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No caso da IME, há pelo menos três aspectos relevantes para comparação. Primeiro, o modo como os modelos cotejados articulam os atos de inferir e explicar; em segundo lugar, a maneira como eles identificam os critérios que usamos para discernir boas, más explicações e pseudo-explicações; por fim, a forma como eles constroem o vínculo entre as virtudes explicativas de uma hipótese e as razões para considerá-la verdadeira ou falsa. Em meados do século XX, um modelo de inferência e explicação científica, proposto originalmente por Carl Hempel e Paul Oppenheim, parecia atender bem a todos esses requisitos. Segundo uma versão simplificada desse modelo, explicar um evento ou acontecimento significa simplesmente

deduzi-lo de uma ou algumas leis gerais devidamente circunscritas a certas condições iniciais

de aplicação. A explicação científica paradigmática poderia assim ser racionalmente reconstruída como um argumento dedutivo

C1, C2, C3, ... Ck L1, L2, L3, ... Lr ____________ E

cuja primeira premissa C1, C2, C3, ..., Ck é formada por sentenças declarativas sobre fatos particulares que especificam as condições relevantes e suficientes para que se manifestem determinadas regularidades no fluxo dos eventos, sendo essas regularidades enunciadas, por sua vez, sob a forma de sentenças universais na segunda premissa L1, L2, L3, ... Lr. Juntas, essas leis gerais e suas condições particulares de aplicação constituem o

explanans para o evento E a ser explicado, o explanandum. Desde que as premissas sejam

verdadeiras, que haja entre elas pelo menos uma proposição universal funcionando como lei natural e que a conclusão seja uma consequência dedutivamente necessária, tem-se aí uma explicação legítima para E (HEMPEL, 1965, p. 174). Em outras palavras, compreender cientificamente porque algo acontece ou aconteceu significa, de acordo com tal modelo, chamado geralmente de nomológico-dedutivo, afirmar que a ocorrência desse fato seria uma

consequência (lógica) esperada, dada uma lei natural que prevê acontecimentos desse tipo em circunstâncias semelhantes (HEMPEL, 1965, p. 337). Sendo assim, o poder explicativo de uma teoria científica equivale às predições que ela permite fazer, não havendo diferença lógica entre prever e explicar a ocorrência de uma regularidade observável específica. O que distingue uma explicação de uma predição é apenas a localização temporal do explanandum: se se trata de um evento já ocorrido ou de algo ainda por acontecer.

Não cabe aqui retomar todas as questões do longo e complicado debate suscitado pelo modelo nomológico-dedutivo. Se o evocamos neste momento é simplesmente pela sua inegável centralidade nas discussões contemporâneas sobre explicações científicas: o espaço vazio deixado pelas suas pretensões não realizadas e pelas suas limitações tornou-se o terreno fértil onde se desenvolveram praticamente todos os modelos de explicação e inferência mais recentes, inclusive a IME.

Um dos principais atrativos do modelo nomológico-dedutivo é o critério claro de distinção entre explicações e pseudo-explicações que ele oferece, reportando-se aos procedimentos de determinação da validade lógica de argumentos dedutivos. Isso o coloca em condições de responder de uma maneira bastante intuitiva e elegante ao problema da relação entre o poder explicativo das teorias e os testes e observações experimentais. Na medida em que explicar e prever fenômenos são procedimentos logicamente idênticos, “uma teoria que nos fornece boas explicações é confirmada exatamente da mesma maneira que uma que

produz predições verdadeiras” (GASPER, 1991, p. 291-292, tradução nossa)91

. Com isso, o poder explicativo das teorias revela-se um critério epistêmico de apreciação, ou seja, um critério que permite decidir pela verdade ou falsidade das teorias em jogo, em contraste com outras qualidades explicativas não-experimentais (simplicidade, capacidade de unificação, menor uso de afirmações ad hoc, etc.), tratadas “seja como puramente pragmáticas e,

91 “a theory that provides us good explanations is confirmed in exactly the same way as one that yields true

portanto, epistemicamente irrelevantes [...] ou como puramente sintáticas e, portanto,

convencionais” (BOYD; GASPER; TROUT, 1991, p. 360, tradução nossa)92

. No modelo nomológico-dedutivo, o poder explicativo das teorias científicas é apenas um caso especial do critério epistemológico básico que prescreve a preferência por teorias cujas predições observáveis foram confirmadas por testes experimentais (BOYD; GASPER; TROUT, 1991, p. 353).

Esse modelo acomoda-se facilmente às clivagens conceituais estabelecidas pelo procedimento de reconstrução racional defendido pelos empiristas lógicos, sobre as quais falamos no início deste capítulo. Não só por atribuir às explicações científicas algo como uma estrutura interna, caracterizando-as a partir da relação lógica entre premissas e conclusão, mas sobretudo por se abster de quaisquer considerações sobre a origem e a seleção do explanans, corroborando a distinção entre contexto de descoberta e contexto de justificação. Ele também permitiria, a princípio, despojar o conceito de explicação causal de toda sua histórica carga de

conotações metafísicas, expressa em termos como “força causal”, “influência inobservável”, “mecanismos subjacentes aos fenômenos”, “disposições naturais”, “essências”, já que as

sentenças universais exibidas no explanans podem ser compreendidas como simples enunciados universais sobre regularidades postuladas entre eventos observáveis. Com isso, o modelo mostra mais uma afinidade com o projeto antimetafísico do empirismo lógico, servindo como uma maneira de reconstruir explicações científicas destituídas de qualquer referência a conceitos metafísicos ou objetos inobserváveis, e, ao mesmo tempo, coaduna-se com as análises do filósofo escocês David Hume sobre a noção de causalidade. Grosso modo, Hume argumentava que a nossa concepção dessa noção possui como fundamento uma espécie

de propensão psicológica gerada por experiências de “conjunção constante” – no espaço e no

tempo – entre certas impressões sensíveis. Segundo ele, identificamos uma impressão como

causa de outra quando, após um número suficiente de experiências, reconhecemos que impressões semelhantes à primeira sempre vêm acompanhadas por impressões do mesmo tipo da segunda. Assim aprendemos, por exemplo, que a chama da vela pode causar a dor da

queimadura, se nos aproximamos do seu pavio, mas não há nada no conceito de “fogo” ou “chama” que nos permita conceber a priori, antes de qualquer experiência, a capacidade de

causar a dor de uma queimadura na pele, assim como não está contida a priori na ideia de água a sua eventual capacidade de aliviar a sede. A abordagem de Hume, porém, não esclarece por que atribuímos relações causais a certas regularidades e não a outras. No modelo nomológico-dedutivo, essa dificuldade é supostamente sanada construindo-se a lei geral do

explanans como parte de uma estrutura teórica mais abrangente que inclui um corpo de

hipóteses auxiliares e várias cláusulas sobre as condições antecedentes de teste. Essa estrutura teórica determina os aspectos observáveis da realidade a serem conectados sob leis naturais e substitui, dessa forma, a ideia humeana de conjunção constante entre impressões. Assim, os casos clássicos e mais simples de relações causais deterministas (não-probabilísticas) são racionalmente reconstruídos pelo modelo nomológico-dedutivo nos seguintes termos: “um evento causa outro subsequente apenas nos casos em que o segundo evento é dedutivamente previsível a partir do primeiro, dadas leis da natureza e as sentenças apropriadas a respeito das

condições antecedentes” (GASPER, 1991, p. 290, tradução nossa)93 .

No entanto, ao reconstruir dessa maneira os conceitos de causalidade e explicação científica, o modelo suscita uma questão que será crucial para o debate a respeito das inferências à melhor explicação. Se a função das leis científicas é exprimir regularidades entre eventos observáveis, não haveria a princípio necessidade de se formular leis que mencionam termos teóricos, cujas referências hipotéticas seriam entidades inobserváveis. Apenas leis

empíricas deveriam subsistir nas teorias racionalmente reconstruídas. A despeito disso, “os

93 “one event causes a subsequent event just in case the second event is deductively predictable from the first

maiores avanços da ciência foram alcançados quando as leis gerais se referiram a entidades teóricas, hipotéticas, não-observáveis” (HEMPEL, 1965, p. 177, tradução nossa). Sabe-se que as leis empíricas costumam possuir um âmbito de aplicação muito limitado. As sentenças

“madeira bóia na água” e “ouro afunda na água” são generalizações empíricas que

mencionam apenas madeira e ouro, atribuindo um comportamento específico a esses materiais quando colocados na água. Além de restritas, essas sentenças estão sujeitas a várias exceções: certos tipos de madeira afundam na água e podem-se forjar corpos esféricos de ouro que, pelas suas dimensões, boiariam na água. Por outro lado, a história das ciências mostra que a menção a entidades não-observáveis resolve boa parte dos problemas enfrentados pelas generalizações empíricas. No caso das sentenças sobre a madeira e o ouro, pode-se, por exemplo, recorrer ao conceito de peso específico, definido como o quociente entre o peso e o volume de um corpo qualquer x (há procedimentos de medida diretos para cada uma dessas duas grandezas). Com esse termo teórico e sua definição em termos de grandezas observáveis, pode-se então formular uma nova generalização bem mais abrangente e precisa, que seria um corolário do princípio de Arquimedes: um sólido bóia em um líquido se o seu peso específico for menor que o do líquido (HEMPEL, 1965, p. 180). Não tardou a ficar evidente que os procedimentos lógico-semânticos de tradução dos termos teóricos em uma linguagem exclusivamente observacional, ainda que tecnicamente viáveis, implicavam em perdas muito mais significativas do que em ganhos. As explicações científicas traduzidas desse modo perdem em poder explicativo, simplicidade e valor heurístico, tornando-se incapazes de se adaptar a novas situações experimentais (HEMPEL, 1965, p. 204). Haveria então algum equívoco nas pretensões antimetafísicas do modelo nomológico-dedutivo? Por que a eliminação de toda referência a termos teóricos parece provocar tantos prejuízos metodológicos?

Uma resposta possível, elaborada por filósofos de orientação realista, é que tanto o uso de termos teóricos quanto as considerações sobre as qualidades não-experimentais das explicações científicas não são apenas procedimentos úteis ou, como se costuma dizer, meramente pragmáticos da atividade científica. Ao contrário do que se poderia concluir do tipo de reconstrução racional proposto pelo modelo nomológico-dedutivo, o significado dos termos teóricos e as virtudes explicativas de uma teoria são elementos que desempenham uma função metodológica crucial na seleção das evidências experimentais capazes de corroborá-la ou refutá-la. Eles funcionam como “filtros” que selecionam, por um lado, as teorias a serem confrontadas com as evidências e, por outro, as classes de evidências que podem contar como corroboradoras das teorias.

Das infinitas generalizações diversas sobre os observáveis e que são logicamente compatíveis com qualquer corpo de evidências observacionais, apenas um número finito (tipicamente bastante pequeno) de generalizações que correspondem a teorias simples, explicativas e que satisfazem outros critérios não-experimentais são candidatos a tentativas de confirmações indutivas por aquelas observações (BOYD; GASPER; TROUT, 1991, p. 351, tradução nossa)94.

[…] a solução para o problema da amostragem na elaboração de experimentos em ciências maduras pressupõe conhecimento prévio sobre ‘entidades teóricas’ ou ‘fatores causais’ inobserváveis. (BOYD; GASPER; TROUT, 1991, p. 365, tradução

nossa)95.

Se essa resposta estiver correta, então nem a identificação entre poder explicativo e capacidade preditiva de uma teoria, postulada pelo modelo nomológico-dedutivo, nem o modo como ele reconstrói a noção de causalidade representam de modo satisfatório a contribuição metodológica das virtudes explicativas e da semântica dos termos teóricos para a objetividade do conhecimento científico.

Por fim, o modelo nomológico-dedutivo enfrenta ainda as dificuldades derivadas da sua própria ideia central. Ao assimilar as relações explanans/explanandum e causa/efeito à relação

94 “Of the infinitely many generalizations about observables that are logically compatible with any body of

observational evidence, only the (typically quite small) finite number of generalizations that correspond to theories that are simple, are explanatory, and otherwise satisfy non experimental criteria are candidates for even

tentative confirmation by those observations”,

95 “the solution to the problem of sampling in experimental design in mature sciences presupposes prior

de consequência lógica, ele acaba impondo uma exigência muito restritiva e, ao mesmo tempo, muita permissiva para as explicações científicas: muito restritiva porque poucas explicações a satisfazem plenamente e, entre aquelas que não a satisfazem, várias sequer reclamam a forma de um argumento dedutivo (nem mesmo estatístico-indutivo) para se tornarem explicações legítimas e completas de um evento; muito permissiva porque não exclui casos em que uma conclusão, mesmo sendo uma consequência dedutivamente válida das premissas, não é explicada por estas. No argumento dedutivo

Os homens que tomam pílulas anticoncepcionais regularmente não ficam grávidos; José é um homem que toma pílulas anticoncepcionais regularmente;

Logo, José não fica grávido.

a lei geral enunciada é irrelevante para explicar a conclusão, assim como há casos em que a conclusão, ainda que dedutível das premissas, aparentemente não as corrobora, como fica claro no conhecido paradoxo do corvo. Mas a excessiva permissividade do modelo também se manifesta nos casos de assimetria explicativa, quando um argumento nomológico- dedutivo é invertido (o explanadum torna-se parte do explanans) e preserva a sua validade lógica, perdendo, no entanto, seu caráter explicativo. O exemplo famoso aqui é o do mastro da bandeira e sua sombra.

Assim, dadas as leis da ótica, a posição do sol e a altura de um certo mastro de bandeira, podemos calcular a comprimento da sombra projetada pelo mastro. […] Mas, dado o comprimento da sombra e as outras informações, nós podemos

igualmente calcular a altura do mastro”(GASPER, 1991, p. 292, tradução nossa)96.

Embora a altura do mastro seja perfeitamente dedutível das leis ópticas de propagação linear da luz, tendo-se, como condições iniciais, o ângulo de incidência dos raios solares com relação ao horizonte e o tamanho da sombra projetada no solo, não se pode dizer que aquelas leis e suas condições de aplicação explicam a altura do mastro. A simetria lógica é

96“Thus, given the laws of optics, the position of the sun, and the height of a certain flagpole, we can calculate

the length of the shadow that the flagpole will cast. […]. But, given the length of the shadow and the other information, we can equally calculate the height of the flagpole”.

incompatível com a assimetria explicativa. Portanto, nem sempre um explanandum é também consequência dedutiva de um explanans; nem sempre um argumento dedutivo caracteriza uma relação explicativa entre premissas e conclusão. Ao contrário do que esperavam alguns dos seus defensores, o modelo nomológico-dedutivo não oferece um critério suficiente – nem necessário – para configurar uma explicação, seja ela científica ou não.

Dito isso, é importante observar que os diversos argumentos e exemplos levantados contra o modelo nomológico-dedutivo não constituem razão suficiente para se condenar ao fracasso a priori qualquer tentativa de reconstrução da relação explanans-explanandum como uma relação lógica. Todavia, as dificuldades apresentadas acima revelaram aspectos filosoficamente intrigantes da atividade e da metodologia científica que alguns autores buscaram elucidar recorrendo a outros modelos de inferência e explicação. Especialmente intrigante é o fato de elementos constitutivos das teorias científicas não vinculados

diretamente aos fenômenos da experiência – a saber, as suas virtudes explicativas e suas

referências a entidades inobserváveis – cumprirem, não obstante isso, uma função metodológica semelhante a dos testes experimentais e da observação.