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Versos para dizer de uma história de amor

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 101-106)

3 DE POETAS E REVOLUCIONÁRIOS: PALAVRA E AÇÃO EM PROL

3.1 ADMIRAÇÃO, AMIZADE, CONTEMPLAÇÃO, PALAVRAS E AÇÃO

3.1.4 Versos para dizer de uma história de amor

Vivimos como en espera de una cita infinita. O

que nos llame al telefono lo Inefable. (CARDENAL, 2005, p. 32)

Por ocasião da morte de Merton, Ernesto Cardenal escreveu um longo poema dedicado a seu mestre Thomas Merton. Trata-se de “Coplas43 a la muerte de Merton”. Não podemos dá

prosseguimento a essa tese sem dedicarmos algumas linhas a falar desse texto e de seu lirismo singular, coplas que narram uma história de amor, de amor philia, sentimento compartilhado não somente entre mestre e noviço, mas, e principalmente, entre dois grandes amigos.

“Nuestras vidas son los rios/ que van a dar a la muerte/ que es la vida” 44(CARDENAL,

1985, p. 215). Com esses versos, Cardenal inicia seu poema supracitado e neles o poeta nicaraguense, para louvar o amigo, traz-nos crenças, sonhos e episódios da vida do místico trapense. Faz referência, por exemplo, ao zen, a cujos estudos Merton se dedicava e que lhe parecia ser uma espiritualidade bastante singular: “Tu muerte más bien divertida Merton/ (o absurda como un Koan?)”45 (CARDENAL, 1985, p. 215).

São muito interessantes as reflexões feitas por Cardenal a respeito da morte, principalmente aquelas que se referem à circunstância da morte de Merton: “Morir no es como el choque de un auto o/ como un corto-circuito/ nos hemos ido muriendo toda la vida/ Contenida en nuestra vida”46 (CARDENAL, 1985, p. 215. Grifos nossos).

A evocação de elementos concretos, marca do exteriorismo literário, vanguarda criada por Cardenal em parceria com Coronel Urtecho e que será abordada no próximo capítulo desta tese, é bem marcada no poema em versos como os seguintes:

Nos hemos ido muriendo toda la vida Contenida en nuestra vida

¿Como el gusano en la manzana?47

(CARDENAL, 1985, p. 215. Grifos nossos)

Ou

¿El Tiempo Alfonso el Tiempo? Is Money, mierda, shit el tiempo es New York Time Y Time

- Y hallé todas las cosas como coca-colas...48 (CARDENAL, 1985, p. 215)

43 Coplas são poemas, cuja tradição remonta à Idade Média. Esses textos têm um caráter bastante popular tanto no que diz respeito a tema quanto à linguagem.

44 Nossas vidas são os rios/ que vão dar à morte/ que é a vida.

45 Tua morte, Merton, bastante engraçada (ou absurda como um Koan?)

46 Morrer não é como o choque de um automóvel ou/ como um curto-circuito/ nós vamos morrendo toda a vida/ contida em nossa vida.

47 nós vamos morrendo toda a vida/ contida em nossa vida/ como um verme na maçã.

48 ¿O Tempo, Alfonso, o Tempo? / É Dinheiro, merda, merda /o tempo é New York Time e Tempo/ -E achei todas as coisas como coca-colas.

Nessa rememoração da vida do amigo, aparecem críticas políticas e sociais, como ao meio de vida americano, aos governos ditatoriais, à exploração, à supervalorização do dinheiro. Observemos:

Somos Somozas deseando más y más haciendas More More More49

(CARDENAL, 1985, p. 216) 1 martini o 2 para olvidar Su rostro Relax & ver tv

El placer de manejar un Porsche (any line you choose)50

(CARDENAL, 1985, p. 222)

Cf. THE AMERICAN WAY OF DEATH51 (CARDENAL, 1985, p. 222)

El Tiempo? Is Money52 (CARDENAL, 1985, p. 224)

La muerte biológica es cuestion política O cosa así

General Electric, La parca

Un jet de Viet

Nam para el cadáver53 (CARDENAL, 1985, p. 234)

Esse compromisso social era algo que unia os místicos, pois ambos acreditavam ser preciso vencer as desigualdades e injustiças para conseguirmos acessar o Infinito. Merton, em particular nos últimos anos de sua vida, tecia duras críticas ao “American way of life” por acreditar ser ele voltado para um consumismo exacerbado e para a valorização do dinheiro e do status social em detrimento de valores morais e éticos.

O texto escrito com a intenção primeira de trazer ao coração, pela memória, o amigo querido tornou-se um singular tratado sobre amor e sobre morte. Nele enxergamos claramente

49 Somos Somozas desejando mais e mais fazendas/ Mais Mais Mais.

50 1 martini ou 2 para esquecer Seu rosto/ Relaxar & ver tv/ o prazer de dirigir um Porshe/ (qualquer linha que você escolher).

51 “Cf o modo americano de morte”. Nesse verso, há uma grande ironia, perceptível pelo jogo de palavras na sentença “o modo americano de morte” que contrasta com a frase original “the american way of life” (o modo de vida americano).

52 O Tempo é dinheiro.

53 A morte biológica é questão política/ ou algo parecido /General Electric/ A parca/ um jet em Viet/ nome para um cadáver.

a visão do eu-lírico a respeito da vida e da morte. Não é por acaso que, ao lermos versos como os apresentados a seguir, nós, leitores, conseguimos nos enxergar como passageiros os quais viajam rumo a uma estação final e estamos esperando que ela chegue para começarmos uma nova etapa da vida.

Vivimos como en espera de una cita infinita. O

Que nos llame al telefono lo Inefable54

(CARDENAL, 1985, p. 216)

Nessa espera,

la lucidez es imagen de la muerte

De la iluminación, el resplendor enxerguecedor de la muerte55

(CARDENAL, 1985, p. 217)

Com a vinda dessa nova etapa, sem futuro, viveremos “[...] sólo un presente fijo”56 (CARDENAL, 1985, p. 217) no qual “se revela la realidad toda entera / en un flash”57

(CARDENAL, 1985, p.217).

Nesse tratado sobre vida e morte, não poderia faltar o amor, que é visto como uma forma de se vislumbrar a morte antes da morte física, já que significa a supressão do ego. Assim,

El amor, el amor sobre todo, un antecipo de la muerte Había en los besos un sabor a morte Ser

es ser

en outro ser

Sólo somos al amar 58(CARDENAL, 1985, p. 218)

Esse vislumbre se dá nas “bodas del deseo”59 (CARDENAL, 1985, p. 216), quando, ao

unirmos os corpos, mesmo que instantaneamente pela cópula, “matamos” o dois, tornando-nos

54Vivemos como à espera de uma cidade infinita./ Ou que nos chame ao telefone o Inefável. 55A lucidez é a imagem da morte/ da iluminação o brilho/ escuro da morte.

56Só o presente fixo.

57Se revela toda a realidade/ em um flash.

58O amor, o amor sobretudo, uma antecipação da morte/ Havia nos beijos um sabor de morte/ Ser/ é ser/ em outro ser/ Somente somos ao amar.

um pelo amor: “el coito de volición perfecta es el acto/ de la muerte” 60(CARDENAL, 1985, p.

216).

E, ao mesmo tempo e ainda que aparentemente paradoxal, pela morte, através do amor, retornamos à vida, porque

Sólo amamos o somos al dejar de ser al morir desnudez de todo el ser para hacer el amor

make love not war que van a dar al amor

que es la vida61 (CARDENAL, 1985, p. 219)

Dessa maneira, a morte não é “una película de horror”62 (CARDENAL, 1985, p. 219),

mas “una Noche Nupcial”63 (CARDENAL, 1985, p. 219). A morte, nessa concepção, “seria

viajar/ a nosotros mismos”64 (CARDENAL, 1985, p. 219). E, assim, “La muerte es el acto de

la distracción total/ también: Contemplación”65 (CARDENAL, 1985, p. 218).

Essa abordagem sobre a vida e morte é muito singular, uma vez que, segundo a voz que fala nesse texto, “somos inmortales”66 (CARDENAL, 1985, p. 220), chamados a ir a uma

gran Aldea [...] y no como a un fin sino al Infinito

volamos a la vida con la velocidad de la luz

y como el feto rompe la bolsa amniótica... [...] - la salida de la crisálida y es un happening el clímax de la vida dies natalis

esta vida pre-natal...67 (CARDENAL, 1985, p. 220-221)

60O coito da volição perfeita é o ato/ da morte.

61Somente amamos, ou somos ao deixar de ser ao morrer/ desnudez de todo o ser para fazer o amor/ faça amor não guerra/ que vão dar ao amor/ que é a vida.

62Um filme de terror. 63Uma Noite Nupcial. 64Seria viajar/ a nós mesmos.

65A morte é o ato da distração total/ também: Contemplação. 66Somos imortais.

67Grande Aldeia[...]/ e não como um fim/ mas sim ao Infinito/ voamos à vida com a velocidade da luz/ e como o feto rompe a bolsa amniótica...[...]/ - a saída/ da crisálida/ e é um acontecimento/ o clímax/ da vida/dia do nascimento/ esta vida pré-natal.

Assim, essa vida é só uma etapa antes das bodas com o Criador, ao qual “allora sólo vemos como en tv/ después veremos cara a cara”68 (CARDENAL,1985, p. 226) e, nessa

ocasião, “serán dados todos los besos que no pudísties dar”69 (CARDENAL, 1985, p. 226) porque “la muerte es unión”70 (CARDENAL, 1985, p. 229) e “morir no es salir del mundo es/

hundirse en él”71 (CARDENAL, 1985, p. 230) e “La vida no termina se transforma” 72(CARDENAL, 1985, p. 231).

Cardenal termina seu canto, dizendo que “solo amamos o somos al morir./ El gran acto final de dar todo el ser”73 (CARDENAL, 1985, p. 235). Foi o que Merton fez em sua vida:

amou, morreu no amor; sofreu, morreu na dor; preocupou-se com o outro, morreu nesses encontros para, na morte física, voltar a fazer parte do todo, pois já

Estaba todo vacío

y dado todo el amor no tenía ya nada que dar y listo para ir a Bangkok

para entrar al comienzo de lo nuevo74 (CARDENAL, 1985, p. 234).

Após trazermos a luz essa linda homenagem do poeta nicaraguense a Merton, passemos a tratar de Solentiname – o sonho que se tornou real –, dos Evangelhos nela realizados e das consequências das reflexões deles na vida dos que os compartilhavam e do destino da Nicarágua.

No documento elisangelaaparecidadesouzaalves (páginas 101-106)