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Como uma Fênix: “morte” e ressurgimento de Solentiname

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 128-132)

3 DE POETAS E REVOLUCIONÁRIOS: PALAVRA E AÇÃO EM PROL

3.2 SOLENTINAME: UM SONHO COMPARTILHADO

3.2.3 Como uma Fênix: “morte” e ressurgimento de Solentiname

Solentiname tinha uma beleza paradisíaca, mas estava visto que, na Nicarágua não era possível nenhum paraíso (CARDENAL, 2003 c, p. 368)

Neste ponto de nossa pesquisa, abordaremos a destruição e a posterior reconstrução de Solentiname, apresentando os rumos atuais dessa comunidade contemplativa.

Conforme já mencionamos, em certo ponto desse trabalho, Cardenal sempre diz serem três os milagres que aconteceram nesse lugar de hospedagem: as pinturas primitivas (e também as esculturas), a poesia e o Evangelho. Através das pinturas primitivas, a comunidade conseguia se manter economicamente; pela poesia, os moradores e visitantes recriavam o lugar e mostravam o mundo em que estavam e as emoções ali experienciadas e, pelo Evangelho, tornaram-se cidadãos conscientes de seu lugar e de sua importância na construção de uma história de fraternidade, de liberdade e na qual os direitos humanos eram respeitados.

Assim, diante dos desmandos e da exploração que eram impostos aos habitantes da Nicarágua pela ditadura somocista, era impossível aos moradores de Solentiname não se envolverem na luta contra os opressores,

os camponeses de Solentiname, que se aprofundavam nesse Evangelho, não podiam deixar de se sentir solidários com seus irmãos camponeses que, em outras partes do país, estavam padecendo a perseguição e o terror: eles estavam encarcerados, torturados, assassinados, as suas mulheres eram violentadas, as suas casas eram queimadas, as atacavam de helicóptero. Também tinham que se sentir solidários com todos aqueles que, por compaixão ao próximo, estavam oferecendo suas vidas. E esta solidariedade para ser real significa que alguém também tem que comprometer sua segurança e sua vida. Em Solentiname, sabia-se que não íamos gozar sempre de paz e tranquilidade se alguém queria pôr em prática a palavra de Deus. Sabia-se que a hora do sacrifício ia chegar e essa hora chegou (CARDENAL, 2003c, p. 43).

porque “sinônimos de abusos, atropelos e arbitrariedades são as siglas da Guarda Nacional. Ranchos incendiados, mulheres violentadas, homens assassinados, roubos, mulheres e crianças amarradas e famintos configuram o quadro diário” (CARDENAL, 2003 b, p. 347. Tradução nossa). Desse modo, cientes das consequências e dispostos a encará-las, engajaram-se no

movimento revolucionário sandinista e pagaram um preço por isso: “em 1977, o exército de Somoza destruiu nossa comunidade” (CARDENAL, 2003 b, p. 415. Tradução nossa).

Cardenal estava na Costa Rica quando soube da destruição de Solentiname. A esse respeito relatou, em La Revolución Perdida, que “foi uma punhalada a que senti na casa de Miguel Otero, quando um jornalista que tinha estado em São Carlo me disse (com dó de ter de dizê-lo) que Solentiname tinha sido destruída” (CARDENAL, 2003 a, p. 32. Tradução nossa).

Muitos moradores desse lugar foram mortos, dentre eles Donald e Elbis que, antes de morrerem, além de torturados, “foram obrigados a cavar a própria cova” (CARDENAL, 2003 a, p. 41). Há um belíssimo e doloroso poema em Cántico Cósmico que fala dessas mortes. Citaremos apenas um trecho para mostrarmos a intensidade com que Cardenal as apresenta:

Estáte tranquilo Felipe Peña caído no sabemos dónde, Y Donald y Elbis enterrados por la frontera con Costa Rica, Estén tranquilos muchachos, que vamos bien.

Girando en el espacio negro Dondequiera que vayamos, vamos bien. Y también

Va bien la Revolución.87

Esse texto é, ao mesmo tempo, um agradecimento e uma forma de dizer a eles – que já não estão mais fisicamente na Revolução – que eles podem descansar, pois seu sacrifício não foi em vão, as sementes que plantaram levarão ao êxito o movimento.88

Enquanto ainda se encontrava na Costa Rica, Cardenal soube que a destruição fora total: livros e anotações foram queimados, casas foram derrubadas, plantações arrasadas. Só pouparam a Igreja que se tornou quartel onde se alojaram os soldados de Somoza.

Cabe, neste ponto desta tese, uma reflexão a respeito da força da palavra e do poder que essa tem. Por refletirem sobre palavras, camponeses descobriram seu papel na sociedade, mas perderam seu lar e muitos até sua vida. Na história da humanidade, também tem sido assim. Uma das maiores perdas para os humanos ocorreu quando a Biblioteca de Alexandria foi destruída. Na Idade Média, os livros tidos como perigosos eram destruídos. Hitler, repetindo a insânia, queimou, em praça pública, os livros que achava inadequados porque veiculavam ideias contrárias ao seu intento. Nessa mesma era hitleriana, por conta de um discurso equivocado e

87“Fica tranquilo, Felipe Peña caído não sabemos onde/ e Donald e Elbis enterrados lá na fronteira com Costa Rica/ fiquem tranquilos, rapazes, que vamos bem./ Girando no espaço negro/ para onde quer que formos,/ vamos bem./ E também/ vai bem a Revolução (CARDENAL, 1996, p. 83)

88 Há, ainda em Cântico Cósmico, um outro poema, intitulado “Voos de Vitória”, que conta o destino desses heróis sandinistas.

perverso, ocorreu a “noite dos cristais”, a prisão de judeus e o consequente holocausto. No Brasil, na Era Vargas, Jorge Amado teve sua obra queimada também em praça pública.

Não precisamos mostrar outros tempos. Bastam esses para dizer do medo que existe e da força que tem aqueles que pensam sobre o mundo. Na Nicarágua, Cardenal descobriu, conforme já mencionamos anteriormente, após a vitória da Revolução, no gabinete de Somoza, El Evangelio en Solentiname com várias partes sublinhadas e comentadas. O ditador percebeu a força do que se fazia naquela comunidade durante as homilias. Talvez, por essa razão, era imprescindível destruir Solentiname. O que o ditador não percebeu é que “não conseguiram radicar o Evangelho, com os comentários que dele faziam na missa, e foram publicados em vários países e traduzidos em vários idiomas” (CARDENAL, 2003 b, p. 43), porque não se pode calar a verdade com a força, pois as palavras continuarão sendo articuladas escritas ou oralmente.

E mais, o próprio Cardenal relatou que havia sido muito feliz naquele lugar, mas que, por um propósito maior, estava disposto a sacrificar Solentiname; porém, como a Fênix, que ressurge das cinzas mais forte e renovada, a comunidade cresceria outra vez.

Não foi fácil. Levou tempo, mas “o lugar de hospedagem” foi reerguido. A poesia voltou a ser feita e estimulada, a pintura primitiva e as esculturas foram ainda mais valorizadas. E a consciência revolucionária que um dia tentaram calar, continuou a existir entre os moradores daquele lugar.

Após a vitória da Revolução Sandinista, e a consequente criação do Ministério da Cultura, começaram a surgir, no país, oficinas de poesia e essas eram inspiradas na poesia que, anos antes, havia se iniciado em Solentiname. Também dessa comunidade surgiu “uma pintura religiosa inspirada na Teologia da Libertação que foi a dos comentários do Evangelho que eles faziam durante o somocismo” (CARDENAL, 2003 a, p. 369)89.

Nos dias atuais, as principais atividades econômicas nas ilhas de Solentiname são o artesanato e o turismo. Visitando, por exemplo, a Ilha Mancarrón, a principal ilha do conjunto das ilhas do Rio San Juan, encontramos camponeses, pintores e artesãos que falam com orgulho do seu fazer artístico e da importância desse para sua sobrevivência.

89Uma das pinturas retrata Cristo de pantalona e com a camisa do Camponês. Quando perguntaram à artista sobre a escolha do vestuário de Cristo, ela respondeu: “Pintei Cristo como um de nós”. (CARDENAL, 2003 a, p. 369). Algumas imagens dessas pinturas serão anexadas ao final desse trabalho.

A pintura feita nessas ilhas é a primitivista, a qual foi ensinada ainda na época da criação de Solentiname, na década de 1960, por Róger Pérez de La Rocha. Esse pintor, a pedido de padre Cardenal, ministrava oficinas para ensinar essa arte aos moradores locais. Ainda vivem e trabalham em Solentiname pintores primitivistas que participaram dessas primeiras oficinas como o senhor Rodolfo Arellano e sua esposa Elba Jiménez.

Após a vitória da frente sandinista na Revolução, Cardenal, como Ministro da Cultura, reergueu, na década de 1980, Solentiname e fez crescer a arte nessa comunidade. A assistente dele, em uma entrevista encontrada no youtube, relatou que o poeta mudou a vida dos moradores daquele espaço ao valorizar a arte ali produzida, fazendo com que essa obtivesse projeção internacional. Assim, as peças artesanais e as telas com motivos primitivistas, que recriam a fauna e a flora das ilhas, são vendidas em Manágua, em Granada, em Lión e também no estrangeiro, principalmente em países europeus, como a Alemanha.

Hoje convivem, nessas ilhas, artistas primitivistas da primeira geração com os da segunda e os da terceira geração. Jeysell Madrigal, por exemplo, é uma artista de trinta e poucos anos que faz artesanato e pintura primitivista. Ela, em entrevista concedida ao youtube, comenta da dificuldade que tinha em combinar as cores e que demorou cerca de cinco anos para aperfeiçoar a técnica. Já sua filha de seis anos parece que não terá a mesma dificuldade.

O fato é que o sonho de Ernesto Cardenal, o qual muitos enxergavam como utopia, fez- se realidade e aquelas peças artesanais feitas com a madeira de bálsamo são sucesso e fonte de subsistência dos que habitam Solentiname até os dias atuais.

Há, em algumas das trinta e seis ilhas, projetos financiados por grupos estrangeiros conhecidos como “os amigos de Solentiname”. Um exemplo dessas iniciativas é o “Projecto Taller: union de pintores y artesanos de Solentiname ‘Elbis Chamarria’”. O nome do projeto é uma homenagem a Elbis que vivera no local e, conforme já mencionamos, fora assassinado, durante o primeiro levante sandinista, pela Guarda do ditador. Quanto ao patrocínio do projeto, é responsabilidade de um grupo de Massachusset, Estados Unidos. Por esse projeto são financiadas oficinas e encaminhadas peças nelas produzidas aos Estados Unidos para serem vendidas. Nesse país, essa produção artística tem um elevado valor.

Quanto ao turismo, tem ganhado bastante expressividade nos últimos tempos. A associação de moradores organiza-o. Há, inclusive, na ilha Mancarrón, o hotel Mancarrón que pertence à associação, mas que acabou tornando-se fonte de aborrecimento para Cardenal, pois a viúva do antigo administrador do local está processando o poeta e exigindo pagamento de oitocentos mil dólares, alegando ser a herdeira e dona da instalação. Parece ser injusta a alegação dessa senhora e o idealizador de Solentiname diz ser esse processo parte de uma

perseguição política da qual é vítima, uma vez que se declara opositor de Daniel Ortega, líder sandinista durante a Revolução e agora Presidente do país. Trataremos mais adiante essa questão; assim, não teceremos, por agora, maiores comentários acerca dela.

No que diz respeito à Solentiname, é curioso o título que Cardenal dá ao livro que fala da construção da comunidade. O livro chama-se Las Insulas Extrañas. Esse título normalmente é traduzido como “ilhas estranhas”. Mas, se pensarmos mais detidamente no nome, chegaremos ao adjetivo “extraña”, que, por sua vez, remete ao verbo “extrañar”, que significa “sentir falta de; ter saudades”. Disso, podemos inferir serem essas as “ilhas da saudade”, que remontam a um passado de reuniões, de encontros amorosos nos quais se refletiam acerca da “Boa Nova”, de construções de vida, de consciência, de sonhos. As “ilhas estranhas do Rio San Juan” fazem parte de caras memórias não só de padre Cardenal, mas de todos os que por ali passaram, que passam e podem, durante a estadia, entender o real sentido de se hospedar o outro.

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