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Há muitos significados diferentes para a palavra justificação, dependendo sobretudo do

que se pretende justificar – uma crença, uma atitude, um sentimento, etc. – e de como fazê-lo

– mostrando, por exemplo, que cultivar determinado estado de ânimo contribui para a nossa

saúde mental, ou defendendo que certa ação era o melhor que se podia fazer, dadas as circunstâncias, ou ainda sustentando que as razões para se crer numa proposição p são boas pois servem de garantias de que p é verdadeira ou, pelo menos, aproximadamente verdadeira. Este último tipo de justificação é geralmente classificado como epistêmico113, pois se alguém possui boas razões para afirmar que p é verdadeira, então o que ele expressa com essa afirmação não é apenas uma crença, mas algo que se pode chamar pretensão de conhecimento: ele alega saber que p é o caso, mais do que simplesmente crê na verdade de p. Define-se esse tipo de justificação como epistêmico, portanto, em virtude daquilo que se pretende justificar (a alegação de que uma proposição ou conjunto de proposições é verdadeira) e não de como se pretende fazê-lo. De um modo indireto, o mesmo se aplica aos procedimentos e métodos de investigação científica. A sua utilização torna-se epistemicamente justificada na medida em que eles contribuem para a produção de conhecimento, seja através da coleta de informações

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objetivas, confiáveis e relevantes da realidade, seja por meio da elaboração de teorias que explicam satisfatoriamente essas informações. Assim, na justificação epistêmica não se pondera sobre o que seria mais útil, mais prudente, ou moralmente recomendável fazer ou pensar, ainda que eventualmente se discutam as estratégias mais eficazes para realizar o objetivo da construção de conhecimento. A preocupação filosófica fundamental nesse contexto – ou pelo menos assim ela costuma ser formulada – é determinar quando temos boas razões para aceitar uma crença ou uma informação como verdadeira.

Como se pode ver facilmente, essa concepção da justificação epistêmica exige a

articulação entre duas noções filosóficas fundamentais: os conceitos de “racionalidade” e “verdade”. Na tentativa de expressar de maneira mais exata o liame entre esse par de ideias, alguns autores falam em razões que “constrangem” racionalmente nossas crenças; outros

advogam uma distinção sutil entre aceitar uma teoria e admiti-la como verdadeira. Para uns, racional é tudo aquilo que se pode fazer, dizer ou pensar, desde que se não infrinja algumas regras lógicas fundamentais; para outros, a racionalidade envolve também prescrições sobre o que devemos fazer e no que devemos crer. Certos autores enfatizam ainda no conceito de verdade a imagem de uma correspondência qualquer entre o pensamento, a linguagem e o real; outros advogam a relevância da coerência interna de um sistema de crenças como critério de verdade; e há também aqueles que procuram equacionar a nossa compreensão da verdade com as nossas possibilidades e capacidades de ação. Seja qual for a abordagem adotada para essas noções, ao discutirmos o problema da justificação relativo à abdução ou IME, é a sua modalidade epistêmica que temos em vista.

Um ponto crucial a ter em mente quando se trata de abordar esse problema, seja com respeito a classes de proposições individuais ou a espécies de argumentos, é que justificação e verdade são dois elementos distintos vinculados ao conceito de conhecimento. Mais precisamente, eles dizem respeito a dois aspectos diferentes de um mesmo tipo de atividade:

enquanto a verdade consiste em uma resposta possível à pergunta sobre o objetivo ou a

finalidade do conhecimento, a palavra justificação remete-nos aos critérios por meio dos

quais podemos avaliar se esse mesmo objetivo foi alcançado. Uma terceira questão, por fim, consiste em saber quais são os métodos disponíveis para se atingir o objetivo almejado, com relação aos quais deve também ser possível, a princípio, discutir se eles são eficazes ou não. Em resumo, portanto, há pelo menos três perguntas distintas que uma teoria do conhecimento deverá responder: (a) qual(is) o(s) objetivo(s) das ações e interações humanas que geralmente associamos com a produção de conhecimento? (b) quais os meios (procedimentos, estratégias, métodos, regras, instrumentos, etc.) para se atingir esse(s) objetivo(s)? (c) quais são os critérios para se saber se fomos bem sucedidos ou não em alcançá-lo(s)? (MOSER, 2002, p. 203 e seq.).

Uma resposta adequada ao problema da justificação epistêmica da abdução e da IME deverá, portanto, contemplar essas três perguntas. Na medida em que o objeto da nossa investigação são argumentos explicativos, eles podem ser interpretados como parte do repertório de métodos para se atingir a finalidade do conhecimento, ou, ao menos, como

possíveis “candidatos” a figurar nesse repertório. Assim, a questão (b) discriminada acima já

se encontra contemplada na própria escolha do assunto aqui tratado. Nossa intenção no primeiro capítulo foi examinar as principais dificuldades em se descrever os métodos ou tipos de inferência chamados de abdução e IME. Vimos então que, não havendo um modo específico – não redutível a critérios dedutivos ou indutivo-probabilísticos – de caracterizar a transição inferencial das premissas para a conclusão dos supostos argumentos abdutivos, a própria natureza da abdução, enquanto uma espécie autônoma de raciocínio, permanece em dúvida. Algo semelhante ocorre com a regra da IME, pois não há nenhum teste crucial para saber se essa regra descreve o modo como de fato pensamos em diversas situações, nem uma demonstração da tese de que devemos crer em uma hipótese (assumi-la como verdadeira) com

base nas suas qualidades explicativas – a não ser que se assuma concomitantemente alguma versão do ponto de vista realista sobre as explicações. Nada disso, contudo, implica em recusar a possibilidade de análise epistmeológica sobre a introdução de novas conjeturas no decorrer de uma pesquisa científica e sobre a seleção de teorias com base em suas virtudes explicativas. Afinal, mesmo não possuindo a forma efetiva de inferências ou de argumentos explicativos de um tipo específico, ainda é possível dirigir a esses dois tipos de procedimentos metodológicos as duas perguntas remanescentes a respeito de suas contribuições para a produção do conhecimento: (a) qual o objetivo ou finalidade visada com a utilização desses métodos e (c) a que critérios podemos recorrer se quisermos avaliar a sua eficácia, relativamente a esse objetivo?

Trata-se, neste segundo capítulo, de analisar algumas das principais respostas a essas perguntas, todas ainda desenvolvidas sob a suposição de que a abdução e a IME devem ser interpretadas como tipos peculiares de argumentos explicativos. Novamente, uma série de dificuldades despontará pouco a pouco, deixando pelo caminho um rastro de indicações dos elementos conceituais necessários para solucioná-las. No terceiro capítulo, enfim, apresentamos a perspectiva pragmático-transcendental na qual esses elementos conceituais podem ser coerentemente acomodados.