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5 SOBRE O CORPO, A GOVERNAMENTALIDADE E O ESTADO

5.1 Relações entre o corpo e o Estado

Com intuito de auxiliar na compreensão sobre como a noção de corpo foi construída no decorrer da história, inicialmente, recorreremos às contribuições foucaultianas no tocante às influências do Estado sobre este processo. Na obra Em defesa da sociedade, Foucault defende que o século XIX foi marcado pela tomada da vida pelo poder, o que em suas palavras seria “uma espécie de estatização do biológico”49:286

.

Para melhor compreensão, o autor nos remonta à teoria clássica da soberania, na qual o direito de vida e de morte seria um dos seus atributos essenciais. Nessa configuração, podemos dizer que a vida e a morte dos súditos dependiam da vontade do soberano, a quem cabia o exercício “de fazer morrer ou de deixar viver”49:287

. É importante ressaltar que, sob a forma moderna, esse direito somente estaria condicionado à defesa do soberano e à sua sobrevivência enquanto tal.

Entretanto, reforçamos que, neste mesmo século, foi vivida uma das mais relevantes transformações no direito político que veio complementar, e não substituir, o velho direito da soberania: “o direito de fazer viver e de deixar morrer”49:287

. Foucault afirma que

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No capítulo referente aos discursos das profissionais – produzidos através das entrevistas semiestruturadas descritas no percurso metodológico da tese –, trazemos informações mais técnicas quanto ao processo de implantação e implementação do Programa Rede Cegonha.

essas transformações se fundamentaram no âmbito dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder.

Com base nas elucidações foucaultianas, Giacoia Jr.50 destaca que, apesar de o final do século XVII e, por conseguinte, o século XVIII terem sido marcados, na sociedade ocidental, por um tipo de poder característico da sociedade disciplinar, tem-se, no século XIX, o surgimento de outra grande tecnologia política: o biopoder. Ao frisar que uma tecnologia não substitui a outra, mas a integra, o autor define esse processo como “um ajustamento nas engrenagens do poder-saber, com seus consequentes jogos de verdade”50:293.

O aspecto inovador do biopoder, que posteriormente Foucault define como biopolítica, é que, diferentemente da disciplina, a qual se direciona ao homem-corpo, aquele se dirige ao homem vivo, ao homem-espécie.

Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante, mas que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem- espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana49:289

.

O biopoder se ocupará necessariamente de um conjunto de processos, a exemplo das taxas de reprodução, da fecundidade da população e da proporção dos nascimentos e óbitos. Na perspectiva foucaultiana, quando aliados a uma diversidade de problemas econômicos e políticos, esses elementos constituíram-se como os primeiros objetos de saber e alvos de controle dessa tecnologia. Essa articulação do poder é tão marcante para Foucault que, na obra História da Sexualidade I – A vontade de saber16, ele reafirma seu posicionamento.

As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos de vida – caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo16:131.

Se considerarmos que “o biopoder não normaliza, ele regulamenta, controla e gere a vida das populações”50:294

, então, destaca-se o modo como o corpo da mulher foi sendo medicalizado e educado em favor do gerenciamento da população. Baseando-se no

entendimento foucaultiano de que mesmo operando em esferas diversas, os exercícios de governar estariam localizados dentro do Estado ou da sociedade8 XXVIII, reiteramos a atuação tanto do Estado quanto de distintos campos de saber, como a exemplo da medicina, sobre o corpo da mulher. Neste ponto, salienta Elisabeth Vieira,

A medicalização do corpo feminino, com o desenvolvimento técnico da medicina, permite a formação e manutenção da sociedade em relação às questões de saúde que envolvem a reprodução humana, ao elaborar ideias que, através de uma racionalidade moderna e científica, visam ao entendimento e consequente intervenção nesse corpo como estratégia social51:24.

Por ser a mulher responsável pelo processo de gestar a vida e, por conseguinte, pelo dito futuro da população, foram criadas em torno dela responsabilidades pela saúde de seus filhos e de os tornarem bons cidadãos. Nesse sentido, Michele Perrot41 afirma que a sexualidade teria provocado uma medicalização dos corpos das mulheres e de seu sexo em prol de uma solidez da instituição familiar e da saúde da sociedade. Nesse entendimento, a família seria o permutador da sexualidade e da aliança. “Neste dispositivo, o corpo feminino é um cacife de poder, um lugar estratégico da esfera privada e pública, um ponto de apoio da biopolítica”41:70

.

Ao tratar da sexualidade, apesar do aspecto conservador da nossa sociedade em torno da temática, Foucault16 ressalta o modo como aquela auxiliou na constituição da sociedade enquanto tal, estando ela na encruzilhada entre corpo e população. Nessa concepção, a sexualidade dependeria tanto da disciplina (controle sobre a masturbação infantil, por exemplo), quanto da regulamentação (efeitos procriadores culminando em processos biológicos amplos que constituem a população).

Neste ínterim, frisamos que a valorização médica em torno da sexualidade no século XIX se deu pela posição privilegiada desta no tocante ao organismo e à população, ao corpo e fenômenos globais. No entanto, apesar da relevância da atuação da medicina nesse cenário, o emaranhado de instituições que discorrem sobre o corpo da mulher é extenso – a exemplo da religião, família, justiça, educação – sendo assim, ele está envolto por configurações de poder diversas.

Dizer que o sexo não é reprimido é ir de encontro a toda uma economia, ir de encontro a todos os interesses “discursivos”16:14

que a sustentam. Para contribuir na

XXVIII Diante da sua relevância para a construção da pesquisa, o próximo tópico tratará da questão da governamentalidade foucaultiana.

compreensão sobre esses distintos poderes sobre os corpos, frisamos o posicionamento do filósofo:

Mas o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, os dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violência ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem, no entanto, ser violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e, no entanto, continuar a ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo. Essa tecnologia é difusa, claro, raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos; compõem-se muitas vezes de peças ou de pedaços; utiliza um material e processos sem relação entre si. O mais das vezes, apesar da coerência de seus resultados, ela não passa de uma instrumentação multiforme. Além disso seria impossível localizá-la, quer num tipo definido de instituição, quer num aparelho de Estado. Estes recorrem a ela; utilizam- na, valorizam-na ou impõem algumas de suas maneiras de agir. Mas ela mesma, em seus mecanismos e efeitos, se situa num nível completamente diferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas forças23:28-9.

Ao se remeter ao controle sobre o corpo, Barbara Duden52 se debruça sobre a história do corpo da mulher. Ela busca compreender o processo de autocriação e percepção da mulher sobre si mesma a partir de dois aspectos: o primeiro relacionado à interiorização de um conceito científico, e o segundo conectado às ativações da própria mulher via imagens tecnológicas. “Quero, por exemplo, saber como cheguei a um determinado nível hormonal e como aprendi a reconhecer as oscilações de tal nível. Na história do corpo pesquiso esta distância do meu corpo vivido”52:17XXIX

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“Vorrei per esempio sapere come sono arrivata a un determinato livello ormonale e come ho imparato a

riconoscere in me le oscillazioni di tale livello. Nella storia del corpo cerco questa distanza dal mio corpo vissuto”. Tradução nossa.

Com essa perspectiva, ao tratar da gravidez vivida, Duden se interessa sobre os limites entre a experiência pessoal e os estados biológicos construídos estruturalmente em torno da gravidez e, por conseguinte, da mulher. A autora sinaliza, assim, zonas distintas de controle sobre o corpo. Duden denota o alcance do desenvolvimento tecnológico sobre os aspectos biológicos do corpo, o que implica no desencadeamento de um processo de anonimato do sujeito que porta um novo ser52.

Para isso, incita-nos a refletir sobre o uso das ultrassonografias gestacionais, na medida em que a partir do momento que o feto é localizado no ventre da mulher, esta perde sua centralidade enquanto ser social. Seu corpo vira públicoXXX e a ela se torna um mero objeto desse novo sujeito. Nesse ponto, é notório o deslocamento da ação, no qual o sujeito mulher se torna objeto mãe em favor do sujeito filho, que ainda está em formação. É sobre esse olhar da sujeição da mulher diante da reprodução que diversos movimentos de cunho feminista se contrapuseram no decorrer da história52.

É relevante notar que, apesar das pautas das lutas feministas serem diversas, algumas se mostram constantes. Conforme Ana Paula Martins48, o final do século XIX e início do século XX foram marcados por reivindicações de melhores condições de trabalho e conquistas dos direitos políticos. Na segunda metade do século XX temos os alicerces de uma construção de corrente teórica destinada a compreender as origens e as causas das desigualdades entre os sexos e, por fim, o surgimento de um feminismo mais contemporâneo conectado à questão da diversidade das mulheres.

Todas essas pautas se entrelaçam e se atualizam a partir de contextos históricos, sociais e políticos distintos, mas que se complementam. É interessante questionar os motivos pelos quais após tanta problematização em torno da nulidade da mulher frente à gestação de um filho, ainda assim, vemos mulheres parindo ou desejando parir. E esse parir não está estrito somente ao biológico em si, até mesmo porque existem várias formas de parir na atualidade (via inseminação artificial, barriga de aluguel etc.) Será que poderemos afirmar que as mulheres despertaram para as distintas potencialidades de sua existência e consequente ressignificação de sua “função reprodutora”?

Por outro lado, reconhecemos que, mesmo diante da existência de distintas formas de parir e de uma possível ressignificação da mulher em relação à sua dita “função reprodutora”, tal panorama não exime a permanência da normatização das mulheres pela

XXX A autora feminista Colette Guilaumin defende que a ideia do corpo público da mulher está arraigada a uma apropriação da classe das mulheres pela classe dos homens, sendo essa sustentada por uma ideia de “natureza” das mulheres, a qual supostamente explicaria quem elas são. A partir dessa perspectiva, o corpo não se tornaria público pela gestação, pois ele já era em seu “princípio”54.

Medicina e pelo Estado. Pois, mesmo nessas circunstâncias, temos a representação da mulher enquanto provedora da reprodução social, aliada ao desejo de algumas mulheres de se tornarem mães.