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Uma breve história da arquitetura residencial no Brasil

O lar deve ser o tesouro da vida.

Le Corbusier, 1942

O objetivo deste capítulo é situar historicamen- te a arquitetura residencial no Brasil, a partir da formação de um conceito moderno de morar até os dias atuais, passando por referências que remontam ao processo de evolução urbano-social que influi no programa da residência desde meados do século XIX. Trata-se de um resgate histórico da chama- da “casa de autor”, identificada por seus atributos funcionais, estéticos e simbólicos, os quais, segun- do Roberto Segre, vão evidenciar a personalidade,

o nível econômico e a dimensão da vida pública e privada do morador.1

Em meio a uma crescente e vigorosa urbaniza- ção dos grandes centros, estas casas vão se desta- car na paisagem urbana, não apenas por sua rele- vância ou de seus proprietários, mas especialmente pela contribuição de arquitetos e engenheiros que, a partir daquele momento, passavam a ter sua pro- dução individual reconhecida.

Nesse contexto, já no século XX, surgem as ca- sas projetadas por uma geração de arquitetos bra- sileiros ligados ao movimento moderno, no qual se insere João Filgueiras Lima. São eles responsáveis por um modo particular de pensar a arquitetura re- sidencial e suas relações com o contexto urbano no qual se insere, muitas vezes negando-o, outras fazendo deste uma extensão de seu espaço interno. Cabe aqui identificar a origem dessa produção e o significado encontrado por estes profissionais para promover o modern way of living.

1 Roberto Segre. Casas brasileiras. Brazilian houses. Rio de Ja- neiro: Viana & Mosley, 2006, p. 5.

Compreender os fatores que culminaram nesse “morar moderno” e as contribuições advindas de períodos anteriores é uma maneira de extirpar an- tigos julgamentos prematuros a respeito das habi- tações geradas no âmbito da arquitetura moderna, comumente taxada de impositiva e restritiva. Sob a ótica da produção residencial de alguns arquite- tos que contribuíram decisivamente para a conso- lidação de uma linguagem amplamente difundida no Brasil, referenciada até hoje pelos jovens ar- quitetos, espera-se extrair, a partir da análise de alguns exemplos paradigmáticos, os fundamentos e conceitos que tornaram esses projetos síntese de um pensamento que teve sua origem no idealismo social e no método de investigação próprios da mo- dernidade.

As questões abordadas aqui remetem ao dese- nho da casa enquanto instrumento de experimen- tação do arquiteto através de sua percepção da ci- dade, e da própria sociedade, no momento em que, ao realizar o projeto, o arquiteto inevitavelmente oscila entre o caráter excepcional de obra de arte e a criteriosa análise dos aspectos funcionais e cons- trutivos.

Para tanto, além de adotar a linha de investi- gação utilizada por Marlene Acayaba em seu estu- do sobre residências em São Paulo2 – a residência

como parte integrante da cidade, a casa e o lote e a solução formal –, serão aportadas à discussão casas emblemáticas do movimento moderno no Brasil, trazidas convenientemente à luz da análise junto às residências projetadas por João Filgueiras Lima. Essa produção, inexplorada até hoje pela historiografia da nossa arquitetura, se insere em um contexto próprio aduzido à última parte do

2 Marlene Milan Acayaba. Residências em São Paulo 1947- 1975. São Paulo: Projeto, 1986, p. 15.

capítulo, cujo conteúdo será apresentado em três momentos: •  Antecedentes de uma modernidade anunciada (2ª metade do séc. XIX – 1922); •  Modernidade heroica (1922 – 1960); •  Caminhos e descaminhos da modernidade (1960 – até o presente);

Trata-se aqui de abordar, sumariamente, o sur- gimento, consolidação e os desdobramentos do movimento moderno no Brasil, delineado a par- tir do estudo da casa como elemento-chave para compreender alguns valores e elementos tradicio- nalmente atribuídos à brasilidade encontrada em certas residências, questionada aqui enquanto atributo original e exclusivo de uma pretensa pré- -disposição cultural. Ao expor suas considerações acerca do assunto no prefácio de Arquitetura mo-

derna brasileira, Miguel Pereira assim se manifesta:

Isso nos levaria, afinal, ao debate, do impasse teórico da arquitetura brasileira, onde ainda paira intocável o mito da criatividade do arquiteto brasileiro como parâmetro maior de referência e julgamento de toda nossa arquitetura. A partir daí, a ideia do grande homem, do gênio, tem ali- mentado entre os arquitetos a falsa ideia de que a única saída é a produção de uma arquitetura voltada para seus valores plásticos, enquanto a barreira do subdesenvolvimento não for rompida. Assim se sacraliza uma profissão, assim são sacra- lizados os profissionais e suas obras.3

O que se vê, desde Warchavchik até Niemeyer, é uma interpretação, sobretudo no campo da habita- ção, de uma linguagem que se inicia com a absor-

3 Miguel Alves Pereira. In: Sylvia Ficher; Marlene Milan Acay- aba. Arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Projeto, 1982, p. 6.

ção do racionalismo de origem corbusiana em São Paulo (casa modernista, 1927) e que, mais tarde, passa a contribuir de forma autêntica e a responder às exigências ambientais locais (clima, relevo, ve- getação) com certa desenvoltura e graciosidade no Rio de Janeiro e posteriormente em outras partes do Brasil.

Contudo, a ideia de que os arquitetos responsá- veis pela afirmação do modernismo no Brasil dispu- nham de uma criatividade singular sem precedentes contraria uma visão da arquitetura entendida como

instrumento de emergência de uma sociedade me- lhor, onde o trabalho do arquiteto se identificaria como uma prefiguração do futuro.4

Não há como dissociar os princípios do raciona- lismo europeu, aclimatado no Brasil na década de 1920, de uma arquitetura voltada para uma mudan- ça social. Essa mudança sugerida e reforçada pela assimilação dos benefícios trazidos pela era da má- quina na Europa não encontraram correspondência

4 Miguel Alves Pereira. Idem, p. 7.

no estágio industrial em que se encontrava o país no primeiro quarto do século XX.

A partir de 1950, alguns profissionais se dedica- ram a rever o papel do arquiteto, cuja função, se- gundo Artigas, seria superar, através da criatividade,

as contradições da realidade social.5 Nos esforços de

compreensão da atividade específica do arquiteto no país, Sylvia Ficher e Marlene Acayaba apontam para os textos de Vilanova Artigas em Le Corbusier e

o Imperialismo (1951), Os Caminhos da Arquitetura

Moderna (1952) e O desenho (1967); e também de Sérgio Ferro em Arquitetura Nova (1967) e O cantei-

ro e o desenho (1979).

O objetivo deste capítulo não está na apuração das contradições do movimento moderno no Brasil. O seu interesse está nas casas projetadas no seio deste movimento, as quais, obviamente, não estão imunes às tais contradições. Resta saber, de fato, quais foram as contribuições deste período para a expressão arquitetônica nacional, construída mais na diversidade de modelos e formas que propria- mente na unidade de soluções.

Antecedentes de uma modernidade