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PERÍODO MAO: ENTRE A MOBILIZAÇÃO DE MASSAS, DE UM LADO, E O ESTADO E A ECONOMIA, DE OUTRO

2.1 COMPLEXIDADE SOCIAL

As concepções de sociedade especificamente asiática ou feudal foram empregadas nas divergências sobre o caráter da China. Além do esclarecimento teórico, o debate em torno do modo de produção na China implicava em distintas apreciações sobre a questão chinesa e diferentes estratégias revolucionárias.

Karl Marx debruçou-se sobre o estudo das sociedades pré-capitalistas, brevemente, com o objetivo de esclarecer seu pensamento sobre o longo desenvolvimento histórico, para que ele compreendesse as diversas formas sociais que existiram antes da dominação do capital. Nessa investigação, ele nunca empregou o conceito de escravismo e feudalismo para os grandes países asiáticos, inclusive a China. A característica decisiva nessas sociedades asiáticas não era a propriedade, ou seja, a sua ausência legal. O que chamava a atenção de Marx, como traço fundamental do despotismo oriental, era a auto- suficiência da comunidade rural. A produção e a geração de excedentes ocorriam em propriedades efetivamente comuns, em muitos casos, através do artesanato e da agricultura (MARX, 1986, p. 68-69). Na sociedade asiática, o déspota açambarcava uma parte do excedente, como tributo, porque o Estado representa a comunidade mais elevada do que a aldeia.

A combinação da pequena agricultura com a manufatura doméstica constituía a estrutura econômica da sociedade chinesa, até mesmo, em meados do século XIX. Isso ilustra a observação de Marx, em 1859, sobre a persistência, ainda, dessa estrutura econômica como o principal obstáculo para uma maior expansão da comercialização das manufaturas, sobretudo inglesas, apesar do acordo de livre comércio de 184234. As estatísticas das trocas

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inglesas, por exemplo, entre 1849 e 1857, mostravam essas dificuldades de ampliação das vendas de manufaturas para o mercado chinês.

Marx (1859) examinou relatórios de representantes do Império Britânico, onde se lamenta que os hábitos na China são tão hereditários, que os chineses vestem apenas o tipo de roupa que seus pais já usaram e só na quantidade mínima necessária. Conforme um dos relatórios, só a China, no mundo, oferecia uma situação em que em cada casa, no campo, havia um tear, de modo que, depois da colheita, a família se juntava para produzir os tecidos necessários, levando o excedente para vender ao comerciante na cidade. O camponês era, ao mesmo tempo, agricultor e artesão, explica um representante britânico. Marx esclareceu que os ingleses não tinham ainda conseguido usar seu poder para desestruturar a forma de propriedade da terra vigente na China, como já tinham desmantelado as comunidades rurais auto-suficientes na Índ ia35.

Bryan S. Turner (2001, p. 350) relembra que Karl A. Wittfogel descrevia a China, da dinastia dos Song, como uma ‘sociedade hidráulica’, recorrendo ao conceito webberiano de burocracia patrimonial. O Estado patrimonialista se legitimava pela necessidade da administração centralizada da irrigação, preservando a viabilidade e estabilidade da estrutura social chinesa assentada nas pequenas comunidades rurais.

Há uma certa vantagem no emprego do conceito de sociedade asiática como alternativa aos moldes estreitos das noções de escravismo e feudalismo. Mas, Turner (2001, p. 350-1) aponta, ao mesmo tempo, alguns problemas. O modo de produção asiático é um conceito aplicado para sociedades diversas como, por exemplo, a Rússia czarista e a China dos Song. Ademais, se as aldeias são auto-suficientes, então como se justifica um Estado centralizado? Se, para o materialismo histórico, são as relações de produção que determinam as forças produtivas, então como é possível aceitar que o fator tecnológico, dado pelos sistemas de irrigação, seja a explicação para a sociedade asiática? Se não há luta de classes, então o caráter do Estado decorre de conquistas militares e funções públicas (obras de

35 Cerca de seis anos antes, porém, em um outro artigo, Marx (1853) apresentava uma interpretação diferente: as manufaturas

inglesas já tinham abalado a estrutura econômica rural chinesa. De fato, no artigo A revolução na China e na Europa, também publicado no New York Daily Tribune, em 14 de julho de 1853, Marx analisava que: “No passado, depois de ter sido praticamente nula, a importação de algodões ingleses e, em menor grau, de lãs inglesas, aumentou rapidamente depois de 1833 – ano em que o monopólio do comércio com a China passou da Companhia das Índias Orientais para o comércio privado – e mais rapidamente ainda depois de 1840, ano em que outras nações, nomeadamente a nossa (Estados Unidos), conseguiram por sua vez participar do comércio com a China. Esta penetração da mercadoria estrangeira provocou no artesanato local os mesmos efeitos que antes tinha provocado na Ásia Menor, na Pérsia e nas Índias. Na China, foram os fiadores e os tecelões que mais sofreram com a concorrência estrangeira, e, como decorrência, toda a comunidade foi abalada”.

irrigação)? Para Turner, o conceito de modo de produção asiático reforça uma visão do dinamismo europeu em contraposição às insuficiências da sociedade asiática, que não contava, por exemplo, com a instituição da propriedade privada.

Entretanto, a história humana, em geral, está associada, inegavelmente, ao desenvolvimento das forças produtivas, sem prejuízo da influência dos mais diversos fatores políticos e culturais. Não se deve conceber as relações de produção em si mesmas, determinantes unilateralmente, como se fossem dissociadas das forças produtivas, como poderia sugerir uma leitura da exposição acima de Turner. Ademais, o materialismo histórico é uma teoria ampla, geral, uma visão de longo prazo, para definir os modos de produção, sem ignorar as circunstâncias acidentais na determinação de formas específicas de episódios históricos. Sem pretender explicar, minuciosamente, através de um modelo estrutural e lógico cada um dos detalhes da vida social, cada uma das especificidades de uma formação sócio- econômica. William H. Shaw (2001, p. 263) adota uma posição exagerada e vê, com cautela extremada, o emprego do materialismo histórico para explicar uma determinada sociedade. Esse olhar, para uma particular formação, implicaria em inevitáveis abstrações. Mas isso não invalida, no caso, a análise histórico-estrutural e a riqueza de sua perspectiva ampla. Assim, é claro que o materialismo histórico, depurado de escolhos eurocentristas, poderia ser aplicado no caso da China, sem transplantar explicações postiças e sem pretensões descabidas.

A despeito disso, a polêmica sobre a China é infindável, mesmo entre os que se reivindicam marxistas. A análise da estrutura de classes na China, o esclarecimento sobre a formação sócio-econômica chinesa e a compreensão sobre sua história e suas perspectivas forneciam elementos para o debate sobre a estratégia revolucionária.

O papel dos camponeses como principal força social na Revolução chinesa esteve associado às suas condições de vida e à sua presença largamente majoritária na estrutura de classes da sociedade. A China, na primeira metade do século XX, era um país economicamente atrasado, com escassa industrialização. O proletariado era numericamente muito pequeno e dificilmente poderia ser a vanguarda da revolução nas condições concretas da China nas décadas de 20 a 40 no século passado. A estrutura de classes consistia nos trabalhadores urbanos, burguesia, proprietários de terra, camponeses, além de diversos estratos e grupos sociais como artesãos, burocratas, militares, monges, bandidos e vagabundos rurais (SCHRAM, 2001, p. 231). Os proprietários rurais eram minoritários, mas concentravam grande poder em suas mãos. Havia camponeses ricos, pobres, sem terra. A burguesia

compradora era associada ou estava a serviço das firmas capitalistas 36. Os compradores beneficiavam-se da ocupação de importantes portos e cidades da China por potências ocidentais e pelo Japão.

Para Stuart R. Schram (2001, p. 231), a mescla de estratos advindos de distintas épocas históricas e o impacto das influências tanto autóctones quanto estrangeiras tornaram complexa a estrutura da sociedade chinesa. Essa realidade intricada se expressou, por exemplo, na experiência dos comunistas chineses em 1927-8, quando se descobriu que as zonas libertadas pela guerrilha camponesa passavam por processos complexos, escapando à nítida linha divisória da luta de classes. Assim, algumas aldeias, nessas áreas rurais soviéticas, entravam em confronto com outras aldeias por motivos como divergências tradicionais entre clãs (HOBSBAWN, 1995, p. 87).

A análise sobre a época em que se vivia nos anos 1920, examinando temas como crise do capitalismo ou estabilização e retomada do capitalismo organizado (Estado, monopólios, capital financeiro), em combinação com o debate da complexidade estrutural chinesa, desafiava os formuladores da estratégia revolucionária. A Internacional Comunista (IC ou Comintern), enquanto existiu, esteve envolvida profundamente com a questão chinesa. Não obstante prováveis erros importantes na questão chinesa, a IC também exerceu influência positiva no processo revolucio nário chinês, desde sua contribuição política e ideológica direta na própria fundação do Partido Comunista, em 1921.

Na União Soviética e na Internacional, houve grande debate, sobretudo na década de 1920, a respeito do modo de produção da China contemporânea: asiático, feudal ou capitalista. Todavia, a linha dominante na IC era a caracterização da sociedade chinesa como feudal ou semifeudal (e semicolonial). Para a Comintern, a revolução seria democrático- burguesa, os alvos eram os latifundiários e as potências imperialistas, ocupantes da China. A liderança da revolução cabia à burguesia nacional. Assim, justificava-se a aliança entre o PCCh e o Guomidang, como expressão da política de unidade do “bloco das quatro classes”. Para Bukharin e Stálin, a burguesia, a pequena-burguesia, os camponeses e o proletariado constituíam a base social da estratégia de frente única na luta nacional.

36 Comprador é uma palavra da língua portuguesa que foi empregada para designar os servidores das empresas comerciais

estrangeiras ou os próprios mercadores chineses, ocupados com comércio exterior. É uma denominação que denuncia a submissão aos interesses estrangeiros, em detrimento da unidade e soberania da nação.

Na avaliação de Trotsky, a China, apesar do atraso, não tinha seu processo econômico e sua realidade social incompatíveis, no quadro do sistema capitalista mundial, com uma estratégia revolucionária mais voltada para as cidades e para o proletariado. Gallissot (1987, p. 261) verifica que Trotsky também aplicou fórmulas esquemáticas classistas para a questão chinesa. Assim, Trotsky raciocinava sobre o pólo burguês, vinculado ao imperialismo, e o pólo proletário, negando a potencialidade revolucionária dos camponeses, devido a seu isolamento histórico internacional e a suas condições de vida.

A interpretação da China feita por Mao Zedong representaria uma visão mais complexa, heterodoxa e voltada para a definição dos aspectos práticos e específicos da revolução chinesa (SOFRI, 1987, p. 366-370). Mao usava os termos ‘feudal’ e ‘semifeudal’ mais livremente para se referir a atraso, a reacionários, a setores vinculados a terra, sem uma preocupação com a compreensão ortodoxa desses conceitos. Nessa caracterização complexa, mas consistente no caso da China, Mao destacava a aliança entre o imperialismo, os grandes proprietários rurais, a burguesia compradora e os burocratas dos monopólios econômicos do Estado. A burguesia compradora era, às vezes, também chamada de burocrática. Ela atuava nos setores da indústria, bancos e comércios e tinha laços orgânicos com as potências estrangeiras, servindo como representantes, sócios e auxiliares do capital estrangeiro na China, sobretudo nas grandes cidades portuárias, como Shangai. A burguesia nacional, com empresários de porte médio, em dificuldades perante a concorrência estrangeira, era portadora de certo sentimento nacionalista. A pequena-burguesia era constituída por empresários (pequenos e médios), intelectuais e profissionais e deveria ser atraída para a causa da libertação nacional.

A complexidade da sociedade chinesa tornou-se ainda mais acentuada em razão dos efeitos econômicos, sociais e políticos da dominação estrangeira. Desde a primeira guerra do ópio37, na primeira metade do século XIX, o Estado chinês foi submetido à ingerência imperialista. A China passava, cada vez mais, a se caracterizar como uma semicolônia. Houve invasões militares, comerciais e religiosas. Com a primeira guerra do ópio, os fabricantes ingleses esfregavam as mãos, ansiosos, com o suposto tamanho do mercado chinês: “Temos 300 milhões de pessoas para vestir” (MARX, 1988 c, p. 291, adendo de Friedrich Engels).

37 “A primeira guerra do ópio (1839/42), que foi uma guerra de agressão da Inglaterra contra a China, deveria abrir o mercado

chinês ao comércio inglês. Com ela começou a transformação da China num país semicolonial ” (MARX, 1988c, p. 291, nota 6*, nota da Edição alemã, grifo nosso).