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Embora as diversas dificuldades em caracterizar a IME e a abdução como tipos específicos de argumentos nos levem a concluir que não há motivos suficientes para atribuí- las alguma estrutura peculiar de premissas e conclusão, restam, todavia, em aberto as questões filosóficas que ambos os modelos visam responder. Existe uma lógica da descoberta científica? As qualidades explicativas de uma teoria científica podem contar legitimamente como razões para sustentá-la como verdadeira ou são meros critérios certamente úteis para orientar as investigações científicas com base nessa teoria, mas sem nenhuma relação com a verdade das explicações por ela oferecidas? Se, à luz da abordagem pragmático- transcendental, for possível atender às demandas reunidas sob os rótulos da abdução e da IME e, ao mesmo tempo, evitar os problemas expostos nos capítulos anteriores, isso poderá servir como uma espécie de prova indireta a favor da própria abordagem adotada.

A primeira coisa a se ter em conta quando se propõe uma reconstrução racional do conhecimento científico orientada pela perspectiva pragmático-transcendental é que ela não se aplica a qualquer tipo de atividade ou jogo de linguagem. No caso das ciências empíricas, é preciso que a atividade em questão satisfaça certas condições fundamentais que a tornem uma

atividade experimental de caráter objetivo. Por um lado, ela deve possuir “um grau suficiente

de reprodutibilidade e universalidade” (BITBOL, 1998, p. 20-21, tradução nossa)221, ou seja, ela deve configurar-se como um conjunto de experiências e procedimentos passíveis de repetição por todos os agentes devidamente habilitados a desempenhá-la. Essa condição é uma consequência da pretensão de objetividade que caracteriza as proposições produzidas no interior de tais jogos de linguagem. Afinal, na perspectiva transcendental kantiana, o que confere validade objetiva a uma proposição não é a sua relação privilegiada com coisas ou

situações subsistentes por si mesmas, mas o fato dela expressar a pretensão de ser válida universalmente e necessariamente.

Além de suficientemente reprodutíveis e universalisáveis, as atividades que podem ser objeto de uma abordagem transcendental devem eventualmente respeitar também certas restrições empíricas, expressas, por exemplo, em constantes universais, como nos casos da Física e da Química. Isso, contudo, não significa que a atividade de pesquisa sofra restrições impostas por algo externo e pré-existente a ela mesma. Na perspectiva transcendental, valores constantes, como a velocidade da luz, estão intrinsecamente relacionados aos tipos de procedimentos por meio dos quais eles são medidos, de tal forma que não há porque encará- los como sintomas manifestos ou indícios de algo existente em si. Tratam-se simplesmente de limitações intrínsecas às próprias práticas científicas aceitas222.

Em segundo lugar, a fim de manter-se próxima da afirmação kantiana segundo a qual “a

razão só entende aquilo que produz segundo os seus próprios planos”, uma reconstrução

racional da atividade científica deve compreender a procura de conhecimento em geral como a tentativa deliberada de produzir regras de antecipação das respostas da experiência. Assim, a melhor maneira de reconstruir racionalmente a investigação científica é representá-la como uma família de jogos de perguntas e respostas. O(a) cientista é a pessoa devidamente treinada para produzir perguntas apropriadas e dirigi-las ao âmbito da experiência tomado como sua fonte de respostas. Assim, à luz desse quadro conceitual, qualquer informação nova introduzida no decorrer de uma pesquisa deve ser interpretada como a resposta a uma pergunta (tácita ou explícita) previamente dirigida a uma fonte de informações.

A perspectiva transcendental reconhece então dois tipos de regras operativas no interior desses jogos de linguagem peculiares. Em primeiro lugar, regras que exprimem condições

definidoras desses jogos, as quais, sendo desrespeitadas, os descaracterizariam enquanto

222“This being granted, a theory like quantum mechanics no longer appears as a reflection of some (exhaustive

or non-exhaustive aspect) of a pre-given nature, but as the structural expression of the co-emergence of a new

atividades experimentais com pretensões objetivas. Em segundo lugar, regras de caráter

estratégico, cuja função principal consistiria em orientar os investigadores na construção de

teorias cada vez mais abrangentes e completas, capazes de conduzir, por fim, todo conhecimento produzido a uma unidade sistemática. No vocabulário utilizado por Kant, as regras definidoras das atividades de pesquisa científica equivaleriam às condições

constitutivas da experiência, pois “só por seu intermédio são possíveis o conhecimento e a determinação de um objeto” (KANT, 2001, A 310, B 367). Elas funcionam, portanto, como

critérios que determinam o que é uma experiência objetivamente válida. As regras estratégicas, por sua vez, corresponderiam ao que o filósofo chamava de princípios

regulativos da razão, destinados ao uso como “princípios heurísticos na elaboração da experiência” (KANT, 2001, A 663, B 691). Eles são apenas e estritamente regulativos com

relação à produção de conhecimento na medida em que não são necessários para configurar as atividades de pesquisa como antecipações objetivas da experiência, mas são necessários para conferir a tais atividades e a seus resultados uma coerência sistemática. Em outras palavras, eles não servem para garantir a objetividade do conhecimento; apenas contribuem para torná- lo cada vez mais coerente223.

O que foi dito até aqui sobre as características e o papel desempenhado pelos princípios regulativos na produção de conhecimento não deixa dúvidas de que eles contemplam pelo menos uma parte das questões que os modelos da abdução e da IME pretendiam responder. À luz da perspectiva pragmático-transcendental aqui esboçada, qualquer reconstrução racional

do “contexto de descoberta” das teorias científicas supõe a referência a uma finalidade ou

objetivo geral das atividades de investigação. Para Kant, essa finalidade é encarnada pela

ideia de um sistema completo do conhecimento científico; ela é o focus imaginarius para o

223 “The idea of a completely adequate system of scientific knowledge is what legitimates scientific

experimentation. It provides reason with an idea that it seeks to realize by means of specific scientific theories.

The theoretical ideas (…) provide reason with a specific focus to use when it turns to the empirical world in order to produce the empirical regularities that constitute the basis of our empirical knowledge of the world”

qual convergem todos os princípios regulativos; ela é a fonte de regras heurísticas que orienta a produção de novas hipóteses de pesquisa.

Kant nos apresenta um exemplo extraído dos estudos químicos do seu tempo para mostrar como atua, no decorrer de um programa de pesquisa, o princípio regulativo da

“homogeneidade do diverso sob géneros superiores” (KANT, 2001, A 657, B 685).

“Já era muito os químicos terem podido reduzir todos os sais a duas espécies

principais, os ácidos e os alcalinos, mas ainda tentam considerar esta distinção como uma variedade ou manifestação diversa de uma mesma substância fundamental. Tentaram, pouco a pouco, reduzir a três e por fim a duas as diversas espécies de terras (a matéria das pedras e mesmo dos metais); mas, descontentes ainda com isto, não se puderam furtar ao pensamento de suspeitar por detrás destas variedades um gênero único e até mesmo um princípio comum às terras e aos sais” (KANT, 2001, A 652-3, B 680-1).

Todavia, a simples exposição dos princípios regulativos e do que Kant chamava de

“aforismos da sabedoria metafísica” – tais como “A natureza toma o caminho mais curto [...];

a sua grande multplicidade em leis empíricas é igualmente unidade sob poucos princípios

[...]” (KANT, 2010, XXXI)224 – que formam, em seu conjunto, a ideia de um sistema completo do conhecimento, não seria suficiente para marcar a diferença crucial entre a abordagem pragmático-transcendental e as abordagens realistas e antirrealistas do conhecimento científico. Nenhum antirealista teria dificuldades em reconhecer a utilidade

heurística de princípios semelhantes ao da “homogeneidade do diverso”, por exemplo. Ele

apenas salientaria que tais regras não são nada além de úteis, enquanto um realista tentaria eventualmente provar que a sua inegável utilidade deveria ser interpretada como um sintoma ou indício de que essas regras contribuem para a formulação de descrições literais e verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras da realidade. O desafio da abordagem pragmático-transcendental é equilibrar-se entre esses dois extremos: mostrar como a ideia de um sistema completo do conhecimento empírico pode funcionar como fonte de princípios

224

Nas citações e referências a essa obra de Kant, a Crítica da Faculdade de Julgar, utilizamos aqui a tradução feita por Valério Rohden e António Marques. A paginação seguida é a da 2ª. Edição alemã dessa obra, de 1793.

regulativos com validade objetiva sem, no entanto, submeter essa ideia a nenhum tipo de hipostasiação.