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Pensamento Mao em Economia: Um Plano é Uma Ideologia Primeiro, o Plano, depois os Preços

PERÍODO MAO: ENTRE A MOBILIZAÇÃO DE MASSAS, DE UM LADO, E O ESTADO E A ECONOMIA, DE OUTRO

2.4 A VONTADE DAS MASSAS PARA CONSTRUIR A ECONOMIA E O SOCIALISMO

2.4.5 Pensamento Mao em Economia: Um Plano é Uma Ideologia Primeiro, o Plano, depois os Preços

Na sua crítica ao Manual de Economia Política da URSS, em 1960, Mao Zedong (1975, p. 71) afirmou que “um plano é uma ideologia”. Ele explicava que a ideologia interage com a realidade, e, por isso, os planos não são perfeitos e auto-suficientes, não podem evitar a espontaneidade e eventuais erros. Assim, Mao fez ressalvas sobre as certezas e suficiências de um plano na concepção dos soviéticos. A planificação dependeria de um processo de gradual conhecimento da realidade, com percepções que poderiam ser imperfeitas, com acertos e erros, com o aprendizado pela experiência prática. A própria compreensão do socialismo seria gradual e dependeria da prática. Aqui, vê-se a ênfase que Mao, envolvido nas tarefas dirigentes, depositava na prática, o que não significava menosprezo, simplesmente, pela teoria. Por exemplo, a prática, no Estado chinês, demonstraria que teriam sido errados os aspectos dos planos (que são ideologias) de industrialização que não consideraram importante a criação de novos empreendimentos industriais na região costeira até 1957. Esse fato teria limitado uma maior aceleração do ritmo de crescimento econômico na China.

Mao (1975, p. 11), ao examinar criticamente o livro de Stálin Problemas

econômicos do socialismo na URSS, ressaltou, inicialmente, a desatenção à agricultura e à

indústria leve46. O plano soviético “caminharia sobre uma perna apenas”. Era só a “perna” da indústria pesada em menosprezo da indústria leve. A “perna” dos interesses do povo teria sido

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Acerca da obra referenciada, os editores fazem algumas observações prévias. Assim, o ‘Texto I: sobre os Problemas

Económicos del socialismo em la URSS, de Stalin’ é resultado das anotações de um discurso de Mao, em Cheng Chow, em

novembro de 1958. Essas anotações foram feitas por uma só pessoa e, por isso, são incompletas, podem conter erros. No caso do ‘Texto II: notas sobre Problemas econômicos del socialismo em la URSS’, trata-se de uma redação (notas de estudo) de Mao, feita provavelmente em 1959. O ‘Texto III: notas de lectura sobre o Manual de economía política de la URSS’ foi redigido por Mao em 1960, mas talvez contenha algumas passagens escritas em 1961 e 1962. Todos os três textos fazem parte de uma antologia de anotações de Mao que foi editada pelos Guardas Vermelhos, apenas para uso interno, em dois volumes, sendo o primeiro de 1967 e o segundo de 1969. (MAO, 1975, p. 9 e 10).

relegada ao longo prazo, em detrimento dos interesses imediatos das massas. “Stálin só destaca a tecnologia e os quadros técnicos. Não quer senão a técnica e os quadros. Ignora a política e as massas”. Contudo, mais tarde, ao comentar o Manual de Economia Política da

URSS, Mao (1975, p. 71) assinalou que a escassez geral de técnicos, sentida no

desenvolvimento da economia, “nos leva a criar um maior número de escolas a fim de formar mais quadros”. Os soviéticos adotavam sistemas e regulamentos impositivos sobre as pessoas, mas a planificação deveria envo lver todo mundo, todo o partido, não se restringindo à Comissão do Plano ou da Comissão Econômica.

O plano chinês, supostamente, expressaria melhor um desenvolvimento planificado e equilibrado. Em contraste, “(n)a URSS não há desenvolvimento simultâneo das empresas grandes, médias e pequenas, tampouco desenvolvimento simultâneo das regiões e do poder central, ou da indústria e da agricultura” (MAO, 1975, p. 21).

O dirigente chinês reconhecia que, na China, em 1959, havia produção mercantil e troca de mercadorias, mas, ao lado da lei do valor, havia planificação e primazia da política e do ativismo das massas (MAO, 1975, p. 18; 29). Para Mao, a lei do valor não era o regulador decisivo na economia chinesa. Os reguladores seriam a planificação e o princípio da ‘política no posto de comando’. “(P)rimeiro o plano, depois os preços” (ibidem, p. 83). Por exemplo, o aumento dos preços incentivou positivamente a criação de porcos, mas essa pecuária em grande escala se desenvolveu adstrita à planificação. Mao assinalou sua divergência com a liberdade ampla nos mercados da produção das cooperativas na URSS. Em contraste, o Estado chinês deveria limitar as margens de variações dos preços nos mercados cooperativos.

A despeito das críticas que a planificação soviética requer, a concepção de Mao sobre planificação revelou uma faceta de voluntarismo. É por isso que ele tinha a necessidade de definir o plano como ideologia. É claro que não só o plano, como o próprio Estado, é parte da superestrutura, tem a ver com ideologia, consciência, organização jurídica etc. É evidente que ideologia não é sinônimo de voluntarismo. Todavia, é certo, também, que o plano não deve subestimar as condições concretas, os limites objetivos da realidade, as possibilidades reais da economia. O plano não pode ser apenas vontade. Isso é tanto mais verdade para o caso da China, em razão do seu atraso relativo e do breve prazo decorrido da suposta tentativa de desenvolvimento socialista.

Jack Gray (2006, p. 661), contudo, rebateu a acusação de que Mao seria um mero ideólogo, no sentido da carga pejorativa que a palavra ideologia assumiu hoje no mundo. Nesse sentido, Mao teria redigido seus textos em linguagem não ideológica. Suas estratégias não eram aplicação cega de princípios teóricos. Colocando-se no lugar de Mao, o que poderia ser feito, nas condições econômicas e sociais da China, sem dispor de razoáveis fundos financeiros, com a grande massa de trabalho redundante no campo e o desafio da pobreza? Assim, para Gray, as estratégias de Mao, para gerar ocupação para as grandes massas, foram pragmáticas, em vez de obtusa imposição ideológica.

Não obstante a justeza da argumentação de Gray, Mao necessitou de um certo tipo de subordinação do plano à ‘política no posto de comando’ e à luta ideológica. Ele necessitou satisfazer sua idéia de que o homem (pela ideologia) pode “remover montanhas”, para satisfazer uma elevada motivação e participação das massas nos marcos da aceleração da construção socialista na China. Partindo da premissa correta de que o desenvolvimento econômico depara-se o tempo todo com tensões, novos desequilíbrios, Mao queria uma certa forma de vínculo entre plano e audácia. “(S)e nos mostramos demasiado prudentes e excluímos toda audácia, se termina por destruir o desenvolvimento equilibrado” (MAO, 1975, p. 71).

Foi justa a discordância de Mao em relação ao manual soviético, onde se cria que, na economia socialista, uma suposta compreensão adequada da lei do valor evitaria a anarquia da produção e o desperdício. O líder chinês divergia dessa confiança exagerada no papel da lei do valor para evitar crises no socialismo. Entretanto, a partir daí, ele cometeu seus próprios equívocos importantes. Mao afirmava que não havia crises na sociedade socialista, o que não faz sentido, considerando todos os intricados problemas do período de transição, como a própria experiência mostrou na China. O que Mao argumentava para justificar, supostamente, a ausência de crises na economia socialista? “...(D)ita sociedade tem um sistema de propriedade socia lista, uma lei fundamental do socialismo, uma produção e uma distribuição planificadas, na escala de todo o país, e que, por outra parte, não existe, em dita sociedade, a livre concorrência, situações anarquizantes etc” (MAO, 1975, p. 84). Essas condições seriam necessárias, mas não seriam suficientes para evitar crises. Amplos e diversos outros fatores internos (burocratismo, privilégios, desenvolvimento científico e tecnológico, condições de vida das massas trabalhadoras, legalidade e democracia socialistas etc.) e externos (imperialismo, mercado mundial, internacionalismo proletário etc.) podem se combinar e

influenciar, direta ou indiretamente, a eclosão de impasses, limites, bloqueios e crises possíveis no socialismo real.

Mas o que ocorreu concretamente com a planificação na China? A planificação, com o primeiro plano qüinqüenal, de 1953 a 1957, seguiu o modelo soviético, com centralização das decisões e prioridade dos investimentos para a indústria pesada em face da agricultura e da indústria leve. Através de diversas formas, a agricultura deu uma grande contribuição ao financiamento da industrialização, mas a renda familiar camponesa caiu mais de 20% entre 1953 e 1957 (POMAR, 2003, p. 90). Globalmente, a economia recuperou-se e o plano funcionou razoavelmente bem.

Uma exposição sintética e sistemática da concepção de Mao (1977b) sobre a construção econômica (além de outras questões étnicas, políticas etc) do socialismo na China encontra-se no seu discurso Sobre as dez grandes relações, pronunciado em reunião do Comitê Central, em 25 de abril de 195647. A China, ao contrário da União Soviética e dos países do leste europeu, estaria, simultaneamente, mantendo a prioridade da indústria pesada, indispensável para produzir os meios de produção, e a atenção para a atividade agrícola e para a manufatura de bens de consumo. Assim, a China estaria produzindo grande quantidade de bens necessários ao consumo das massas e preservando a estabilidade dos preços. Mas, ainda assim, era preciso aumentar a parcela de investimentos na agricultura e na indústria leve em relação à indústria pesada, que, porém, continuaria prioritária. Daí, haveria maior e melhor abastecimento do povo, aceleração da acumulação de fundos (sobretudo na agricultura e indústria leve) e avanço na indústria dos meios de produção. Esse tipo de raciocínio de Mao seria um caso de simples paradoxo ou seria um exemplo de uma complexa visão dialética? Na prática, algumas proposições de Mao tornaram-se experiências com resultados negativos.

Na primeira grande relação, Mao (1977b, p. 310-1) julgava que o método de desenvolver a indústria pesada com um investimento ‘algo menor’ da agricultura e da indústria leve resultaria em maior êxito no setor de meios de produção somente a curto prazo. Em contraste, o investimento ‘algo maior’, nas duas referidas atividades resultaria, no longo

47 O conteúdo do discurso, segundo Mao, originou-se das discussões no Comitê Central sobre os relatórios de trinta e quatro

departamentos centrais da indústria, agricultura, transporte, comércio e finanças. Na verdade, cabe acrescentar que Mao elaborou esse discurso, sob o impacto do Informe de Kruschev, no XX Congresso do PCUS, em fevereiro daquele ano. O líder chinês, embora discordasse das críticas políticas a Stálin, compreendia a importância de aspectos econômicos levantados por Kruschev (problemas na agricultura, no consumo etc.).

prazo, em um ritmo maior de crescimento da indústria pesada, que, ainda, disporia da sólida base da satisfação das necessidades de subsistência do povo.

Não obstante seu otimismo com a orientação maoísta e a evolução da China, Francis Audrey (p. 201-2) observa, acertadamente, que

[A] linha do desenvolvimento simultâneo e a recusa dos investimentos estrangeiros, embora se justifiquem a longo prazo, tem, todavia, um inconveniente sensível: a capacidade global de investimento permanece limitada demais com relação à enorme dimensão das necessidades e das potencialidades da China.

Sob essas circunstâncias, o inevitável típico ritmo mais lento da agricultura pesaria sobre o desempenho do conjunto da economia chinesa. Nesses termos, um elevado desenvolvimento seria uma meta para um futuro longínquo. Enquanto o futuro não chegasse, tudo estaria dependendo de uma moral coletiva, que não poderia cessar, limitando o consumo e viabilizando a produção. A taxa de crescimento demográfico avizinhava-se da taxa de crescimento da produção agrícola básica, alertava Audrey.

Nas relações entre o Estado, as unidades produtoras e as massas trabalhadoras, Mao (1977b, p. 314-7), por um lado, criticou a indiferença burocrática perante as necessidades e as condições de vidas dos operários, e, por outro, propôs, convencionalmente, a melhoria salarial em razão do crescimento da produtividade do trabalho e avanço da economia nacional. Mao ressaltou o pouco conhecimento e experiência do Estado chinês para lidar com o problema de estabelecer a independência de cada fábrica, com algumas atribuições e com a retenção de certa parcela dos lucros, por um lado, e para manter a direção econômica unificada, pelos go vernos central, provincial, ou municipal, por outro.

Quanto à agricultura, Mao criticou o sistema de entregas obrigatórias de cereais ao Estado, na União Soviética, porque se açambarcava uma quantidade exagerada da produção e pagavam preços muito baixos. Isso prejudicava os que trabalhavam no campo e cortava o estímulo para o aumento da produção. Na China, ao contrário, deveria haver uma política favorável, simultaneamente, aos interesses estatais e dos camponeses: imposto agrícola baixo, intercâmbio com valores equivalentes ou quase equivalentes dos produtos industriais e agrícolas; preços normais na aquisição dos cereais para estoques, sem perdas para camponeses etc. Deveriam ser adotadas medidas absolutamente óbvias sobre as cooperativas: porcentagens apropriadas (o que é apropriada) das porcentagens das rendas entre Estado,

cooperativa e camponeses; a preservação dos recursos para a produção, administração e bem- estar público; evitar perdas na gestão dos gastos; não exagerar nos volumes dos fundos de acumulação coletiva e de bem-estar público. Além disso, propôs-se que as rendas de 90% dos membros da cooperativa fossem aumentadas a cada ano, a depender da ausência de problemas climáticos e do incremento da produção.

Sobre as relações entre as autoridades centrais e locais, Mao (1977b, p. 317-320) repisou noções extremamente genéricas. É evidente que deveria haver cooperação entre os níveis de governo no desenvolvimento da indústria (com maiores responsabilidades do governo central) e da agricultura e comé rcio (com mais atribuições para as autoridades locais). Assim, propôs que os Ministérios escutassem as autoridades locais, em vez de imporem suas ordens aos seus correspondentes departamentos provinciais e municipais. Embora o poder legislativo fosse uma instância centralizada, as autoridades locais poderiam elaborar normas e regulamentos, respeitando as diretivas centrais. Voltando-se para os interesses do país, a ‘luta por poderes’ não era divisionista, nem expressão de localismo. As relações entre as autoridades centrais e locais e entre as próprias instâncias locais (províncias e municípios) seriam presididas pelo princípio do interesse geral, da ajuda mútua e das concessões recíprocas.

Em 1957, Mao (2003c, p. 83) reconheceu que, nas empresas mistas (estatal e privadas) da indústria e do comércio, havia exploração do trabalho e os capitalistas associados recebiam dividendos. Mantinha-se, como semi-socialista, uma parte das cooperativas agrícolas e das cooperativas de produção manufatureira. A parte socia lista era composta por unidades de produção que tinham a propriedade de todo o povo e a propriedade coletiva. Havia imperfeição nas relações de produção. Manifestava-se a simultaneidade de consonância, em algumas partes, em certos setores, e contradição, em outras partes, em outros setores, entre as relações de produção e as forças produtivas.