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Merton: contemplação, escrita e ação social

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 99-101)

3 DE POETAS E REVOLUCIONÁRIOS: PALAVRA E AÇÃO EM PROL

3.1 ADMIRAÇÃO, AMIZADE, CONTEMPLAÇÃO, PALAVRAS E AÇÃO

3.1.3 Merton: contemplação, escrita e ação social

A vida contemplativa na ação e na pureza de coração é, pois, uma vida de grande simplicidade e liberdade interior. (MERTON, 1963, 265)

Escuta as minhas palavras oh Senhor Ouve os meus gemidos

Escuta o meu protesto (CARDENAL, 1979, p. 86)

Se pensamos ser a vida contemplativa a vida dentro das ordens monásticas, pensamos em oração, silêncio, busca do Sagrado; no caso da vida na Trapa, acrescentamos a isso o grande silêncio, a vida comunitária, o contato com a natureza, o rigor na obediência às regras, a proibição de escrever profissionalmente. Mas não estamos falando de um contemplativo comum, estamos falando de Thomas Merton. Assim, antes de iniciarmos a exposição sobre contemplação, palavras e ação social, é preciso que apresentemos a visão de Thomas Merton acerca do que vem a ser contemplação.

Em suas direções espirituais aos noviços em Gethsemani, Merton oferece algumas informações sobre o que acredita ser contemplação. Em um desses encontros, esclarece aos seus discípulos que a palavra contemplação não é encontrada no Evangelho. “Era uma palavra grega, de origem platônica, que depois passou ao Cristianismo. Mas o Evangelho não fala mais que de oração” (CARDENAL, 2003, p. 173).

Segundo esclarece em seu livro Espiritualidade, Contemplação e paz (1962), Merton afirma que só há uma contemplação e que

a palavra, no sentido próprio, significa contemplação “passiva”. Trata-se de um puro dom de Deus. [...] Deus é o agente principal, que infunde a contemplação na alma e, deste modo, toma posse de suas faculdades, movendo-as diretamente de acordo com Sua vontade (p. 69).

Ressaltamos, porém, que, num sentido mais lato, há uma contemplação chamada ativa, a qual exige “pensamento e ação e atos de vontade”. (MERTON, 1962, p. 70). Através desse tipo de contemplação “uma pessoa pode ser capaz de viver dentro de si mesma e familiarizar-

se com seus próprios pensamentos (MERTON, 1962, p. 70). É uma contemplação “alimentada pela leitura e pela meditação, pela vida [...] pela vida litúrgica e sacramental da Igreja (MERTON, 1962, p. 70). Não deixa de salientar, entretanto, que “antes que a leitura, a meditação e o culto se tornem contemplação, devem convergir numa visão unificada e intuitiva da realidade” (MERTON, 1962, p. 70). Podemos perceber que é uma contemplação inserida “no real, no tempo e na história”. “É uma vida de grande simplicidade e liberdade interior. Não é a busca de alguma coisa especial, nem de alguma determinada satisfação” (MERTON, 1962, p. 77).

Um elemento comum a todo tipo de contemplação é o fato de “preconizar um contato obscuro, experiencial com Deus, acima dos sentidos e mesmo, de certa maneira, acima dos conceitos [...]” (MERTON, 1962, p. 82).

A partir dessa contemplação, podemos atingir um patamar mais “elevado e mais perfeito [que] vai além das imagens dos sentidos e da inteligência discursiva e cintila na obscuridade do “desconhecimento. (MERTON, 1962, p.83). Chegamos à contemplação mística. Segundo o místico Thomas Merton, ela, num nível superior, está acima do intelecto, é “uma luz – nas – trevas, de conhecimento no desconhecido” (MERTON, 1962, p. 84), é “obra do amor, e o contemplativo prova que ama deixando todas as coisas, mesmo as mais espirituais, para ir a Deus no nada” (MERTON, 1962, p. 84). Nesse momento, “o que importa é o amor de Deus pela alma e não o amor da alma por Deus” (MERTON, 1962, p. 84). Cabe mencionarmos que esse é “um trabalho de união interior e de identificação na caridade divina” e que “o homem conhece a Deus ao tornar-se um com Ele. Apreende a Deus tornando-se o objeto de Sua infinita misericórdia” (MERTON, 1962, p. 84).

Merton salienta que ser contemplativo é buscar sim o silêncio, a quietude e a oração, mas nos adverte também que ser contemplativo é estar inserido no mundo, nos problemas do mundo, nas dores do mundo. Porque a experiência mística ocorre quando deixamos de nos preocupar com o ego, quando apenas vivemos e, estando no mundo, precisamos efetivamente fazer parte dele. Uma forma encontrada por ele, objetivando se inserir no real, era através da escrita. Segundo ele mesmo relata, “escrever é amar: é indagar e louvar ou confessar ou rogar. Esse testemunho de amor continua a ser necessário. Não para eu certificar-me de ser, mas simplesmente para eu pagar minha dívida com a vida, com o mundo, com os outros homens” (MERTON; CARDENAL, 2003, p. 315, 316).

Merton pode ser reconhecido como um autêntico e contundente ativista. Não apenas se preocupou com os temas e questões de seu tempo, mas também tornou públicas suas posições e usou, no limite do possível, a sua influência a favor das lutas sociais e políticas daquele momento (PEREIRA, 2014, p.471).

Cardenal nos diz em seu diário Vida Perdida que, se não fosse a experiência mística vivida naquele dia 02 de junho, não seria mais que “um intelectual simpatizante do sandinismo” (CARDENAL, 2003, p. 65). Assim, toda a sua militância política e seu trabalho social foi consequência daquela experiência e dos encontros por ela possibilitados. Um desses encontros foi com Merton e esse o ensinou, conforme já mencionamos, que a contemplação pode e deve estar inserida no mundo. Em muitas das cartas trocadas entre esses dois místicos, faz-se menção à luta em prol dos menos favorecidos. Assim, segundo nos informa Daydí-Tolson,

contemplação e ação, monastério e mundo são termos aparentemente antitéticos que em Cardenal – seguindo a Merton – não se opõe, mas sim, ao contrário, se complementam em uma tensão que o define em sua essência de poeta, religioso e revolucionário. A influência de Merton sobre Cardenal resulta, definitivamente, fundamental. (MERTON; CARDENAL, 2003, p. 10).

Em muitos dos livros de Thomas Merton, encontramos esse compromisso com o real. Em seus diários, por exemplo, faz questão de mencionar a dura vida de um monge, o diálogo com pessoas de várias crenças, a fim de mostrar que é necessário “alargar as cordas” e ir além conhecendo a beleza e a singularidade do outro com quem se estabelece uma conversa sincera. Sua literatura – assim como a de Cardenal – mostra-se comprometida com a luta por justiça, por igualdade e por paz. O poema de Cardenal que citaremos, no próximo tópico, feito por ocasião da morte de seu amigo, mostra essa necessidade de escrever sobre as dores do mundo como forma de fazer o leitor pensar sobre elas e buscar solucioná-las.

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 99-101)