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Deus me quer de outro modo: outras terras, outras experiências, uma mesma

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 32-37)

2 NOS BRAÇOS DO AMADO

2.1 O MENINO, O JOVEM ESTUDANTE, O INTELECTUAL

2.1.3 Deus me quer de outro modo: outras terras, outras experiências, uma mesma

Cantaré al Señor mientras yo viva

Le escribiré salmos

Séale grato mi canto Bendise alma mía al Señor

Aleluya! (CARDENAL, 2003a, p. 76)

Terminados os seus estudos no Colégio Centroamérica, Cardenal parte para o México, a fim de estudar Letras, na Faculdade de Filosofia e letras desse país. Segundo ele mesmo relata em Vida Perdida, as aulas não o interessavam, mas sim “O café da faculdade onde, ao redor de uma de suas mesas circulares, nos reuníamos o grupo de sempre: Ernesto Mejía Sanches, eu, Tito Monterroso, Rosario Castellanos, Lolita Castro, Fedro Guillén, Wilberto Cantón, Alfredo Sancho, Ninfa Santos, ...” (CARDENAL, 2003 a, p. 40. Tradução nossa).

Nesse período, iniciam-se os enamoramentos de Cardenal e também começa a surgir a certeza de que estava destinado a Deus. Mas esses enlaces amorosos serão mostrados mais adiante detalhadamente. Nesse momento, somente abordaremos alguns para o evidenciar o quanto Deus o queria.

O grupo que se reunia no café da faculdade era formado por futuros grandes poetas. Para citar alguns, podemos evocar Tito Monterroso que, inicialmente, lia muito, mas não conseguia escrever até que, em um determinado dia, publicou o livro Obras Completas e outros contos, através do qual surpreendeu os leitores e a crítica com contos cheios de humor e até com um texto sintético, formado de apenas uma linha, segundo nos afirma Cardenal.

Destacamos ainda Lolita Castro, a qual se tornou uma poetisa reconhecida no México, e Rosario Castellanos que passou a ser uma grande novelista também no México. Do grupo de Cardenal, além de poetas, saíram também artistas destinados a outras artes que não a da palavra, jornalistas, sociólogos e até um futuro presente do México: Luis Echeverría.

se uma moça me aceitava, eu a queria menos; se, depois, não me aceitava, eu me tornava louco por ela. E, também, me correu algumas vezes que equivocadamente pensei que, quando uma moça já estava conquistada, começava a querê-la menos, e, ao descobrir que não era certa a conquista, voltava a querê-la mais (CARDENAL, 2003 a, p.44. Tradução nossa).

Depois de se ter graduado no México, foi para os Estados Unidos com o intuito de continuar a estudar literatura na Universidade de Colúmbia – a maior universidade dos Estados Unidos, em Nova Iorque. Ernesto conta que, nesse período, esteve prestes a fazer a sua entrega final a Deus, sua entrega à vida religiosa, “mas não me atrevi[...]. E rezava rosários dia e noite” (CARDENAL, 2003 a, p. 45. Tradução nossa).

Essa fase mística passou assim que encontrou uma moça morena da Nicarágua. Após um roçar de mãos nas pernas dela – e nada mais! -, descobriu que “Deus não me queria para Ele naquele momento, que queria que eu amadurecesse mais, que me fizesse melhor poeta, [...]. Talvez me quisesse de outro modo em Nova Iorque” (CARDENAL, 2003 a, p. 46. Tradução nossa).

Passou grande parte de sua estadia em Nova Iorque vivendo na Casa Internacional, uma residência de estudantes junto à universidade de Colúmbia, um lugar agradável no qual era possível encontrar pessoas de várias partes do planeta e que vinham para aquela universidade completar seus estudos.

Enquanto viveu nesse lugar, não teve muitas namoradas. Relata, em Vida Perdida, as razões para isso: era exigente quanto à beleza da mulher, sentia-se feio, era tímido e acreditava convictamente que Deus o perseguia (CARDENAL, 2003 a, p. 47-48). Mas teve um relacionamento com uma moça costarriquenha bastante caliente: “Comiam-se com beijos (CARDENAL, 2003 a, p. 54. Tradução nossa), mas, aos poucos, foram se afastando, porque descobriram que não se queriam tanto assim. Percebemos que a força de Eros era marcante nos enamoramentos do poeta, mas havia uma força que o repelia da mulher objeto de seu desejo.

Nesse tempo, conheceu muitas mulheres. Dentre elas, aquela que se tornou esposa de Anastasio Somoza Debayle, o pior dos ditadores da dinastia Somoza. O nome dela era Hope Portocarrero. Ele a encontrou por acaso no dia em que ela estava se formando. Esses elementos aparentemente vistos como acaso – o pensar-se ser escolhido para “amante do Infinito”, o encontro com pessoas da família dos ditadores da Nicarágua – na verdade não o são, pois já sinalizam os passos futuros de Cardenal, mas naquela ocasião ele não se dava conta disso.

Nessa Universidade, assim como ocorria no México, não se interessava pelos professores ou pelas aulas, preferia ficar nas bibliotecas da Universidade ou na biblioteca

pública de Nova Iorque. Como sempre gostou de história, conforme já mencionamos, perdia- se nos livros que falavam da Nicarágua e da América Latina. Isso gerou inúmeros poemas, como é o caso do que citaremos a seguir. Cabe ressaltarmos que esse é um fragmento do livro El estrecho dudoso:

Por lo que toca a su vida y sus costumbres,

hombres y mujeres andan completamente desnudos. Son de mediana estatura y de buenas proporciones. Su carne tira a roja como el pelo de los leones, y soy de opinión que si anduvieran vestidos serían tan blancos como nosotros.

Tienen sus pelos largos y negros, especialmente las mujeres,

a las que sienta bien la larga y atezada cabellera. No son muy hermosos sus semblantes

porque tienen las caras chatas o aplastadas semejantes a las de los tártaros.

[...]

No tienen jefes ni capitanes de guerra

sino que andan sin orden, cada uno libremente. Esta gente vive en libertad, no obedece a nadie ni tiene ley ni señor. No riñen entre sí.

(CARDENAL, 1985, p. 43-44)4

Esse trecho do poema narrativo, a partir de uma relação intertextual com as cartas dos primeiros espanhóis que chegaram ao país de Cardenal, mostra as feições dos indígenas que ali viviam e sua forma de organização social. O narrador desse texto deixa transparecer crenças do autor, como o fato de que, antes da chegada dos conquistadores ao estreito duvidoso, havia uma organização social mais eficiente, na qual não existia a necessidade de chefes, nem de leis para se viver em paz. Aponta também para aquele que será o destino desses povos após o achamento de suas terras pelos colonizadores: a perda da liberdade, a subserviência. Ao acentuar esse aspecto, fica evidente a crítica feita ao sistema colonial opressor.

Foi nesse período que leu as obras de Santa Teresa e de São João da Cruz. Confessa não ter entendido a experiência mística de Santa Teresa naquele momento, mas que achou bastante

4 Ao que diz respeito à sua vida e a seus costumes/ homens e mulheres andam completamente nus./ São de mediana estatura e de boas proporções/ Sua carne parece vermelha como a juba de leões/ e sou da opinião de que se andassem vestidos seriam tão brancos como nós./ Têm seus cabelos compridos e pretos,/ especialmente as mulheres/ para quem caem bem a longa e volumosa cabeleira./ Não são muito formosos seus semblantes/porque têm as caras chatas ou esmagadas/ semelhantes a dos tártaros.[...]/ Não têm chefes nem capitães de guerra/ Dessa forma, andam sem ordens, cada um livremente./ Esta gente vive em liberdade, não obedece a ninguém /nem têm lei nem senhor. Não brigam entre si (tradução nossa).

inovadora a incorporação da oralidade em seus escritos. Quanto à obra de João da Cruz, essa entendeu, tanto é que ficou registrada em sua memória a passagem “para possuir a Deus tem que renunciar absolutamente a tudo” (CARDENAL, 2003 a, p. 48. Tradução nossa). Sabia não poder fazê-lo naquele momento, pois, como ele próprio declarou, “Deus me perseguia e eu perseguia as mulheres” (CARDENAL, 2003 a, p. 48. Tradução nossa). Entretanto, quando sua hora final chega, compreende e aceita as palavras de São João “não deve querer nada, desejar nada” (CARDENAL, 2003 a, p. 48. Tradução nossa). A entrega deve ser total.

É importante mencionarmos que foi nesse período de sua vida que teve contato como os poemas de Thomas Merton (já conhecia obras em prosa desse autor da época em que as lia para sua avó). Tudo começou quando leu no New York Times sobre o lançamento de um livro de poemas de Merton. Sentiu um soco no estômago. Relata, também em Vida Perdida, que não conseguia dizer se o que sentia era decorrente de ser um livro desse famoso escritor, ou de ser um livro de um monge trapista. (CARDENAL, 2003 a, p. 49).

Comprou o livro, leu, traduziu para o espanhol alguns poemas. Encontrou-se na leitura do místico. Adquiriu outros livros dele: A Montanha dos Sete Patamares e Sementes de Contemplação. Mas adiou a leitura. Não estava pronto para o encontro místico que a leitura de Merton proporcionaria. Conta-nos o seguinte a respeito desse momento: “eu perseguia as mulheres como disse, na Casa Internacional, na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, ou o sonho de uma mulher que não havia” (CARDENAL, 2003 a, p. 49. Tradução nossa). Já está presente neste comentário algo que desenvolveremos mais adiante através de um poema: as mulheres, com sua beleza, são ou não reflexos de Deus, ou ainda, Cardenal não buscava a beleza efêmera, mas uma beleza que nunca envelheceria.

Foi um período de dúvida, de medo de “morrer jovem sem ter se entregado a Deus. Mas não me atrevia a fazê-lo” (CARDENAL, 2003 a, p. 49. Tradução nossa). Por isso, buscava a oração e o amparo da Virgem.

Motivado por namoros rápidos e pela dúvida “Deus ou as mulheres”, decide sair dessa cidade indo passar uma temporada na Europa. No entanto, durante os meses em que lá viveu, “o dilema vocação, não vocação seguiu me atormentando” (CARDENAL, 2003 a, p. 55. Tradução nossa).

Em Madrid, Ernesto conheceu Christine. Enamorou-se. “Christine me fascinou desde antes de conhecê-la, porque a tinha visto em uma foto” (CARDENAL, 2003 a, p. 55. Tradução nossa). Ela tinha quinze anos (ou talvez dezesseis, no máximo), ele já havia completado vinte e quatro. Estavam se entendendo bem, porém, um dia nosso místico, na ocasião estudante,

resolveu levar a amada para visitar o Museu do Prado. Essa visita mudou tudo entre os dois, pois, ao ver um

tríptico que tinha pintado ao lado esquerdo uma moça belíssima com a idade de Christine, com o rostinho parecido com Christine, e uns peitos nus, pequenos e hirtos; e, no centro, da obra havia uma velha enrugada feíssima, e no lado direito, um esqueleto. Eram as três etapas da mulher: juventude, velhice e morte[...] o destino humano é brutal. (CARDENAL, 2003 a, p. 56- 57. Tradução nossa).

Depois dessa visão, Cardenal compreendeu que não havia no humano beleza eterna. Não teve outra opção: afastou-se. “Ainda que fosse linda, [...] tinha que deixá-la. Deixá-la pelo matrimônio que buscava na Nicarágua. Ou a vocação? Porque sempre estava em dúvida. (CARDENAL, 2003 a, p. 57. Tradução nossa). Vivia “o doloroso dilema da união conjugal ou solidão com Deus” (CARDENAL, 2003 a, p. 58. Tradução nossa).

Em outros lugares por onde passou, viveu a mesma incerteza, que a visão daquele tríptico no Museu do Prado já havia esclarecido: “não queria uma beleza que morresse, nem uma beleza que se tornasse feia, que talvez é o pior” (CARDENAL, 2003 a, p. 59. Tradução nossa). Também não queria esposar uma mulher que engordasse. Na verdade, tinha como ideal a mulher descrita pelo místico colombiano Fernando González, segundo o qual “havia de amar tão somente àquela beleza que ‘teria sempre a dentição perfeita’” (CARDENAL, 2003 a, p. 59. Tradução nossa).

Depois de muitos enamoramentos, Cardenal chegou à conclusão de que “estava condenado a ser de Deus” (CARDENAL, 2003 a, p. 60. Tradução nossa). Ocorreu, quando estava em Paris, um episódio que comprovou isso. Ele e seu amigo Carlos Martínez foram a um bordel para procurar profissionais do sexo, mas nada acharam, porque, naquele dia, todas estavam trabalhando. Nem nas ruas havia prostitutas, uma vez que a polícia havia retirado todas de lá. Segundo Ernesto, era Deus que, com ciúmes dele, não permitia que tivesse encontros efêmeros. O fato é que não buscava muito pelo encontro de corpos. Não foi por acaso que só perdera a virgindade aos vinte e um anos e, mesmo depois de conhecer essa forma de prazer, só a buscava se não a conseguia sublimar.

Muitas vezes, Ernesto tinha dúvidas a respeito do fato de ser mesmo Deus que atuava impedindo que tivesse êxito em amores humanos ou em encontros de “sexo sem amor”. Não sabia ao certo se a participação de Deus nesses momentos era algo real ou se não passava de “frutos de sua imaginação” (CARDENAL, 2003 a, p. 62. Tradução nossa). Uma vez que nosso poeta acreditava que “Deus não só é o Deus do real e do imaginário, mas também dos erros”

(CARDENAL, 2003 a, p. 63. Tradução nossa), não via problema algum em errar, em ter desejos ligados ao sexo, pois não o enxergava como uma forma de desligamento do sagrado, mas talvez como uma via para esse encontro. Lamentava, entretanto, a moral ocidental judaico cristã que associa sexo a pecado, não conseguindo enxergar ser essa forma de prazer uma interessante maneira de gerar vida e de se concretizar a união mística. Abordaremos esse assunto mais detalhadamente no capítulo quatro dessa tese.

Finalizando essa parte do capítulo, é mister mencionarmos que conhecer outras terras, e consequentemente novas formas de ler o mundo, fizeram Cardenal definir alguns traços que marcariam sua trajetória enquanto poeta, enquanto amante, enquanto humano, além de reforçarem nele a ideia de que pertencia a Deus.

Terminados esses tópicos os quais mostraram estarem presentes, desde a infância, em Cardenal, elementos que o construiriam enquanto sacerdote, poeta, místico e revolucionário, passemos, a partir desse ponto, a uma nova etapa na qual apresentaremos a total entrega dessa criatura ao Criador.

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 32-37)