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O SOCIALISMO PERANTE O DESAFIO DO MERCADO

1.2 SOCIALISMO EVOLUCIONÁRIO

Eduard Bernstein ganhou fama como um iniciador da revisão de algumas idéias de Marx e Engels e de membros da II Internacional Socia lista. Ele questionou a unidade, a

coerência e a aderência à realidade de algumas teses socialistas, embora Bernstein ainda se reafirmasse filiado ao socialismo marxista, já na sua versão evolucionária. Ele se bateu, no seu entender, contra “o modo utópico de pensamento da teoria socialista” (1997a). Entretanto, ele não respaldou a acusação de determinismo lançada contra a concepção marxista da história (1997b, p.41).

Sobre alguns aspectos decorrentes da teoria econômica elaborada por Marx, Bernstein critica a insuficiência do mecanismo da exploração mediante a mais-valia, para assegurar “base científica para o socialismo ou comunismo”. Assim, ele explica que há trabalhadores em melhores condições em setores de alta taxa de mais- valia, enquanto outros suportam condições péssimas em setores de baixa taxa de mais valia. Não se confirma a agudização da polarização entre os extremos de uma pequena minoria proprietária e uma crescente maioria de explorados e pobres. Bernstein (1997b, p. 56) verifica que, na distribuição da riqueza, “o número de acionistas e o volume médio da detenção de títulos têm crescido rapidamente”; e é “óbvio que nem todos os acionistas merecem o nome de capitalistas”.

Bernstein (1997a, p. 24) contesta, corretamente, a tese do breve colapso do capitalismo. Entretanto, ele exagera os limites, os atenuantes e a brevidade das crises, e menospreza a anarquia da produção. Rosa Luxemburgo (1970, p. 72-73) cita o “problema fulcral da anarquia capitalista” para criticar a negação de Bernstein sobre as grandes crises gerais. Luxemburgo raciocina que o próprio mecanismo do mercado “provoca automaticamente a expansão monstruosa dessa anarquia – até o afundamento do sistema”.

Para Bernstein (1997b, p. 82), o sistema de crédito reduziu as contradições econômicas e passou a ter uma posição inferiorizada na responsabilidade pelas crises. Mas, se deslocarmos nossa visão para a realidade financeira atual, essa argumentação de Bernstein torna-se extremamente débil. Voltando os olhos para a atualidade, vê-se, como se sabe, que a hipertrofia e a autonomia relativa da esfera financeira, englobando e superando o crédito bancário, gerou, nas últimas três décadas, um aumento da típica instabilidade da economia capitalista. Isso foi atestado pelos efeitos do fim da conversibilidade do dólar ao ouro, em 1971; pelas conseqüências da crise da dívida externa nos anos 1980, na América Latina; e pelos distúrbios dos recentes episódios financeiros, a partir do México, em 1994-95, até o

crash da Bolsa Nasdaq em 2001.

Bernstein (1997b, p. 45-46) reconheceu que algumas transformações descritas por Marx e Engels confirmaram-se, “vieram a acontecer”, mas diante de outros fatos houve muita

insuficiência teórica e “não faltam contradições nos seus escritos [de Marx e Engels]”. Assim, Bernstein insurgiu-se contra o marxismo vulgar que, ao seu ver, não aceitava a crítica, as mudanças e o desenvolvimento teórico do socialismo marxista.

1.2.1 A Marcha Natural da Ampliação da Riqueza

Na verdade, o próprio Bernstein inaugurou uma outra vertente de vulgata do socialismo. Exatamente nesta nova concepção de marxismo vulgar explicitou-se o economicismo e o fatalismo presentes na idéia de que o socialismo é impossível sem uma etapa prévia de um desenvolvimento pleno, completo e acabado das forças produtivas no capitalismo. Tomou-se uma premissa correta, ou seja, a necessidade de desenvolvimento das forças produtivas, modernização produtiva, grande produção, ampliação da riqueza social em capacidade de satisfação das necessidades sociais. Esse foi um passo, porém, para a operação de exagerar unilateralmente essa condição, absolutizando-a, tornando-a inalcançável. A partir daí, ignoraram-se as mudanças na estratégia das revoluções trazidas pela emergência do imperialismo. Abstrairam-se as crises do capitalismo. No fundo desse evolucionismo, abordavam-se as leis sociais como leis naturais, lei de um evolucionismo darwiniano, longo, objetivo.

Para Bernstein, voltando a Marx, a expansão das grandes empresas capitalistas na indústria e na agricultura é uma condição preliminar da realização do socialismo. É óbvio que essa centralização capitalista da produção é muito importante. Bernstein, contudo, fez certo inventário do ainda limitado número de grandes empresas nos países europeus, em sua época, como na Alemanha, concluindo daí, dessas circunstâncias, a impossibilidade, em termos gerais e absolutos, de gerência econômica estatal no socialismo (1997b., p. 62-74). Assim, conforme essa ótica, o melhor que se faz é deixar o capital realizar sua tarefa de centralizar, cada vez mais, a produção, e, por conseguinte, a gerência, promovendo eficazmente a evolução natural para o socialismo.

Sobre os evidentes limites da administração econômica pelo Estado, Bernstein (1997b, p. 90) exclamou:

Que abundância de critério, de conhecimento prático, de talento para a administração, deve um governo ou uma assembléia nacional ter ao seu dispor para poder exercer a gerência suprema ou o controle de tão gigantesco organismo!

Porém, Bernstein, na verdade, subestimou o processo de concentração e centralização dos capitais. Ele deteve-se demasiadamente na quantidade de empresas pequenas e médias dentro do universo de firmas de todos os setores econômicos e restringiu- se exageradamente ao número de trabalhadores como critério de definição do porte de uma empresa. Ignorou o peso das grandes empresas na mobilização de capitais, na produção, nas vendas, no consumo de energia. Assim, ele não colocou em relevo a tendência, já em andamento, de constituição de grandes empresas. Não compreendeu os movimentos iniciais da diferenciação na composição da estrutura produtiva entre a Inglaterra, com predominância das empresas médias, e os Estados Unidos e a Alemanha, onde começavam a surgir associações, fusões, cartéis, trustes de empresas.

O propósito de Bernstein (1997b, p. 74) foi insistir na persistência de firmas médias, com repercussões na importância da chamada classe média na estrutura social. Dessa forma, Bernstein secundarizou as mudanças estruturais, com os monopólios, com o capital financeiro, com o acirramento das contradições entre as grandes potências, com a perspectiva de guerra. Ele menosprezou o fenômeno da emergência do imperialismo e seus efeitos sobre a estratégia da luta pelo socialismo. Em outro extremo, na análise teórica marxista, Rudolf Hilferding (1985, p. 344) chegava a afirmar que bastaria estatizar os seis maiores bancos berlinenses para se conquistar o controle dos principais setores da grande indústria.

A polêmica entre os problemas do ‘movimento e do fim’, na causa socialista, envolveu autores como Bernstein e Luxemburgo. O movimento das reformas levaria automaticamente ao fim da instauração do socialismo? Para Luxemburgo (1970, p. 96), as teses de Bernstein “querem suprimir os abusos do capitalismo, mas não o capitalismo”. No entanto, Luxemburgo (ibid., p. 9) considerava indispensável a luta cotidiana, dentro do próprio capitalismo. Ela afirmava que essas reformas resultariam em melhoria das condições de vida dos trabalhadores, em instituições democráticas, e iniciariam a classe proletária na luta pelo socialismo. A reforma social seria o meio para o objetivo final da conquista do poder político e da abolição do sistema salarial. A revolução social seria o fim buscado. Já Bernstein (1997a, p. 22), por sua vez, era categórico na defesa do evolucionismo:

Incapaz de acreditar, de todo, em finalidades, não posso crer num objetivo final do socialismo. Mas creio firmemente no movimento socialista, na marcha incessante das classes trabalhadoras, que devem obter, passo a passo, a sua emancipação pela transformação da sociedade, do domínio de uma oligarquia de proprietários comerciais da terra em uma democracia real que, em todos os setores, seja guiada pelos interesses daqueles que trabalham e criam.

Bernstein (1997b, p. 87-91) definia o socialismo como uma ordem social baseada na associação, jurídica e economicamente. Ele apontava, alegando a teoria marxista, duas condições preliminares para a implantação do socialismo: centralização da produção em grandes empresas e a conquista do poder político pelo proletariado. Como visto acima, esse autor negava a satisfação da primeira condição, na sua época, enfatizando a impossibilidade administrativa e o inviável gigantismo gerencial por parte do Estado à frente da direção de imensa quantidade de empresas pequenas e médias, e mesmo no comando “só das empresas maiores”. Sobre a segunda condição, esse pensador alemão enfatizava as diferenciações reais de trabalho e de vida entre os trabalhadores, indagava sobre o conceito de proletariado e questionava sobre o desejo do socialismo e menos ainda de revolução por parte das “classes proletárias industriais”, mesmo daqueles eleitores do partido socialista (ibid., p. 91-94).

A referida associação, como definição de socialismo, consistia na adoção de (empresas) cooperativas com o objetivo de organizar a produção, escapando à inviabilidade da intervenção e gerenciamento estatal ou, até mesmo, de órgãos governamentais municipais e locais (BERNSTEIN, 1997b, p. 94-109). Bernstein (ibid., p.101) recomendava deixar intocada a forma de organização empresarial, o que implicitamente significa a propriedade privada burguesa preservada, onde a apropriação estatal ou a criação da cooperativa mostrem- se ineficientes. Esse autor retomou o fio da viabilidade gerencial, afirmando que nas grandes empresas industriais seria inevitável a coexistência entre a adoção da forma de associação cooperativa de todos os seus empregados, por um lado, e a indispensável gerência não- socializada e autônoma em relação a esses próprios empregados, por outro lado.

O líder alemão reconhecia as dificuldades e fracassos do movimento cooperativo, o conflito entre a busca de lucros das cooperativas de produção e os interesses da comunidade (consumidores), a hierarquia interna resultante do crescimento do porte da cooperativa, a atração pela distribuição dos dividendos da cooperativa etc. Mas ele festejava os avanços das cooperativas na Inglaterra. Ademais, argumentava que, para sair do capitalismo e construir o socialismo, a associa ção cooperativa, pelas suas influências ainda burguesas, seria a forma mais acessível, mais fácil, mais simples, em vez da expropriação estatal e organização econômica socializada.

Entretanto, a crítica principal às cooperativas consistia na sua tendência à degeneração como empresas capitalistas de fato. Essa crítica mostrou-se acertada, no geral, no decorrer do tempo. A despeito das possibilidades de vantagens das cooperativas, efetivamente, essas formas organizacionais não se constituíram em alavancas econômicas de

poder do movimento dos trabalhadores pela superação do capitalismo. A partir das observações de Lênin (1980r, p. 657-659) 24, é possível enxergar semelhanças entre os velhos cooperadores (líderes da reforma social baseada em cooperativas) e Bernstein. Assim, as expectativas de Bernstein sobre o papel das cooperativas lembravam, de certa forma, as ilusões do velho cooperativismo de que a simples cooperativização, no interior do sistema capitalista, poderia conquistar o socialismo. No entanto, a compreensão de Bernstein seria ainda mais fantasista porque esse autor já vivia em um ambiente posterior, modificado, beneficiando-se do conhecimento sobre os limites da trajetória das cooperativas e assistindo às próprias mudanças estruturais do capitalismo no, final do século XIX, no sentido do imperialismo. Velhos cooperadores, como Robert Owen, foram precursores importantes do socialismo.

O socialismo evolucionário bernsteiniano conseguiu exercer grande influência, embora isso não tenha sido abertamente reconhecido. Concepções e propostas de Bernstein podem ser identificadas na trajetória da social-democracia européia e, surpreendentemente, nos aspectos econômicos da própria experiência contemporânea da reforma chinesa. A social- demococracia, a partir dos assim chamados anos dourados pós-2ª Guerra Mundial, empenhou- se na integração dos trabalhadores no capitalismo reformado e em expansão.

Entretanto, os comunistas, ao longo do século XX, rejeitaram, com veemência, esse modelo de socialismo, como se vê na seguinte apreciação de Oscar Lange (1974c, p. 39):

Já em fins do século XIX, os revisionistas negavam o princípio da transição ao socialismo por meio da ditadura do proletariado. Acreditavam que as relações socialistas de produção podiam estabelecer-se dentro da estrutura do sistema capitalista. Identificavam as formas econômicas capitalistas de Estado com o socialismo e sustentavam a opinião de que a superestrutura política do Estado se adapta gradualmente a este processo espontâneo de desenvolvimento econômico. Chamavam a isto de “socialismo evolucionário”. Esta teoria é exposta hoje em uma ou outra variante nos programas da democracia-social.