• Nenhum resultado encontrado

Alguns estudiosos da obra de Peirce percebem nesse conjunto de reflexões sobre a possibilidade e a função do instinto humano para detectar boas hipóteses algumas ideias interessantes e defensáveis a respeito da abdução, embora expressas a partir de uma tese (ou seria antes uma metáfora?) polêmica (HOFFMANN, 1999, p. 297). Segundo eles, o argumento principal sobre o qual essa tese se baseia, vale lembrar, o de que o estado da arte atingido pelo conhecimento científico atual não pode ter sido obra de um processo aleatório de geração de novas hipóteses, aponta corretamente para a eficiência peculiar dos nossos

esforços de compreensão da realidade, embora o conceito de “instinto racional”, ao qual

141“Really the word belief is out of place in the vocabulary of science. If an engineer or other practical man takes

a scientific result, and makes it the basis for action, it is he who converts it into a belief. In pure science, it is merely the formula reached in the existing state of scientific progress”.

Peirce recorre para explicá-la, pareça-se mais com um oxímoro do que com uma explicação143.

Cabe, portanto, perguntar, em primeiro lugar, quais são evidências disponíveis dessa alegada eficácia da nossa capacidade humana de conhecer e, em segundo lugar, se ela necessita realmente ser explicada em termos de um instinto racional para gerar boas ideias. Se o que Peirce considera como eficácia, nesse contexto, consiste na descoberta de teorias verdadeiras (em meio a tantas outras possíveis e falsas) e se a verdade for compreendida aqui como uma relação de adequação entre o sentido (literal ou não) de um conjunto de sentenças e um determinado domínio da realidade povoado de objetos, com suas propriedades e interações mútuas, então não há ainda nenhuma razão para supormos que nossa capacidade de conhecer racionalmente a realidade é eficaz. Primeiro porque usar, como termo de comparação, o conjunto (infinito?) das possíveis teorias que jamais foram concebidas por nenhum ser humano até hoje é tentar comparar algo que de algum modo conhecemos, a saber, a história de nossas realizações no campo do conhecimento científico, com algo de que não temos, por definição, nenhuma ideia. Nesse caso, estamos realmente diante de uma comparação efetiva? Além disso, assumir como meta a descoberta da teoria verdadeira, em

meio à infinidade de outras falsas e jamais imaginadas, algo análogo a “se encontrar uma agulha num palheiro”, significa supor que há algum modo de distinguir a “agulha” da “palha”,

ou seja, que, uma vez atingida a meta, haverá algum critério para saber se ela foi finalmente atingida, se a teoria verdadeira foi encontrada. No entanto, a existência de um tal critério é, no mínimo, duvidosa. Pois, por um lado, é evidente que “o fato de alguém acreditar em p, ou

mesmo o fato de todos acreditarem em p, não implica que p é verdadeira”144

e isso equivale a

143“You cannot say that it happened by chance, because the possible theories, if not strictly innumerable, at any

rate exceed a trillion – or the third power of a million; and therefore the chances are too overwhelmingly against the single true theory in the twenty or thirty thousand years during which man has been a thinking animal, ever

having come into any man's head” (PEIRCE, CP 5.591).

144“the fact that someone believes that p, or even the fact that everyone believes that p, does not imply that it is

reconhecer que “o reflexo epistêmico da objetividade [...] é a falibilidade” (ROSENBERG,

2002, p. 217, grifo do autor, tradução nossa)145. Por outro, se a verdade for concebida como uma correspondência entre proposições e a realidade (independente delas), exclui-se de

antemão qualquer “indício epistêmico”, por assim dizer, que possa distinguir a teoria

verdadeira das falsas146.

Desse modo, o argumento de Peirce para tentar justificar a suposta eficácia dos nosso métodos de investigação da realidade perde toda a sua força: ele inicia-se com uma pseudo- comparação e postula uma meta que não sabe exatamente qual seja. Em face desse argumento, em todo caso, o instinto racional parece cumprir a função de restringir o processo de geração de teorias plausíveis a um número bem menor do que um trilhão ou mais de teorias possíveis. Ora, essa tarefa não parece reclamar obrigatoriamente a atuação de um instinto. A princípio, ela pode ser plenamente realizada pelas características dos próprios contextos em que novas hipóteses explicativas são introduzidas em um programa de pesquisa científica. Nesse caso, uma análise do modo como informações oriundas dos contextos são incorporadas no decorrer de uma investigação poderia revelar-nos quais hipóteses são de antemão negligenciadas ou tidas por impossíveis no decorrer de uma dada pesquisa, fornecendo-nos assim um relato da lógica da descoberta no qual o recurso ao instinto abdutivo seria perfeitamente descartável (HOFFMANN, 1999, p. 294 e seq.). Se utilizar o método abdutivo significa dirigir perguntas à realidade e se toda pergunta envolve geralmente um ou mais pressupostos, não é difícil vislumbrar maneiras pelas quais tais pressupostos, enquanto elementos do contexto de uma pesquisa, direcionam a atenção do investigador para os aspectos considerados surpreendentes ou anômalos da realidade. Em qualquer jogo que

145“the epistemic reflection of objectivity [...] is fallibility”.

146“[…] precisely because such objective truths are ex hypothesi mind-independent, they are also “epistemically

transcendent”. We are unable, that is, to establish any connection between our concrete epistemic practices and the ostensible goal of coming to believe (only) such truths” (ROSENBERG, 2002, p. 218, grifos do autor).

admita o uso de regras estratégicas, esse tipo de direcionamento costuma ser bastante eficaz147.