras do processo de investigação, reconstruindo-se este último – vale ressaltar mais

uma vez – como um jogo de perguntas e respostas.

Em todo caso, os esforços de autores como Peirce e Hanson para reconstruir racionalmente episódios como a descoberta astronômica de Kepler indicam, no mínimo, que negligenciar a análise lógica do chamado contexto de descoberta seria uma atitude filosófica extremamente anti-socrática77, já que deixaria ao largo do exame racional uma parte importante de nossas vidas cognitivas e da atividade científica, a saber, as razões que conduziram investigadores como Kepler, Galileu e Newton a supor que suas hipóteses seriam de um tipo determinado e não de outro (HANSON, 1960, p. 106).