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Uma desprofissionalização do olhar

No documento A casa na obra de João Filgueiras Lima, Lelé (páginas 180-185)

“Admiro os poetas, o que eles dizem com duas palavras, a gente tem que exprimir com milhares de tijolos”

João Batista Vilanova Artigas, 1973

Se há uma constância na obra de Lelé, é a sua inconstância. No sentido de melhor explorar esta sua característica, foram escolhidas quatro resi- dência representativas de momentos e técnicas construtivas distintas na trajetória deste profissio- nal que, sem temor, se reinventa por meio de suas pesquisas.

A primeira delas, a Residência Aloysio Campos da Paz (1969-1997), apresenta certas particulari- dades que lhe conferem um lugar de destaque na produção do arquiteto. Além de possuir uma planta bastante atípica, obtida pela interpretação organi- cista dada ao programa, não há aqui uma rigidez na organização espacial ditada pelo módulo construti- vo (no caso, o espaçamento entre as vigas da laje de cobertura – 66 cm de eixo) como acontece na maioria de suas residências.

A casa de final de semana construída em alvena- ria de pedra, completamente integrada à paisagem, recebe, em 1991, um acréscimo cuja linguagem di- fere por completo daquela originalmente adotada. Apesar do arquiteto ter proposto outra solução, também em estrutura metálica, posteriormente descartada pelo proprietário, aquela seria sua pri- meira experiência de intervenção na própria obra. Naquele mesmo ano, Lelé realizaria outro projeto de ampliação, desta vez no conjunto da concessio- nária DISBRAVE, onde optou pela manutenção da unidade de linguagem.

A segunda casa representa um momento em que Lelé se volta para as técnicas construtivas em ti- jolo cerâmico. A Residência Nivaldo Borges (1972-

1978) foi totalmente concebida dentro de um siste- ma estrutural baseado no uso de arcos e abóbadas em “meio-ponto”, cuja execução ficou à cargo do mestre espanhol Tião, exímio construtor e amigo da família.

No que se refere ao uso do tijolo como técni- ca e linguagem, esta não foi uma experiência iso- lada. Em 1973, Lelé adotaria novamente o tijolo aparente na Residência Rogério Ulyssea, também em Brasília. Contudo, diferentemente da primeira, nesta residência o uso do concreto se faz mais pre- sente, sobretudo na estrutura abobadada das lajes do primeiro pavimento e da cobertura, claramente identificadas também pelo lado externo.

O terceiro projeto pode ser considerado uma ode ao concreto armado e às soluções técnicas arroja- das advindas deste material. Na Residência José da Silva Netto (1973-1976), Lelé adota um partido com uma lógica construtiva simples, porém bas- tante sofisticado do ponto de vista da execução. O cálculo da estrutura envolvia pórticos e balanços que sustentavam uma grande laje atirantada nas vigas de cobertura da própria residência, elevada 5 metros do chão.

Lelé explora as possibilidades do concreto não como um desafio à sua capacidade profissional, como fizera em 1965 na Residência para Ministro de Estado1. No caso da residência oficial, o pro-

grama impessoal permitiu ao arquiteto conduzir o projeto na orientação brutalista de sua escolha. Já na residência Silva Netto, a solução adotada repre- sentou uma interpretação de um desejo claramente expresso pelo seu cliente e amigo: a vista desimpe- dida do Lago Paranoá.

1 Ver depoimento do arquiteto à p. 144.

O quarto e último projeto a ser analisado é re- presentativo de uma fase mais leve na arquitetura de Lelé, caracterizada pelo uso extensivo do aço como elemento estrutural e plástico. Empregada de forma pioneira durantes os anos da FAEC em Sal- vador (1985-1989), essa tecnologia foi a base de uma experiência subsequente bastante frutífera, o Centro de Tecnologia da Rede Sarah (1991), conti- nuada e aprimorada no Instituto Brasileiro de Tec- nologia da Habitat (2009).

As residências Roberto Pinho (Brasília, 2007) e João Santana (Porto Seguro, 1994) descendem diretamente dessa nova linguagem. Entretanto, o que se percebe ao comparar os dois projetos é que, dentro dessa nova expressão da arquitetura em aço, na casa de João Santana em Trancoso Lelé ainda encontra-se formalmente vinculado à estética dos hospitais da Rede Sarah. Enquanto na residência do Altiplano Leste o arquiteto demonstra maior li- berdade de criação e maturidade compositiva. Por esses motivos e pela facilidade de acesso, a Resi- dência Roberto Pinho foi escolhida para análise.

Uma importante orientação para as análises que se seguem foi o estudo realizado por Geoffrey Baker em seu livro Le Corbusier: uma análise da forma2.

Este, por sua vez, baseou-se na técnica analítica da tese de doutorado de Peter Eisenman, The For-

mal Basis of Modern Architecture (Universidade de Cambridge, 1963). Complementarmente, adotou-se também o modelo de análise empregado por Iñaki Ábalos em seu A boa-vida: visita guiada às casas da

modernidade, onde o autor parte de uma simpli- ficação do objeto (redução) para extrair suas ca-

2 BAKER, Geoffrey H. Le Corbusier: uma análise da forma. [tradução Alvamar Helena Lamparelli / revisão técnica Sylvia Ficher]. – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

racterísticas mais marcantes, como uma caricatura (arquétipo).

O meu estudo não tem a pretensão de se equi- parar à habilidade com que Ábalos discorre filoso- ficamente sobre suas sete casas, ou como Baker apresenta suas teorias aplicadas à obra de Le Cor- busier. No entanto, espera-se aqui contribuir para uma visão mais aprofundada de uma parte da pro- dução de Lelé que, por sua representatividade e co- erência, merece maior destaque dentro de sua obra: as casas. Em seu prefácio à 1ª edição (2003), Iñaki Ábalos assim se manifesta:

As visitas a casas, uma prática tão habitual entre arquitetos e estudantes, têm, ainda, uma virtude que as faz particularmente interessantes como a forma discursiva a se empregar. Ao realizá-las, os arquitetos, em grande medida, livram-se dos preconceitos impostos por sua formação. Ao visi- tar casas, o arquiteto torna-se usuário, passa a olhar através dos olhos do habitante, e assim adota uma atitude mais próxima à de uma pessoa qualquer, perdendo essa couraça que o domínio de uma disciplina cria, vencido pela força mesma da experiência real da casa, da domesticidade e da vida que ela contém. E essa é a atitude, a predis- posição que aqui se intentou induzir, ou provocar, através dessa forma literária, na certeza de que só a partir da desprofissionalização do olhar podem- os a aprender a enxergar com os nossos próprios olhos, e a mirar aquilo que realmente desejamos ver.3

3 ÁBALOS, Iñaki. A boa-vida: visita guiada às casas da moder- nidade. [tradução Alícia Duarte Penna]. – Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2008, p. 9.

Residência Aloysio Campos da Paz

No documento A casa na obra de João Filgueiras Lima, Lelé (páginas 180-185)