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Questões quanto ao processo da governamentalidade

5 SOBRE O CORPO, A GOVERNAMENTALIDADE E O ESTADO

5.2 Questões quanto ao processo da governamentalidade

Ao tomarmos como referência a influência do Estado na questão do corpo e dos processos de governamentalidade trabalhados por Foucault, optamos por criar um tópico somente para este fim.

Ao aprofundar o modo de funcionamento do Estado, principalmente no tocante às suas distintas articulações, Foucault realiza uma discussão precisa sobre a arte de governar, registrado em um texto intitulado A governamentalidade8. Nessa perspectiva, amplia a noção do que seria efetivamente um governo. Para tanto, ele se vale de autores que se opõem à tradição maquiavélica e ressalta que a arte de governar também envolveria, dentre outras questões, governar uma casa, uma família, uma ordem religiosa.

Para o filósofo, apesar de parecerem observações terminológicas, os variados tipos de exercício de governo possuiriam uma relevante implicação política. Enquanto para Maquiavel o príncipe era, por definição, o único em seu principado, estando em posição de exterioridade, transcendência; para outros autores, a prática de governo seria múltipla na medida em que muitos poderiam governar: o pai de família, o pedagogo, o superior do convento. Haveria diferentes tipos de governo para os quais a gestão do príncipe em seu Estado seria apenas uma de suas modalidades8.

Como mencionado, ao fundo, a tese foucaultiana se apoia na ideia de que, mesmo operando em esferas diversas, os exercícios de governar estariam localizados dentro do Estado ou da sociedade. Assim, ao descrever a governamentalidade, Foucault atenta para a capilaridade do poder. Fala-se de exercícios, de configurações de relações de poder: do Estado em relação à população, da população em relação ao Estado, da população em relação a si mesma, dos sujeitos em relação a si próprios. Nesse sentido, há um exercício de governo sobre si. A partir desse entendimento, as mulheres para as quais as políticas de saúde são direcionadas possuiriam a arte de se autogovernaremXXXI, sendo essa uma grande contribuição foucaultiana para a discussão8.

XXXI A partir desse contexto, destacamos que o uso do termo governamentalidade – como associado ao exercício do governo dos sujeitos em relação a si próprios – sofreu alterações no percurso dos estudos foucaultianos, sendo

Foucault, entretanto, destaca que, apesar da existência de todas essas modalidades de governo que se cruzam no interior da sociedade e do Estado, há um modo específico que trata de definir qual a forma particular que se aplica a todo o Estado. Ele recorre, então, a La Mothe Le Vayer que aponta a existência de três tipos distintos de governo com formas específicas de ciência e de reflexão cada um: “O governo de si mesmo, que diz respeito à moral; a arte de governar adequadamente uma família, que diz respeito à economia; a ciência de bem governar o Estado, que diz respeito à política”8:280

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Apesar de considerar que a política tenha a sua singularidade em relação à moral e à economia, o importante a se destacar é que essas artes de governar apresentam uma continuidade essencial entre elas, sendo estas, ascendente e descendente. Continuidade ascendente no sentido em que aquele que quer governar o Estado deve primordialmente saber governar a si, governar sua família, seus bens, seus patrimônios. Continuidade descendente na medida em que quando o Estado é bem governado, os pais de família sabem governar suas famílias, seus bens, seus patrimônios e, por sua vez, os indivíduos se comportam como devem. É na linha descendente que faz repercutir, na conduta dos indivíduos e na gestão da família, o bom governo do Estado, que nesta época já começa a ser denominado de polícia8 XXXII

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Ao trazermos outras perspectivas para a discussão da governamentalidade, Santiago Castro-Gómez55 destaca que “qualquer narrativa da modernidade que não leve em conta o impacto da experiência colonial na formação das relações propriamente modernas de poder é não apenas incompleto, mas também ideológico”55:90. Segundo seu entendimento, foi por meio do colonialismo que o poder disciplinar – caracterizador das sociedades e suas respectivas instituições – foi criado. Ao recorrer ao sociólogo Aníbal Quijano, afirma a existência de um dispositivo de poder gerador do “sistema-mundo moderno / colonial” 55:91

, que se reproduz estruturalmente no interior de cada Estado nacional.

Seria por meio da colonialidade do poder que se justificaria a legitimação da espoliação colonial. Esta, legitimada por um imaginário, estabeleceria desmedidas diferenças entre colonizador e colonizado. A partir dessa compreensão, o colonizado seria como o “outro da razão”55:91, o que justificaria o exercício do poder disciplinar pelo colonizador. “A maldade, a barbárie e a incontinência são marcas „identitárias‟ do colonizado, enquanto que a

posteriormente denominado de governo de si. Entretanto, defendemos que tal alteração não impede o uso do termo governamentalidade para o fim supracitado.

XXXII

Ressaltamos que aqui polícia tem um sentido positivado, enquanto mecanismo de controle e vigilância sobre os corpos, e não um sentido negativo, como por vezes o atribuído à polícia na atualidade, como relacionada à arbitrariedade, ao desrespeito.

bondade, a civilização e a racionalidade são próprias do colonizador”55:91

. Por meio dessas contribuições, para esse autor, o conceito de coloniedade do poder, proposto por Aníbal, não somente ampliaria, como também, corrigiria o conceito de Foucault sobre o poder disciplinar. Tendo em vista que demonstraria que os dispositivos de controle trabalhados pelo Estado moderno se baseariam em estruturas mais amplas de poder.

Se tomada como referência essas supostas amplitude e correção do conceito, a biopolítica – entendida como um conjunto de tecnologias de poder-saber no qual a vida de cada ser humano estaria em destaque em relação à vida da população56 – ganharia uma nova potencialidade. Dessa forma, a ideia de que haveria um processo de medicalização e educação dos corpos e do sexo das mulheres em nome da responsabilidade que elas teriam em relação à saúde de seus filhos seria pensada de um modo mais engenhoso e articulado de relações de poder.

Entretanto, questionamos: a partir da perspectiva foucaultiana, a mulher já não seria o outro da razão? E mais, não seria a potencialidade dos sujeitos em se autogovernarem uma alternativa de desvinculamento e ressurgimento de si? A partir destes questionamentos, apesar da relevância do assinalamento em direção a outras perspectivas, não se entende, neste estudo, que haveria uma correção do conceito foucaultiano sobre o poder disciplinar. Pois partimos do entendimento de que a fluidez do conceito e suas nuances já abarcariam certa amplitude na perspectiva de olhar distintas configurações de poder das relações que se constroem nos emaranhados dos discursos e das práticas.

Nesse sentido, trazemos como exemplo a autora Teresa de Lauretis57 que, apesar de críticas quanto à teoria foucaultiana não ter se atido a questões de gênero40, utiliza-se da ideia foucaultiana da sexualidade enquanto uma “tecnologia sexual”57:208

– produto de distintos discursos, epistemologias e práticas institucionalizadas – para pensar as tecnologias de gênero. Entretanto, corroboramos com o fato de que há modos diversos de se analisar os recortes históricos, o que é extremamente pertinente ao processo de produção de conhecimento e, por conseguinte, do modo de enxergá-los e trabalhá-los.

Ao recorrermos à atualidade, observações significativas quanto às políticas de saúde sobre o parto e nascimento carecem de destaques. Entendemos que, na medida em que elas sinalizam quais seriam os “melhores” modos de nascer – o que pode denunciar um caráter estritamente descritivo de práticas, sem desmerecer as relevantes ações quanto às potencialidades existentes nas mudanças da lógica materno-infantil – elas também acabam anunciando um protagonismo da mulher nesse processo. No entanto, possivelmente, pela influência do histórico de não pertencimento e percepção de seu próprio corpo, tal ação possa

soar como mais uma nova regra a ser seguida, como mais uma tecnologia do poder em ação sobre esse corpo da mulher mãe.

Isso nos remonta a questionar novamente sobre os processos de governo de si por parte da mulher nesse processo do parir e nascer. Fala-se em métodos não farmacológicos de alívio da dor (massagens, deambulaçãoXXXIII, banhos mornos), presença de profissionais qualificados no cuidado gestacional (enfermeiras obstetras, doulasXXXIV), pesquisas de evidências científicas sobre os benefícios do parto normal, direito da mulher em escolher o seu parto, direito a acompanhante de livre escolha da mulher, contato pele a pele na primeira hora de vida do bebêXXXV 58:61. Tais ações são de extrema relevância para a melhoria da assistência ao parto e nascimento, mas, por vezes, não se concretizam enquanto ferramenta de empoderamentoXXXVI dessa mulher.

Em que medida as mulheres têm poder de decisão sobre seus corpos? Escolher o modo de seu partoXXXVII não significa necessariamente dizer que elas têm autogoverno sobre o processo. E não são somente pelas emergências que podem surgir em meio a um trabalho de parto – o que seria totalmente cabível a realização de intervenções médicas, vai mais além, é anterior a tudo isso. Às mulheres não foi dada a oportunidade do conhecimento e do autogoverno sobre si. Quando tais ações acontecem, essas mesmas mulheres correm o risco de esbarrar em paradigmas culturalmente estabelecidos de processos de dominação e controle que as relembram que seus corpos não são seus de fatoXXXVIII. Principalmente, quando associado a processos reprodutivos.

XXXIII O ato de estimular que a gestante caminhe para acelerar o trabalho de parto6. XXXIV

A palavra doula é oriunda do grego e significa “mulher que serve”. Atualmente, está relacionada à mulher que disponibiliza suporte físico e emocional às mulheres durante o ciclo gravídico-puerperal6.

XXXV

Parte dessas orientações consta no Manual de Boas Práticas publicado em 1996 pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O Manual apresenta uma classificação de práticas comuns na condução do parto normal, orientando os profissionais de saúde sobre o que poderia ou não ser realizado em determinados procedimentos. Ressalta-se que todas as orientações foram baseadas em evidências científicas.

XXXVI Apesar de Foulcault não trabalhar com este conceito, poderíamos pensá-lo por meio dos exercícios de poder praticados pelas mulheres, no tocante ao ponto de quando elas se apoderam de distintas configurações de poder e a partir delas produzem uma forma ser. Entretanto, frente à popularidade do termo na contemporaneidade e às possíveis distorções sobre o seu entendimento, recorremos a Maurizio Lazzarato60 quando ele se remete às feministas que intitulam por uma lógica e uma prática pós-identitária: “a construção de um pertencimento que já não significa designar ou ser designado por uma identidade, mas, muito pelo contrário, engajar-se num „devir‟, que é empowerment, um devir capaz daquilo de que não seríamos capazes de outro modo60:147.

XXXVII

Neste ponto, destacaremos algumas terminologias: 1) parto natural (parto vaginal sem intervenções medicamentosas), 2) parto normal (parto vaginal com intervenções medicamentosas), parto cesárea (procedimento cirúrgico no qual é realizado um corte no abdômen e no útero para a retirada do bebê).

XXXVIII Não podemos esquecer que dependerá de quais corpos estamos falando. Há discussões extremamente pertinentes realizadas pelos feminismos negros, que nos sinalizam que os corpos das mulheres negras não são tratados da mesma forma que os das mulheres brancas. Para maior aprofundamento na temática, sugerimos a leitura de “Mulheres, raça e classe” de Angela Davis, publicado em 2016 pela Editora Boitempo61.

Este percurso histórico e os destaques quanto à sexualidade das mulheres auxiliam a compreender como o Programa Rede Cegonha foi visto como um retrocesso aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres por determinados movimentos sociais de cunho feminista, principalmente frente à dificuldade de quebrar barreiras históricas quanto à percepção reducionista das mulheres enquanto figuras reprodutoras. Barreiras estas construídas tanto pelo Estado, quanto por concepções médicas e, inclusive, pela própria sociedade ao absorver a sexualidade como um tabu. Tendo em vista a polêmica criada em torno do referido programa algumas questões sobre esse assunto merecem destaque.