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9 ANÁLISES DOS DISCURSOS

9.2 Componente Parto e Nascimento

Para algumas mulheres, a chegada do dia do parto é a possibilidade de concretude de um longo período de planejamento realizado, por vezes, ainda antes do início do pré-natal. Entretanto, por se tratar da ordem do fisiológico, o parto tende a lidar com o inesperado, com a real entrega das mulheres gestantes, dos familiares e dos profissionais da saúde em participar do processo.

Esse lidar com o inesperado vai de encontro a toda uma lógica historicamente construída que remete a uma não capacidade do corpo da mulher em parir. Associado a um conjunto de procedimentos que, de forma bem sucinta, foram criados tanto como resposta a um quantitativo relevante de mortes maternas e infantis, quanto para dar certa previsibilidade ao acontecimento do parto e nascimento.

É com base nessa previsibilidade, no intenso fluxo de atendimentos presenciados nas maternidades e em mais diversas outras questões – que não serão tratadas nesta pesquisa – que a taxa de cesárea tem aumentado, principalmente, no âmbito privado da assistência à saúde. Como mencionado, nas palavras de Gaia (CoordRC), estaríamos vivenciando uma “epidemia de cesariana”.

Como contraponto, é ofertado um rol de estratégias para o incentivo ao parto normal. No entanto, não é somente proporcionar à mulher gestante que ela tenha esse tipo de parto, mas, sim, ofertar a mulher condições para que esse momento seja, acima de tudo, respeitoso. Lamentavelmente, temos um relato de violência obstétrica, no qual o procedimento da episiotomia foi feito sem que a mulher gestante tivesse sido comunicada e com ausência de anestesia. A sutura também foi realizada sem qualquer tipo de anestésico.

Eu fiquei lá no pré-parto, aí fiquei na bola lá, no chuveiro, na bola, no chuveiro, eu não tava aguentando de dor. Aí eu pedia pra me dar uma... [...] É pra ajudar, eles num deram, aí ficou demorando, demorando. Aí quando o médico foi lá pra examinar, disse que só com oito, sete centímetros de dilatação, né, pra dar analgesia, aí eles demoraram pra caramba pra me examinar, fazer o toque, né. Aí quando ele foi fazer o toque, ela já tava nascendo [...] Aí não deu tempo da anestesia, aí eles fizeram lá a episiotomia sem anestesia. Tudo assim, sem. [...] Isso eu achei horrível, ele nem falou assim: “Tô fazendo”. Não. Já fez e... aí, foi assim (Rubi- MlrSUS).

Foucault19 sinaliza que o exercício de poder pressupõe uma relação. Na medida em que ele é um “modo de ação sobre as ações dos outros”19:244

, supõe-se que os sujeitos dessa relação devam ser livres para se deslocar, para resistir. Nesse caso, em específico, não houve relação, não houve resistência. Rubi foi submetida a um ato de dominação, de coação, de sujeição. Esse ato, exercido brutalmente por um saber profissional que se impõe de distintas formas sob os corpos das mulheres, em especial, as parturientes.

É interessante notar que, nesse mesmo discurso, aparece o que o Ministério da Saúde, por meio do Programa Rede Cegonha, preconiza como a utilização de métodos não farmacológicos de alívio da dor, ponto destacado no item das Boas Práticas de Atenção ao Parto e Nascimento presente no componente Parto e Nascimento. Rubi teve acesso a alguns deles, o que denota que a maternidade integrava a discussão do parto humanizado.

Contudo, o ato praticado pelo profissional, incita-nos a refletir que a mudança da lógica de atenção ao parto e nascimento não se dá somente pela via estrutural, mas nas microrrelações dos processos. Entretanto, é também nos entremeios dessas microrrelações que são exercidos modos diferenciados de manuseios dos corpos, refletidos por uma lógica de

recorte tanto social quanto racial. A mulher que foi submetida a uma violência obstétrica se classificou enquanto parda e de baixo poder aquisitivo.

Por mais que saibamos que a violência seja algo que possa ocorrer com todas as mulheres – independente de raça e condições socioeconômicas – a realidade nos mostra que ela é mais preponderante em determinados corpos que em outros. Dessa forma, podemos destacar que o governo de si não é exercido de forma igualitária entre os distintos corpos.

Ao adentrarmos nas discussões das Boas Práticas, destacamos que das sete ações descritas no presente componente, somente duas delas foram destacadas nos discursos dos dois grupos das mulheres mães entrevistadas. São eles:

c) Práticas de atenção à saúde baseada em evidências científicas, nos termos do documento da Organização Mundial da Saúde, de 1996: “Boas práticas de atenção ao parto e ao nascimento”; e

d) Garantia de acompanhante durante o acolhimento e o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato1.

Entretanto, há uma distinção entre os dois grupos de mulheres primíparas no quesito das Boas Práticas. Foi observado que as mulheres mães acompanhadas pelo sistema privado de saúde também tiveram acesso à possibilidade de produção do Plano de Parto e o incentivo a posições não supinas (não horizontais) durante o trabalho de parto, fato que corrobora com a questão do exercício não igualitário do governo de si.

Ah, primeiro é que eu queria a participação do meu marido o tempo todo. Que eu queria que fosse com a minha médica, a minha doula, a enfermeira dela. Eu não contratei pediatra pra XXXX por uma questão de dinheiro mesmo. Acabou o dinheiro no final das contas, acho que eu teria contratado, mas enfim. Tinha os procedimentos que não queria que fizessem com a XXXX. Eu não queria que aplicassem colírio, eu não queria que aspirassem desnecessariamente. Queria que ela ficasse no meu colo, que esperassem o cordão parar de pulsar. Tinha isso da anestesia, que eu preferia esperar, né. Que eu queria parir na banqueta ou verticalmente. Lá eles têm também, na maternidade. Ah, que eu não queria música, eu não queria incenso, não queria essas coisas. Eu sou muito irritada com cheiro. Tem a pessoa que pira, né, na banheira. Primeiro que eu não queria na banheira. Eu olho pras fotos, eu acho a posição desconfortável. Pode ser que seja bom, não sei. Não queria banheira, flor, incenso. Eu queria essa posição vertical mesmo (Verbena e a descrição de seu plano de parto- MlrPRIV).

Como mencionado, sob a perspectiva foucaultiana, todas essas recomendações, baseadas em evidências científicas, seriam tecnologias de saber-poder instituídas pelo sistema de saúde vigente56. Aliás, o interessante de se pensar sobre essas questões que envolvem a biopolítica é de podermos proferir que: seja para instituição de novas lógicas de atenção ditas

como mais humanizadas ou seja para a permanência das práticas mais tradicionais, sempre (por mais dura que seja a interpretação dessa palavra) estaremos submetidos, em menor ou maior escala, a sistemas de controle.

Exemplo a ser dado foi quanto ao pagamento de taxa extra para o acompanhamento do profissional médico no momento do parto. Nesse caso, todas as mulheres mães do grupo do sistema privado de saúde pagaram por esse serviço, além de muitas delas contarem com o acompanhamento de doulas. Ao que tudo indica, há um “combo parto humanizado” direcionado àquelas que podem pagar por esse serviço.

Nesse sentido, poderíamos pontuar duas questões: haveria um movimento de resistência ao modelo tradicional de assistência ao parto e nascimento por parte das mulheres acompanhadas pelo sistema privado de saúde? Ou haveria um movimento de sujeição dessas mulheres a um novo modelo de assistência ao parto e nascimento?

Interessante é que, por mais que as mulheres acompanhadas majoritariamente pelo SUS possam ter usufruído de algumas das tecnologias do parto dito humanizado, por vezes, elas não reconheceram que vivenciaram tal experiência. Possivelmente, a visão midiática do “parto humanizado da banheira” tenha influência sobre esse aspecto. “Eu acho que a diferença é que todos os partos humanizados que eu vejo é na água, né, numa banheira” (Esmeralda - MlrSUS).

A aposta do MS na entrada de um novo profissional da saúde no cenário do parto também se mostra como uma estratégia biopolítica interessante. Oferecer cursos de qualificação em enfermagem obstétrica auxilia diretamente no processo de mudança da lógica tradicional de assistência ao parto e nascimento. Ao que nos consta pelas entrevistas, essa tecnologia foi bem integrada nos sistemas privados de saúde, por meio da presença das enfermeiras obstetras nas equipes intituladas como humanizadas.

No âmbito público, a entrada desse profissional reorganiza a perspectiva de atendimento às gestantes, deixando aos médicos somente os casos em que a mulher gestante necessita de algum tipo de intervenção. Em relação ao sistema vigente, esse profissional da enfermagem obstétrica seria uma forma de resistência ao instituído. Contudo, por estar dentro de uma lógica institucional, compreendemos que ele seria mais uma tecnologia de poder da biopolítica compreendida a partir de uma nova perspectiva.

A outra ação descrita no componente Parto e Nascimento e presente em todos os discursos das mulheres mães foi o direito ao acompanhante de livre escolha da mulher durante todo o período dela na instituição de saúde. Apesar de lei datada de 2005102, a presença do acompanhante não é uma realidade em todos os serviços de saúde. Reconhecida como causa

“inegociável” por parte do Ministério da Saúde, além de ser um importante recurso emocional para a mulher, ele é também aquele que mexe diretamente na organização estrutural dos serviços.

Ao tratarmos de dispositivos de resistência ao instituído, a realização de partos normais e respeitosos – com o mínimo de intervenção possível – tem sido uma realidade alcançada por muitas mulheres no sistema privado de saúde. Com uma taxa acima de 80% de partos cesáreos, a presença dessas mulheres nas maternidades proporciona um repensar de condutas. Por vezes, ela já chega à maternidade, próximo ao período expulsivo e juntamente com uma equipe profissional contratada (médico obstetra, enfermeira obstetra, doula).

Muitas maternidades vendem o serviço de hotelaria, por vezes com custo alto, como forma de recompensar o não uso das tecnologias disponíveis nas instituições – como a exemplo das utilizadas em uma cesariana. Por se tratar de um serviço com alto custo financeiro, o “combo parto humanizado” direciona-se a determinada classe social. Em contraponto, a RC propõe oferecer esse serviço de forma gratuita, mas não sem antes encontrar dificuldades em seu caminho.

Ponto a ser destacado é que as mulheres do sistema privado que passaram pela experiência do parto normal e humanizado revelaram desejo em passar pela experiência novamente. Como a exemplo de: Verbena (MlrPRIV) que relatou que, se tudo fosse feito do mesmo jeito, teria mais uns vinte filhos; Cravina (MlrPRIV) que já pensava no segundo filho, assim como, Dália (MlrPRIV). O que nos demonstra que há algo de significante na experiência do parto e nascimento.

Olha, depois dessa experiência, até uns dois meses mais ou menos que ela nasceu, eu falava que eu não queria passar por isso de novo. Porque eu sofri demais, eu ainda enxergava a dor como um sofrimento, sabe? Mas é impressionante o quê que acontece, acho que a natureza ela sabe o que faz, porque eu não lembro, eu só lembro que doeu muito. Mas eu não lembro do tipo da dor e de algum tempo pra cá, já de alguns meses pra cá, eu já penso em ter outro bebê e já penso no parto normal de novo, entendeu? (Dália - MlrPRIV).

Quando falamos da experiência do parto e nascimento, podemos falar de todos os tipos de parto. Porque mesmo Tulipa (MrlPRIV), após ter sido submetida a uma cesariana, não se enxerga mais tendo um parto normal. Assim como Esmeralda (MrlSUS), após sua experiência de cesárea na rede pública. Ao contrário de Jade (MrlSUS), que após ter sido submetida a uma cesariana, ainda almeja passar pela experiência do parto normal.

No final das contas eu tive cesárea porque eu não sei se demoraram muito pra fazer meu parto, ele entrou em sofrimento. Mas eu quase tive ela normal, levei até anestesia e tudo pra ter ela normal. Quando o médico chegou, que foi o único contato que eu tive com ele mesmo assim, foi na hora do parto mesmo. Ele chegou, ele falou pra mim que era melhor da gente fazer uma cesárea, porque ela tinha entrado em sofrimento. Aí eu falei assim: “Tudo bem, né, não vou arriscar também a vida da minha filha” (Jade - MrlSUS).

Sob a perspectiva foucaultiana, Jade passou por um processo de sujeição ao saber- poder médico, pautado no receio de arriscar a saúde da sua filha. Possivelmente, por não ter tido a opção da escolha, ainda deseja vivenciar outro tipo de experiência no parto. Desejo esse, compartilhado com Rubi (MrlSUS), que mesmo após o episódio de violência obstétrica, caso tivesse outro filho, gostaria de ter novamente um parto normal, mas humanizado. O que demonstra, mais uma vez, a existência de algo significativo no processo do parto.