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Silêncio e recolhimento

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 45-60)

2 NOS BRAÇOS DO AMADO

2.2 UMA EXPERIÊNCIA ABISMAL

2.2.2 Silêncio e recolhimento

O silêncio é o modo

Como o marido habita a casa (COUTO, 2016, p. 56)

Tinha tido essa grande fome sem saber que era fome (CARDENAL, 2003 a, p. 79)

Começamos essa parte do trabalho com uma indagação: o que leva um homem a buscar a solidão? Deixar amigos, parentes, profissão, o azul dos lagos de seu país, para buscar acessar o sagrado pelo silêncio e pela contemplação?

Após a experiência amorosa vivida com o Infinito, Cardenal sentiu-se repleto do amor de Deus. Era um amor tão grande e intenso que o preenchia corpo e alma e o saciava. Nada mais ansiava a não ser manter-se unido a Ele. Esse amor a Deus levou Ernesto Cardenal a renunciar à sua Terra, às mulheres e até a poesia (pelo menos em um primeiro momento).

Em Vida en el Amor, temos que:

O PRAZER é um falso Deus que nos diz: entrega-te a mim e eu te saciarei. Mas não nos sacia nunca porque nossa alma é maior do que o prazer. Não se contenta com o prazer que não seja infinito. Somos ânforas rachadas. Nem com uma beleza que tenha limite. E toda beleza que não é Deus tem um limite (CARDENAL, 1979, p.70).

Essa passagem diz-nos muito sobre a escolha de Cardenal: sua vida estava perdida para o mundo, mas ganha para Deus. Há um poema do livro Epigramas no qual percebemos um viés bastante expressivo da mística cardenaliana, uma vez que mostra, metaforicamente, a alma sedenta à espera do Amado, a fim de que esse venha para unir-se a ela e, dessa forma, aplacar seu desejo de união, de retorno ao Uno. O poema é o seguinte:

Como canta de noche la esquirina7 al esquirín que está sobre outra rama: “Esquirín,

si querés que vaya, iré si querés que vaya iré” y a su rama la llama el esquirín:

“Esquirina, si querés venir, vení, si querés venir, vení”, y cuando ella se va donde él está el esquirín se va para outra rama:

así te llamo yo a ti, y tú te vas. Así te llamo yo a ti,

y tú te vas8 (CARDENAL, 2001, p. 58)

A respeito desse poema, o próprio poeta relata, em Vida perdida, o que o motivou nessa criação poética:

Por então é que escrevi um epigrama dos esquirin e talvez ninguém tenha percebido que a voz que fala seja feminina. Inspirou-me uma canção folclórica nicaraguense que alguém publicou em A Prensa nesses dias. É uma queixa que esquirina faz ao esquirin. E eu não o estou escrevendo já a nenhuma muchacha, na realidade não tinha muchacha a quem escrever. Estava escrito vagamente a Deus; ou é realmente a queixa da alma a Deus. Nas edições de

7 Segundo o site https://cuentosnicaragua.blogspot.com.br/diccionario-mitologico.html, acessado em 10 de nov 2016, Esquirin/Esquirina é tecolote (tecol-ote) - ave que anuncia o final da vida, que prenuncia o destino. Em português, podemos ler que essa ave é a coruja (macho e fêmea). A palavra esquirín, então, pode representar a morte para a vida mundana e a consequente entrega a Deus. “Se queres que eu vá, irei” (ou seja, se queres que me entregue a ti, que deixe de lado os amores terrenos e me entregue a teu amor, eu irei).

8 Como canta de noite a esquirina/ ao esquirín que está sobre outro ramo:/ “Esquirín, / se queres que eu vá, irei/ se queres que eu vá, irei” /e de seu ramo lhe chama o esquirín: / “Esquirina, / se queres vir, venha, / se queres vir, venha, ” / e quando ela vai até onde ele está / o esquirín vai para outro ramo: / assim te chamo eu a ti, / e tu te vais. / Assim te chamo eu a ti, / e tu te vais. (Tradução nossa) - Mantive

o original esquirín e esquirina por uma questão estilística, apesar de haver o corresponde – coruja macho e fêmea - para esses termos em português.

meus epigramas, costuma estar entre os últimos, e é porque foi o último de minha vida (CARDENAL, 2003a, p. 73. Tradução nossa).

Se a voz que fala é a da coruja fêmea dirigindo-se à coruja macho, e se a coruja fêmea é a alma e a coruja macho é Deus, podemos entender que a alma à noite canta a Deus, dizendo: “se queres que vá, irei”. Deus, por outro lado, responde: Se queres vir, venha”. Mas quando a alma se aproxima, Deus vai para outro lugar. Assim acontece entre a alma do poeta e Deus: ela o chama, e ele parte; mantendo, assim, a falta, o desejo não saciado e a solidão.

Nessa mesma linha temática, encontramos o poema conhecido como “As pombinhas de San Nicolás” que também mostra a busca do poeta (ou de sua alma) por Deus. Nesse texto que tematiza um amor esponsal, há um jogo linguístico que mostra aproximação e afastamento: “Quando uma se move, a outra vai atrás, / E quando esta é a que foge, /Aquela segue” (CARDENAL, 1996, p. 391). Esse jogo textual remete ao que ocorre entre o místico e Deus: às vezes se separam, mas sempre se buscam, porque, feridos pelo amor, não podem permanecer distantes. O poema, na íntegra, é o seguinte:

Somos como esas dos palomitas de San Nicolás que cuando una se corre

la outra va detrás y cuando esta es la que huye

aquélla la sigue pero nunca se aleja la una de la outra

siempre están en pareja. Cuando vos te me vas

yo voy detrás de vos y cuando yo soy quien me voy vos vas detrás.

Somos como esas dos palomitas De San Nicolás.9 (CARDENAL, 2012, p. 391)

Essa alma ansiosa pelo amor dos amores não encontraria consolo até se abrigar nos braços de Deus, mesmo que, para isso, tivesse que perder a sua vida terrena, repleta de

muchachas, de beijos e abraços. Porém, assim como a coruja tradicionalmente prenuncia o

9 Somos como essas duas pombinhas de San Nicolás/ que quando uma corre/ a outra vai atrás/ e quando esta é a que foge/ aquela a segue/ mas uma nunca se afasta da outra/ sempre estão em par. / Quando Tu de mim te vais/ eu sigo atrás de ti/ e quando sou eu quem me vou/ tu vais atrás. / Somos como essas duas pombinhas/ de San Nicolás. (CARDENAL, 1996, p. 391)

destino, o poema apresenta-nos o destino do místico Cardenal: passar toda a vida à espera de um encontro íntimo com o Infinito. Encontro que ocorreu uma vez e não mais.

Restava ao nosso místico, após o êxtase degustado, a sensação de ser penetrado pelo Infinito e ser, assim, invadido pelo nada, mas um nada que tudo contém. Não sabia, em princípio, o que fazer com aquele acontecimento que se colocava em suas mãos: “Era sábado ao meio-dia perto de uma, e já era hora de fechar a livraria. Antes de fazê-lo, busquei um livro religioso para leitura desse fim de semana e escolhi São João da Cruz. Tomei um táxi e fui aturdido, abobalhado para minha casa” (CARDENAL, 2003 a, p. 77. Tradução nossa).

Ao voltar para casa naquele sábado, após aqueles minutos de intensa vivência mística, conversou com sua avó e, quando mostrou a ela um livro de São João da Cruz, disse-lhe que ele tinha vocação religiosa, o que já sabia, mas, até o ocorrido naquele dia, fingia desconhecer. Talvez tenha finalmente compreendido as palavras de João da Cruz, segundo as quais nada é mais intenso que “os deleites de Deus”, nenhuma emoção humana pode se comparar à doçura e também à amargura que se sente após saborear o Infinito. O fato é que, após terminada aquela conversa, foi para seu quarto, conforme já dissemos, com o “acontecimento nas mãos”. Não sabia o que fazer, só tinha a certeza de que “estava tão aturdido que não podia orar. Não sabia que esse aturdimento era uma forma elevada de oração” (CARDENAL, 2003 a, p. 79. Tradução nossa). Sentia a felicidade da “companhia que me habitava por dentro” (CARDENAL, 2003 a, p. 79. Tradução nossa).

A partir desse acontecimento, os apetites terrenos não mais satisfariam Cardenal:

andava como se, em meu interior, tivesse ficado cego e surdo. Me sentia como ofuscado por aquela grande luz, porque também havia sido como uma grande luz que me entrou. Marcado com aquele delicioso vazio [...]. Assim, eu estava fechado para tudo o de fora. Desapegado de todos os apetites, liberto de todo desejo, leve e vazio, cheio de Deus (CARDENAL, 2003 a, p. 79. Tradução nossa).

Totalmente entregue, deixado ficar deitado na rede com Deus, Ernesto sabia que “não eram esses dias de escrever poesia, apenas de calar. De amar. De orar sem saber que isso era orar” (CARDENAL, 2003 a, p. 81. Tradução nossa).

A vida de Cardenal, como já dissemos, ficou marcada por aquele encontro de amor. A experiência mística vivida por ele com Ele lhe preenchia a alma; por essa razão, buscava, enquanto aguardava sua ida para o mosteiro trapense Nossa Senhora de Gethsemani, “maior solidão e silêncio” (CARDENAL, 2003 a, p. 81. Tradução nossa), uma vez que “estava entontecido para tudo, menos para Deus” (CARDENAL, 2003 a, p. 91. Tradução nossa).

Antes de ingressar na Trapa, Cardenal deixou aos cuidados de Ernesto Mejía Sanches para serem publicados os seguintes livros: Epigramas, as traduções de Catulo e Marcial e poemas que comporiam Hora 0.

A respeito desse último mencionado, sabemos ser um texto político que fala da Nicarágua, de outros países da América Central e da luta contra a ditadura. O texto cardenaliano dá muita ênfase a Sandino e ao assassinato dele. Faremos uma interrupção em nossa narrativa sobre recolhimento e silêncio para mostrar alguns trechos do poema “Hora 0”, porque, às vezes, palavras são necessárias para mostrar a desumanização que dá o tom à música entoada por nós, humanos. Eis alguns desses momentos dramáticos:

“Cuatro presos están cavando un hoyo.” “Quién se ha muerto?”, dijo un preso. “Nadie”, dijo el guardiã.

“Entonces ¿para qué es el hoyo?” [...]

En abril los mataron.

Yo estuve con ellos en la rebelión de abril [...]

“Si a mí me pusieran a escoger mi destino (me había dicho Báez Bone tres días antes) Entre morir assinado como Sandino

O ser Presidente como el asesino de Sandino Yo escogería el destino de Sandino”

[...]

Pero cuando muere un héroe No se muere: Sino que esse héroe renace

En una Nación [...]

Pero el héroe nace cuando muere

Y la hierba verde renace de los carbones. (CARDENAL, 1985, p. 40- 51)10

Os trechos destacados mostram algumas passagens interessantes do que se quer contar: a escavação do buraco para se enterrar Sandino, a escolha de Cardenal pela justiça e, consequentemente, pela revolução, o assassinato de Sandino, o assassino desse homem e o destino e a importância do herói para a nação, remetendo-nos também à ideia do caráter cíclico dos acontecimentos no tempo, tema que será bastante abordado nas últimas obras de Cardenal. Segundo Ernesto, esse poema era “truncado para mim, mas para os outros de uma grande unidade. [Assim] é irônico que uma das coisas mais louvadas neste poema seja a sua unidade

10 A tradução desse texto não foi feita, uma vez que os elementos do texto são retomados nos parágrafos seguintes em português.

(CARDENAL, 2003 a, p. 93. Tradução nossa). O próprio poeta afirma, em Vida Perdida, que o texto para ele se mostra fragmentado, porque o que se intitulou “Hora 0” era, na verdade, “Poemas dispersos”. Como ele não conseguia escrever por conta do que lhe ocorrera naquele 02 de junho, juntou tais apontamentos poéticos, dando a eles o título mencionado.

Entretanto, é mister mencionarmos o porquê de esse poema ser intitulado “Hora Zero”. Segundo nos afirma Maria Enrica Castiglioni, na obra “¿‘Para que metáforas?’. La Poetica di Ernesto Cardenal”,

com esta obra se fecha o segundo período poético de Cardenal, que vai dos poemas históricos compostos durante sua jornada em Nova Iorque até

Epigramas. Abrir-se-á agora uma fase totalmente nova – quanto à evolução

temática – na poesia cardenaliana, devido a uma reviravolta radical na vida do poeta, por ele há muito meditado e sofrida (CASTIGLIONI, 1990, p. 34. Tradução nossa).

Assim, refletindo acerca dessa observação, podemos dizer que o poema “Hora Zero” é um marco que aponta para o compromisso definitivo de Cardenal com as “milícias do não” a partir de sua experiência mística. É a obra que assinala uma nova postura ideológica bem definida, como foi mostrado no verso do poema anteriormente mencionado: “yo escogería el destino de Sandino” (CARDENAL, 1985, p. 45)11.

Feita essa pausa em nossa exposição, voltemos a narrar a vida de Cardenal pós experiência místico-extática.

Após aquele 02 de junho, Cardenal relata que tudo o que antes lhe era importante “dava aborrecimento. Toda conversa se fazia insuportável. Tudo intolerável, pelo meu desapego interior” (CARDENAL, 2003 a, p. 93. Tradução nossa).

Totalmente tomado pelo vazio pleno, os apetites do mundo não mais o saciavam, visto que experimentara do vinho do Amado. Restava-lhe, dessa forma, buscar a reclusão na Trapa e o consequente silêncio nela presente. Esse assunto será objeto de nosso próximo tópico.

2.2.3 “GOD ALONE”: a entrada na Trapa

O silêncio é, tanto quanto a palavra, um momento vital de partilha de entendimentos

(COUTO, 2016, p.32)

Bom. Já estamos sozinhos, viestes me buscar e aqui me tens (CARDENAL, 1993, p. 36)

Comecemos nossas colocações com o seguinte poema de Cardenal:

Há llegado al cementerio trapense la primavera, al cementerio verde de hierba recién rozada

con sus cruces de hierro en hilera como una siembra, donde el cardenal llama a su amada y la amada reponde a la llamada de su rojo enamorado. Donde el reyezuelo recoge ramitas para su nido y se oye el rumor del tractor amarillo

al outro lado de la carretera, rozando el potrero. Ahora vosotros sois fósforo, nitrógeno y potassa. Y con la lluvia de anoche, que desentierra raíces y abre los retoños, alimentáis las plantas

como comíais las plantas que antes fueron hombres y antes plantas y antes fósforo, nitrógeno y potassa. Pero cuando el cosmos vuelve al hidrogeno original – porque hidrogeno somos y en hidrogeno nos hemos

De convertir – no resucitaréis solos, como fuisteis enterrados,

la lluvia de anoche, y el nido del reyezuelo, la vaca Holstein, blanca y negra, en la colina, el amor del cardenal, y el tractor de mayo. (CARDENAL, 2003 a, p. 103-104).12

Através do eu lírico desse poema, Cardenal diz-nos que todos morreremos para, depois, retornarmos sucessivas vezes até que, juntos – animais, vegetais, minerais –, ressuscitemos. Toma a lição da natureza para comprovar o que diz, uma vez que, assim como tudo morre e torna ao que era no início: fósforo, nitrogênio e potássio, também tornaremos ao início; no texto, representado pelo hidrogênio original: o elemento que simboliza, no poema, o retorno a um princípio anterior ao início por nós conhecido. Esse texto também nos diz da morte de nosso

12Chegou ao cemitério trapense a primavera, / ao cemitério verde de capim fresco/ com suas cruzes de ferro enfileiradas como uma cerca,/ de onde o cardeal chama a sua amada e a amada/ responde ao chamado se seu amado vermelho./ de onde o rei recolhe raminhos para seu ninho/ e se ouve o rumor do trator amarelo/ do outro lado da estrada, escovando o pasto./ Agora vós sois fósforo, nitrogênio e potássio./ e com a chuva da noite passada, que desenterra raízes/ e abre os brotos, alimentais as plantas/ como comíeis as plantas que antes foram homens/ e antes plantas e antes fósforo, nitrogênio e potássio./ Mas quando o cosmos volta al hidrogênio original/ - porque hidrogênio somos e no hidrogênios nos/converteremos -/ não ressuscitaremos sozinhos, como fostes enterrados,/ senão que em vosso corpo ressuscitará toda a terra/ a chuva da noite passada, e o ninho do rei, / a vaca Holstein, branca e preta, na colina, / o amor do cardeal, e o trator de maio.

místico para o mundo e seu renascimento para um novo mundo, no qual ele encontra-se habitado por Deus.

Há, por sua vez, um diálogo com outros poemas desse autor, como o trecho que agora citaremos, no qual o poeta incorpora, em seu cântico cósmico, uma fala de Sandino para mostrar que somos vistos como passageiros rumando à eternidade: “‘Como una fuerza consciente. En un principio era el amor./ Esse amor crea, evoluciona. Pero todo es eterno./ Y nosotros tendemos a que la vida sea/ no un momento pasajero sino una eternidade/ a través de las múltiples facetas de lo transitório.’” (CARDENAL, 2012, p. 87)13. A eternidade para ele teve

início com o que viveu naquele 02 de junho de 1956.

O desejo de completar suas bodas com Deus, através da total entrega, levou Ernesto a ingressar no noviciado no dia quatorze de maio de 1957: “era primavera em Gethsemani [...]. Eu sentia que tudo era canto e amor. E sentia que, nessa primavera que me rodeava, Deus me queria expressar sua alegria pela minha chegada” (CARDENAL, 2003 a, p. 99. Tradução nossa).

No caminho para esse mosteiro, sentia-se ébrio de Deus. Para ele, tudo era alegria, “foi como se imediatamente todo o universo me enchesse de Deus” (CARDENAL, 2003 a, p. 11. Tradução nossa). Estava em lua de mel com o Criador, manifesto na criação. Não era por acaso que tudo lhe parecia encantador: as águas do mar, o entardecer, as flores, os grilos.

Como era natural, sentia medo, tudo era novo, desconhecido e isso o incomodava. Sentia-se como se até Deus risse de seu medo (CARDENAL, 2003 a). Mas o místico não permitiu que essa emoção o paralisasse. Apenas seguiu o caminho que lhe fora destinado. Sentia-se livre apesar de estar entrando em uma das ordens religiosas mais rígidas. Percebia, ainda, “que os momentos de amor humano que tinha tido em minha vida passada tinham sido de grande felicidade: momentos parecidos, não iguais, ao estado de amor habitual que agora tinha. Mas agora era contínuo, não eram instantes breves como até então” (CARDENAL, 2003 a, p. 101. Tradução nossa).

Um fato muito interessante marcou a chegada de Cardenal ao mosteiro trapense. Ele adentrou ao local exatamente na época em que surgiram as cigarras de 17 anos. Essas são assim conhecidas porque só deixam a condição de larva, metamorfoseando-se em cigarras, a cada dezessete anos. Fazem isso para se proteger, porque “ao fim de dezessete anos não há mais

13“‘Como uma força consciente. No princípio era o amor. / Esse amor cria, evolui. Mas tudo é eterno. / A tendência de nossa vida é que seja/ não um momento passageiro, mas uma eternidade/ através das múltiplas facetas do transitório’”(CARDENAL, 1996, p. 87).

inimigos que possam se lembrar de sua existência e, assim, sentem-se seguras para darem início a essa nova vida” (CARDENAL, 2003 a, p. 100. Tradução nossa).

Cardenal leu esse fenômeno como uma metáfora de sua própria experiência. Por muitos anos esperou até ter certeza de pertencer a Deus e, só após longo período, rompe a crisálida e, assim como as cigarras, pôde recomeçar de outra forma, metamorfoseado. Assim, as cigarras “eram imagens de minha ressurreição” (CARDENAL, 2003 a, p. 102. Tradução nossa). Mais uma vez percebemos uma constante da criação de vida e da poética de Cardenal: a ideia de que todos vamos morrer, voltar a uma condição inicial, renascer até a ressurreição final.

Cardenal compôs, depois que deixou Gethsemani, um poema para ressaltar a importância do episódio das cigarras no momento em que se tornava um noviço trapista:

En pascua resucitan las cigarras

– enterradas 17 años en estado de larva – millones y millones de cigarras

que cantan y cantan todo el día y en la noche todavia están cantando. Sólo los machos cantan:

las hembras son mudas.

Pero no cantan para las hembras: porque también son sordas.

Todo el bosque resuena con el canto y sólo ellas en todo el bosque no los oyen ¿ Para quién cantan los machos?

¿ Y por qué cantan tanto? ¿Y qué cantan? Cantan como trapenses en el coro

delante de sus Salterios y sus Antifonarios cantando el Invitatoria de la Resurrección. Al fin del mês el canto se hace triste, y uno a uno van calando los cantores, y después sólo se oyen unos cuantos, y después ni uno. Cantaron la resurrección.

(CARDENAL, 2003 a, p. 101-102. Tradução nossa)14

Esse belíssimo poeta, além de uma metáfora da transformação vivida por Cardenal, diz- nos também da missão dos monges trapistas, que entoam seu canto ao Criador e à criação através de suas orações. Suas palavras ressoam no universo, ajudam a tornar o mundo melhor,

14 Na páscoa ressuscitam as cigarras/ – enterradas 17 anos no estado de –/ milhões e milhões de cigarras/ que cantam e cantam todo o dia/ e, na noite, todavia estão cantando. / só os machos cantam:/ as fêmeas são mudas. / Mas não cantam para as fêmeas:/ porque também são surdas. / Todo o bosque ressoa com o canto/ e só elas em todo o bosque não os ouvem. / Para quem cantam os machos? / e por que cantam tanto? E o que cantam? / Cantam como trapenses no coro/ diante de seus Saltérios e de seus Antifônicos / cantando o Invitatório da Ressurreição. / Ao fim do mês o canto se faz triste, / y um a um vão se calando os cantores, / e depois só se ouvem uns quantos, e depois nem um. Cantaram a ressurreição.

uma vez que anunciam a ressurreição. Contudo, muitas vezes, não são ouvidos, porque os que estão fora dos muros da Trapa “são surdos” para a revelação que ali se dá. Não conseguem

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 45-60)