• Nenhum resultado encontrado

Ao afirmar que a sua teoria da seleção natural era uma explicação boa demais (e, pelo menos naquela época, sem concorrentes à altura) para ser falsa, Charles Darwin confessava ter consciência das críticas a que esse tipo de estratégia argumentativa poderia estar sujeito no

meio científico, mas alegava que “esse é um método usado no julgamento dos eventos comuns da vida e tem sido frequentemente usado pelos maiores filósofos naturais”

(DARWIN, 1859, p. 476 apud OKASHA, 2000, p. 691, tradução nossa)156. Apesar dele não

155“But just here a broad question opens out before us. What are we to understand by experimental verification?

The answer to that involves the whole logic of induction.”

156“it’s a method used in judging of the common events of life, and has often been used by the greatest natural

esclarecer quais figuras eminentes da história das ciências estava evocando em sua defesa, é improvável que alguma delas tenha exposto de modo mais explícito o ponto crucial das controvérsias a respeito da IME.

Essas controvérsias, porém, só receberam a atenção de um número mais expressivo de filósofos da ciência e epistemólogos na segunda metade do século XX, motivadas pela

publicação do artigo de Gilbert Harman, “The Inference to the Best Explanation”, em janeiro

de 1965. Nesse texto, Harman propõe que um conjunto bastante diversificado das inferências que todos nós realizamos no dia-a-dia seja interpretado como um grupo de variantes em torno

de uma mesma fórmula, segundo a qual “infere-se, da premissa de que uma dada hipótese forneceria uma ‘melhor’ explicação para as evidências do que qualquer outra hipótese, a verdade daquela hipótese” (HARMAN, 1965, p. 89, tradução nossa)157

. Isso se aplicaria inclusive à fórmula clássica da indução enumerativa

Alguns A’s são B’s

Logo, todos os A’s são B’s

que seria simplesmente uma espécie de caso-limite e afinal pouco interessante da IME.

A conclusão “todos os A’s são B’s” só possui legitimidade nesse tipo de argumento sob a

suposição de que se trata da melhor explicação para a premissa. Caso se julgue a base

amostral insuficiente (pouquíssimos A’s observados são B’s), ou se tenha razões para

suspeitar que ela foi tendenciosamente ou indevidamente selecionada, outras explicações para

a premissa “Alguns A’s são B’s” ganham força e automaticamente lançam dúvidas sobre as

garantias epistemológicas da generalização indutiva.

Assim, além de propor uma fórmula geral apta a descrever desde os raciocínios baseados em testemunhos de terceiros, passando pelas generalizações indutivas, até os argumentos de causa e efeito envolvendo entidades inobserváveis, Harman aponta também,

157“one infers, from the premise that a given hypothesis would provide a “better” explanation for the evidence

com a regra da IME, para um vínculo estreito e intuitivo entre encontrar a melhor explicação para as premissas e justificar a conclusão de inferências não-dedutivas. Por um lado, isso não chega a ser uma surpresa: explicar e justificar são palavras pertencentes ao mesmo campo semântico (MONTEIRO CHAVES, 2009); mas, por outro, fica a impressão – cujo apelo intuitivo também é considerável – de que o fato de uma hipótese apresentar-se como a melhor explicação para as evidências não garante que ela seja verdadeira; uma explicação pode ser muito boa e, ainda assim, falsa. Ao pretender traduzir as afinidades semânticas entre explicar e justificar na forma de uma regra de inferência, Harman não estaria decretando um vínculo excessivamente forte entre as virtudes explicativas de uma hipótese e a crença na sua verdade? Esse é o ponto central do problema da justificação das IME.

A dissociação entre qualidades explicativas e verdade da hipótese aparece com mais dramática clareza na formulação que Peter Lipton propõe para esse problema, ao articular as

categorias de “explicação mais plausível” (“loveliest explanation”) e “explicação mais provável” (“likeliest explanation”). Ele batiza a sua versão desse problema com o nome de “objeção de Voltaire”, numa referência ao romance Cândido ou do Otimismo, no qual o

filósofo iluminista satiriza a tese leibniziana de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Com efeito, a regra da IME parece afinal fundada sobre um otimismo semelhante: uma inferência que parte das qualidades explicativas de uma hipótese para a sua verdade não depende afinal do milagre de vivermos no mais plausível dos mundos? “Mas por que deveríamos habitar o mais compreensível dos mundos possíveis? Se a compreensibilidade é algo subjetivo, ela não é um guia para inferências e mesmo se ela for objetiva, por que ela nos conduziria à verdade?” (LIPTON, 2004, p. 143, tradução nossa)158.

Se nada disso parece problemático – nem tampouco miraculoso – em boa parte das situações cotidianas em que considerações explicativas orientam nossas inferências e

158“But why should we believe that we inhabit the loveliest of all possible worlds? If loveliness is subjective, it

fornecem razões para crermos na verdade da melhor explicação vislumbrada, as desconfianças a respeito dele tornam-se bem maiores quando se trata do uso filosófico da IME para defender teses realistas sobre o conhecimento científico. Isso se deve, em parte, ao fato de que, em situações mais prosaicas de suposto uso da IME, lidamos geralmente com objetos e processos cuja ordem de grandeza não ultrapassa as capacidades dos nossos sentidos; ao passo que na atividade científica é frequente o uso de telescópios, microscópios, tomógrafos, máquinas de raios-X, espectrofotômetros, e outros instrumentos que ampliam a capacidade de observação de fenômenos. Pode-se dizer então que esses instrumentos criam seus respectivos objetos e processos observáveis? Em que medida os resultados obtidos por meio deles autorizam uma interpretação literal das teorias que lhes dão suporte e que, em alguns casos, ensejaram inclusive a sua própria concepção e uso experimental?