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Companhia de Renovação Urbana RENURB

Salvador, 1978-1982

Inicialmente envolvida com o desenvolvimento de componentes para abrigos de paradas de ônibus, a equipe coordenada por Lelé na RENURB se depara com o primeiro grande desafio: o saneamento do Vale do Camurujipe, na periferia de Salvador. O ob- jetivo era criar um sistema de drenagem das águas pluviais, canalização do esgotamento sanitário e contenção das encostas em terrenos acidentados, considerados de alto risco de ocupação e de baixa resistência devido ao estágio avançado de assore- amento. Estas condições inviabilizaram o uso de quaisquer métodos tradicionais que pudessem ser usados para promover melhoras na qualidade de vida da população. A ocupação dos fundos de vale e encostas dos morros em áreas menos valorizadas é resultado de um processo de crescimento desor- denado da cidade.

A RENURB foi criada em 1979 pelo então pre- feito Mário Kertész, com o objetivo prioritário de implantar o projeto de Transportes Urbanos de Salvador (TRANSCOL) financiado pelo BIRD. O de- senvolvimento desse plano exigia a integração de todos os setores técnicos de arquitetura e urbanis- mo e determinou a criação de um grande escritório de projetos. Para acelerar a execução das obras e torná-las mais econômicas, decidiu-se adotar projetos padronizados, empregando componentes pré-fabricados de concreto armado produzidos em uma usina implantada pela própria Prefeitura.38

A equipe da RENURB tinha um caráter multi- disciplinar. Para assessorar o escritório quanto à adoção da argamassa armada39 nas obras do Vale

do Camurugipe, tecnologia entendida como a mais apropriada devido à leveza do sistema e facilida- de de transporte, foram convidados os professores Dante Martinelli e Frederico Schiel, da Escola de En- genharia de São Carlos (EESC-USP). Ao fazer algu- mas considerações acerca das condições do local, Lelé explica que:

Esse terreno não tem nenhum suporte para rece- ber qualquer tecnologia das usuais. Tínhamos que estudar uma tecnologia leve, uma coisa flutuante compatível com essa capacidade de tensões ad- mitidas pelo terreno, mas ao mesmo tempo uma solução que não retirasse as pessoas dali. Nossa

38 Giancarlo Latorraca (org.). Op. Cit., 1999, p. 98.

39 O ferrocement é a associação de matriz de cimento com telas de aço de pequena abertura. Apesar de ele ser o precursor do concreto armado, com o barco construído por Lambot em meados do século passado, foi a partir do trabalho do enge- nheiro italiano P. L. Nervi, no fim da década de 40 e na década de 50, que os estudos e aplicações do material tiveram desen- volvimento. Argamassa armada foi a denominação empregada pelos professores Dante A.O. Martinelli e Frederico Schiel, da Escola de Engenharia de São Carlos (USP), no início da década de 60, para uma adaptação do material utilizado por Nervi, em que foram reduzidos o consumo de cimento e o consumo de telas, e aumentadas as aberturas das telas. In: Mounir Khalil El Debis. Aplicação de armadura não metálica em peças delga- das de concreto. Artigo Revista Téchne disponível em http:// revistatechne.com.br/engenharia-civil/41/imprime32195.asp. Acesso 12/04/2011.

34. Intervenção no Vale do Camurujipe - Salvador. Fonte: Max Risselada (2010)

proposta não era fazer urbanização, era fazer o saneamento básico. Com argamassa armada con- seguimos peças bastante finas com um centímetro e meio, dois centímetros de espessura para po- derem ser transportadas à mão.

E completa:

Lá, ao contrário do Rio de Janeiro onde as favelas sobem o morro, as favelas descem, o que é muito pior, porque as pessoas em baixo recebem os de- jetos, o lixo. [...] Em certos locais tínhamos áreas de lixo de cerca de seis metros de altura.40

Dentre as projetos desenvolvidos e produzidos pela RENURB no período em que atuou na Gran- de Salvador, destaca-se um conjunto de peças, nas mais variadas escalas, responsáveis por promover melhorias nas condições de vida da população atra- vés de ações comprometidos com a realidade social da metrópole baiana.

O detalhamento rigoroso e o alto padrão cons- trutivo dessas peças geraram equipamentos urba- nos com as mais variadas funções. Dentre os pro- jetos mais expressivos, destacam-se as paradas de ônibus, passarelas, banca de trovadores de cordel, banca de jornaleiro, terminal rodoviário, posto po- licial, bancos de praça, além de projetos de maior envergadura como o Belvedere da Sé e o Convento de Brotas (não construídos), a Central de Delega- cias, a Igreja de Alagados41 e a arrojada Estação de

Transbordo da Lapa, construída com o intuito de solucionar parcialmente os problemas advindos da inoperância dos sistemas de transporte coletivos.

40 João Filgueiras Lima. Caderno Especial Arte/Arquitetura. In: Módulo n. 76, julho 1983, p. XI. Apud Ana Gabriella Lima Gui- marães. Op. Cit., p. 107.

41 Em entrevista ao autor, Lelé comenta que em 1980 havia feito um projeto anterior, com claras referências à arquitetura de Alvar Aalto, destinada a receber o Papa durante sua primeira visita à capital baiana. Com prazo exíguo, o projeto acabou re- cusado pelo arcebispo de Salvador Dom Avelar Brandão, alegan- do que a extrema simplicidade da igreja não condizia com o ilus- tre visitante. Um novo projeto foi construído pelo mesmo mestre de obras da Residência Nivaldo Borges, o artesão espanhol Tião, baseado na técnica de arcos e abóbodas em tijolos cerâmicos. Entrevista realizada no Instituto do Habitat, Salvador-BA, em 04/05/2011.

35. Escada drenante - RENURB. Fonte: Cláudia Estrela Estrela (2010)

36. Elementos da escada drenante - croqui. Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)

37. Posto Policial - RENURB. Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)

38. Igreja de Alagados - projeto construído. Fonte: Giancarlo Latorraca (1999) 39. Igreja de Alagados - anteprojeto recusado. Fonte: Giancarlo Latorraca (1999)

40. Estação de Transbordo da Lapa - maquete.

42. Belvedere da Sé - croqui.

A experiência da RENURB se encerra com a de- missão do Prefeito Mário Kertész, em 1981. Ape- sar da gestão seguinte ter elaborado um plano de continuidade às ações implantadas pela equipe de Lelé, a abertura para a iniciativa privada minou os esforços realizados no sentido de buscar uma re- lação custo-benefício mais favorável ao Estado. A essa altura, a importância da RENURB para a traje- tória de Lelé já havia cumprido seu papel. O arqui- teto que iniciara sua carreira em obras públicas de grande envergadura manteria daqui em diante uma estreita relação com o Estado através da arquite- tura de interesse social. Suas obras nesse período são elaboradas a partir de componentes diminu- tos, completamente inseridos na paisagem urbana e desapercebidos pelo grande público. Sobre esta nova característica impressa nos trabalhos de Lelé, Recamán assim se manifesta:

[...] a obra de Lelé deve ser entendida no con- junto da herança moderna brasileira, ao lado de Oscar Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha, etc. Em- bora, em relação a esses arquitetos, logrou um caminho mais fértil, mais amplo, justamente por ter se voltado a questões modernas que foram abandonadas pelas pesquisas desses outros cole- gas: a racionalização das técnicas e a industriali- zação dos componentes construtivos; a tentativa, através da pré-fabricação de elementos infraestru- turais, de melhorar as condições urbanas de sanea- mento e circulação; a busca de soluções climáticas mais apropriadas às condições brasileiras e, final- mente, a elaboração de programas sociais (esco- las, creches, hospitais, etc.) vinculados a sistemas construtivos que, a princípio, dotaram esses edifí- cios de boa arquitetura com custo baixo.42

42 Luiz Recamán. Lelé e a arquitetura moderna brasileira. Trópico, São Paulo, 2003. Disponível em: http://pphp.uol.com. br/tropico/html/textos/1689,1.shl. Acesso em 12/04/2011.