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Justificar um argumento ou inferência é demonstrar que as suas premissas constituem razões suficientes para sustentar a conclusão. No caso das deduções, a noção de validade lógica proporciona uma condição bem definida para a realização desse fim: demonstra-se que um argumento é dedutivamente válido quando as suas premissas, caso sejam verdadeiras, garantem necessariamente a verdade da conclusão. Ou seja, numa dedução reconhecidamente válida, não há como negar a conclusão sem negar também pelo menos uma das suas

premissas. A justificação das inferências não-dedutivas, por sua vez, não podendo almejar esse mesmo tipo de garantia, deve pelo menos mostrar que, se as premissas forem verdadeiras, isso aumenta, em alguma medida, a probabilidade de que a conclusão também o seja. Contudo, enquanto a noção de validade funciona como critério necessário e suficiente para legitimar logicamente as conclusões dedutivas, há sérias dúvidas de que uma noção semelhante possa aplicar-se às não-dedutivas. Para estas, costuma-se buscar alternativas de justificação que ultrapassam os critérios normalmente reconhecidos como estritamente lógicos

– isso quando não se abdica de qualquer legitimação lógica para os raciocínios não-dedutivos

ou simplesmente se opta por descartá-los todos, sem exceção, como logicamente inválidos. As dificuldades em articular um critério satisfatório para legitimar logicamente essa espécie de argumentos constituem o chamado problema da justificação da indução. Em sua acepção mais ampla, a indução abrange todos os raciocínios ampliativos ou sintéticos, inclusive a abdução e a IME, mas há também acepções restritas do termo, baseadas em classificações mais ou menos exaustivas114. Não será preciso examiná-las e compará-las aqui, já que a principal dificuldade em se responder ao problema da justificação tem sua origem na característica compartilhada por todos os argumentos e raciocínios nos quais a conclusão não é uma consequência necessária das premissas. Como se sabe, o primeiro filósofo a enunciar claramente o problema e a sua origem foi David Hume, nos anos trinta do século XVIII. Em

sua análise dos raciocínios de causa e efeito, ele observa que “todo efeito é um evento distinto

de sua causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori” (HUME, 1999, p. 51). Pode-se facilmente ampliar o alcance dessa afirmação, estendendo-a a qualquer inferência cuja conclusão faça referência a eventos futuros, a generalizações feitas a partir de uma base amostral, ou a objetos e processos inobservados ou inobserváveis não derivados das premissas exclusivamente pelas regras da

114Cf., por ex., o verbete “The Problem of Induction”, de autoria de John Vickers, na Stanford Encyclopedia of

lógica dedutiva. Ou seja, em todos os argumentos desse tipo há uma irremediável subdeterminação da conclusão pelas premissas; a princípio, outras conclusões seriam logicamente compatíveis com as mesmas premissas, sem que se possa apontar inequivocamente um critério geral capaz de justificar a opção por uma ao invés das outras.

Mas a crítica de Hume não se encerra aí. Segundo ele, o apelo a princípios como “o futuro será semelhante ao passado”, “causas semelhantes geram efeitos semelhantes”, ou “a natureza é uniforme” não ajuda em nada a defender racionalmente porque um dado acontecimento é o

efeito provável de um outro evento. Isso porque princípios desse gênero são eles mesmos generalizações indutivas baseadas em um conjunto finito de experiências anteriores e, portanto, utilizá-los para justificar a indução é supor como provado justamente o que ainda

carece de prova. “É inconcebível, portanto, que um argumento tirado da experiência possa

provar a semelhança do passado ao futuro, já que esses argumentos se baseiam na suposição

daquela semelhança” (HUME, 1999, p. 57). Assim, tanto essa circularidade viciosa na qual

recaem as tentativas de legitimar um princípio geral da indução quanto a subdeterminação ineliminável da conclusão pelas premissas são os dois elementos essenciais do problema da justificação das inferências não-dedutivas115.

Uma vez que parte significativa do nosso repertório de conhecimentos e crenças é construída por meio de inferências, a maneira como se interpreta o problema da justificação e as correspondentes respostas para ele refletem e, ao mesmo tempo, implicam em compromissos com determinadas concepções do conhecimento. Hume, por exemplo, diante da impossibilidade de solução dedutiva ou metafísica para o problema da justificação, identifica no hábito ou costume, entendido como um “princípio da natureza humana”, a nossa propensão a crer e confiar em determinadas conclusões indutivas.

“Visto que todas as vezes que a repetição de um ato ou de uma determinada

operação produz uma propensão a renovar o mesmo ato ou a mesma operação, sem

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ser impelida por nenhum raciocínio ou processos do entendimento, dizemos sempre que esta propensão é o efeito do costume” (HUME, 1999, p. 61).

Nessa perspectiva, uma parte fundamental do nosso conhecimento empírico tem por origem uma característica da natureza humana diversa daquelas comumente reconhecidas como nossas capacidades racionais.

Karl Popper, por sua vez, propõe uma modificação dos termos em que Hume formula a dificuldade de justificar racionalmente a indução, desdobrando-a em dois problemas,

chamandos respectivamente de lógico e psicológico. No primeiro, a pergunta é: “somos

justificados em raciocinar partindo de exemplos (repetidos), dos quais temos experiência, para outros exemplos (conclusões), dos quais não temos experiência?” (POPPER, 1975, p. 15). No segundo, trata-se de saber “por que temos expectativas em que depositamos grande

confiança”, apesar de não possuírmos nenhuma justificativa racional para isso? Popper

considera que a primeira pergunta pode ser reformulada em “termos objetivos” do seguinte modo: pode-se sustentar legitimamente que teorias explicativas são verdadeiras com base em um número finito de asserções de observação empírica? A sua resposta, tal como a de Hume, é não. Disso, porém, Popper não conclui que o hábito é a fonte de nossas expectativas indutivas. Pois embora não haja jamais razões suficientes para justificar a afirmação de que uma teoria é verdadeira, asserções de teste empírico podem eventualmente fornecer razões suficientes para falsificar uma teoria explicativa. Segue-se daí que o segunto problema, de caráter psicológico, colocado por Hume é, na interpretação de Popper, uma falsa questão. Do mesmo modo que as mudanças ou progressos no nosso conhecimento empírico (incluindo o conhecimento científico) não dependem de nenhum princípio geral da indução para serem justificados, também não há nada que equivalha, no âmbito das nossas operações cognitivas, às inferências indutivas e ao princípio da natureza humana que supostamente as fundamentaria.

Dessa solução desenvolvida por Popper para o problema da justificação da indução depreende-se uma concepção do conhecimento bastante diferente daquela de Hume. Nela não há lugar para o fator aparantemente não-racional (o que não equivale necessariamente a

irracional) do hábito ou costume. Além disso, não sendo preciso justificar logicamente a

indução e não existindo tampouco a operação cognitiva específica de inferência que lhe corresponda, a própria gênese das teorias científicas perde qualquer relevância lógica e epistemológica. Para Popper, o tribunal da experiência que, ao longo do tempo, absolve provisoriamente certas teorias explicativas e condena definitivamente outras tantas, situa-se exclusivamente do lado das consequências empíricas dessas teorias. Num processo análogo ao da seleção natural das espécies, as hipóteses mais resistentes à refutação pelas asserções de teste sobrevivem, enquanto outras vão sendo eliminadas. Assim, grosso modo, ele explica o progresso do conhecimento objetivo.