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Compreensão sobre a racionalidade da rejeição testemunhal

Dada a escassez de evidência direta a favor ou contra reivindicações testemunhais, o reducionismo local argumenta que a aceitação do testemunho requer uma inferência a respeito da confiabilidade da testemunha, ou seja, a aceitação testemunhal deve ser uma aceitação fundamentada. O reducionismo local rejeita, portanto, qualquer tese de um direito presumido

padrão, algo que presumidamente levasse o ouvinte a crer “sem nenhuma investigação”,

constituindo, portanto, uma aceitação crédula – “licença epistêmica para o credulismo”. Essa aceitação fundamentada, mencionada acima, corresponde às obrigações por parte do ouvinte ao aceitar o testemunho de um falante em determinada circunstância. Estamos tratando de exigências epistêmicas impostas a quem Fricker denomina raciocinador maduro (mature reasoner), o qual deve exercitar julgamentos ao formar crenças testemunhais, atitude distinta daquela do tolo crédulo (gullible fool), para quem todo testemunho automaticamente emite crenças irrefletidas. No que segue, tentaremos traçar um perfil epistêmico do raciocinador maduro que deveria evitar falhas no caso da receptibilidade do testemunho.

A explicação frickeana baseia-se no argumento:

Conhecemos por demais a respeito da natureza humana para querer confiar em quem quer que seja, muito menos em todo mundo, acriticamente. [...] Sabemos muito bem como, e com que facilidade, o que nos é dito pode deixar de ser verdade.157

Nesse sentido, seguem as exigências ao ouvinte:

O tópico da minha consideração é: o ouvinte, epistemicamente responsável, fará um pouco mais do que o normal. Ele avaliará o falante em sua sinceridade e competência, envolvendo-se em, pelo menos, um pouco mais do que apenas a interpretação do falante.158

E continua a autora:

Ele [o ouvinte] deve, continuamente, avaliá-lo [o falante] em sua confiabilidade ao longo da conversa, em busca de evidências, ou pistas, disponíveis a ele. Isto será em parte uma questão de o ouvinte estar disposto a aplicar conhecimento de fundo que é relevante, e em parte uma questão de o ouvinte monitorar o falante em qualquer sinal revelador, manifestando provável inconfiabilidade. Esta última consiste em que o falante seja completamente veraz para com o ouvinte de modo que, se houvesse sinais de inconfiabilidade, ele iria registrá-los e responder de forma adequada.159

157 FRICKER, 1995, p. 400. 158 Idem, 1994, p. 148. 159 Ibidem, p. 150.

Porquanto, numa aceitação fundamentada: “um ouvinte deveria sempre se engajar

em alguma avaliação da confiabilidade do falante”.160 Essa avaliação deveria ultrapassar a mera

atitude de interpretação ao reconhecer um determinado ato de fala ou expressão contextual:

“reconhecer um enunciado feito por um falante como um ato de fala de afirmação séria”.161

Dessa maneira, a avaliação fundamentada deve ser conquistada em cada caso específico, por meio do exercício das habilidades críticas, escrutinando o falante em seus sinais de insinceridade, se engajando na interpretação e, por fim, construindo uma certa miniteoria explanatória do seu comportamento no ato testemunhal:

O ouvinte deve envolver-se na interpretação psicológica de seu informante, concebendo uma explicação de seu enunciado enquanto ato de fala intencional. Estimativas de sua sinceridade e sua competência, ou de sua falta, vai fazer parte desta miniteoria explicativa.162

E num nível ainda mais particular, Fricker endossa que mera confiança na capacidade de alguém em captar testemunhos verdadeiros, unicamente compensada pela

rejeição de testemunhos suspeitos ou insustentável, não é suficiente – o ouvinte deve se engajar

no monitoramento do testemunho:

Acreditar no que é afirmado sem fazê-lo [o monitoramento] é acreditar cegamente, sem nenhum sentido crítico. Isto é credulidade. (Embora não seja o único tipo. Acreditar na confiabilidade com muita facilidade, tentar avaliar, mas fazer isso mal, também é ser crédulo!).163

Diante desse cenário, é possível dizer que uma avaliação fundamentada, em vista da aceitação ou rejeição do testemunho, na concepção frickeana, deve ser algo cognitivamente acessível e, de maneira crítica, racionalmente defensável por parte do ouvinte intelectualmente maduro sobre a confiança no testemunho do falante.

Partindo dos argumentos acima expostos, é possível perceber um modelo de justificação testemunhal que subjaz nas entrelinhas da tese reducionista local, defendida por Fricker, o qual pode ser entendido sob a seguinte formulação:

160 FRICKER, 1994, p. 145. 161 Ibidem, p. 148.

162 Idem, 1995, p. 404-405. 163 Idem, 1994, p. 145.

Numa determinada ocorrência testemunhal (A), se o ouvinte (O) sabe que o falante (F) afirmou que p e O também sabe que F é confiável em A, então O tem base justificacional para crer que p.164

A fim de adquirir uma crença justificada com base no testemunho de F, O deve previamente saber que F é confiável na ocasião A. Dessa forma, por extensão, O deve aceitar o testemunho de F se e somente se O torna-se sabedor que F é, de fato,

confiável nessa situação.165

Em vista de evitar que se tornem muito exigentes os requisitos a respeito do saber prévio do ouvinte, Fricker argumenta que o requisito sobre a confiabilidade do falante, julgado pelo ouvinte, não precisa ser mais forte do que qualquer propriedade que o falante tem para preencher o “espaço lógico e epistêmico” entre F assere que p e p. Sendo assim, o ouvinte não precisa autoestabelecer a verdade,

ou provável verdade, do que o falante afirma na ocorrência testemunhal.166

Assim, é possível chegar à seguinte formulação:

O ouvinte precisa se convencer que, na ocasião da ocorrência testemunhal, o falante possui quaisquer propriedades para preencher o espaço lógico e epistêmico entre sua asserção que p e p, de fato, a fim de justificar sua aceitação do testemunho do falante. Assim, esse modelo de justificação testemunhal se dá por exigir que o ouvinte tome por si mesmo como adquirindo conhecimento que o falante é

confiável, caso sua decisão de aceitar o testemunho do falante esteja justificada.167

Diante da tese da racionalidade da rejeição testemunhal é possível compreender que essa concepção de justificação testemunhal permite, com êxito, a aquisição de uma crença

justificada baseada no testemunho – isto é, se o falante for, de fato, confiável de acordo com o

ouvinte, então o ouvinte pode, de fato, saber que p ao aceitar o testemunho do falante: “esse

modelo de justificação revela um componente que é fundamentalmente internalista”, quanto às

bases para a crença do ouvinte de que o falante foi confiável na ocasião da ocorrência testemunhal, as quais foram uma pré-condição para a aquisição do ouvinte, em primeiro lugar,

da crença de que p.168

Um internalismo genuíno defende que a crença para estar justificada deve requerer do sujeito posse de razões adequadas em que o próprio sujeito se reconhece como autorizando sua crença e nas quais a baseia: “quando o sujeito crê que p porque tem uma experiência [...] de que p é o caso, e a relação justificadora entre a experiência e a proposição objeto da crença

164 Argumento adaptado a partir da formulação de FRICKER, 1994, p. 129. 165 Cf. GELFERT, 2009, p. 175. 166 Cf. FRICKER, 1994, p. 129. 167 Cf. GELFERT, 2009, p. 175-176. 168 Cf. Ibidem, p. 176.

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está dentro da perspectiva cognitiva do sujeito, sua crença de que p está justificada”.169 Isto é,

“o conceito de justificação epistêmica [...] é interno [...] de modo que se pode descobrir

diretamente, pela reflexão, que se está justificado em crer em qualquer momento”.170

No entanto, há quem reivindique outros modos de internalismo, adaptando-o ao cenário justificacional da crença; vejamos o que dizem Igor Douven e Stefaan Cuypers:

Poderia ser argumentado que, enquanto um internalismo estrito pode exigir acesso reflexivo direto para justificação, é possível distinguir um tipo mais amplo de internalismo, segundo o qual a justificação ainda exige acesso imediato a bases justificatórias, embora não, necessariamente, puramente pela reflexão, mas, possivelmente, também através de pesquisa ou falando com algumas pessoas. Note que este internalismo amplo ainda está a uma

longa distância do externalismo, de acordo com o qual uma pessoa pode

estar justificada a crer em uma proposição, mesmo que as bases justificatórias para tal proposição permaneçam sempre fora de nosso alcance.171

Como já foi dito, essa é uma querela da qual não queremos nos ocupar neste momento. Percebemos, portanto, que uma avaliação adequada destes pontos de vista requereria uma pesquisa em específico. Assim, não entraremos, aqui, em detalhe a respeito das

interpretações internalistas e externalistas específicas da tese reducionista local,172 mas a título

de compreensão teórica, queremos citar a elaboração que Duncan Pritchard formulou da tese internalista aplicada à questão da justificação testemunhal, a qual pode ser entendida da seguinte maneira: “a crença baseada em testemunho de um agente está internamente justificada se, e somente se, os fatos que determinam a justificação forem cognoscíveis pelo agente via reflexão

apenas”.173 De modo geral, entenda-se externalismo sobre justificação testemunhal como a

negação desta tese, muito embora existem outras maneiras de expressar o externalismo. Sem dúvidas, nenhuma provável teoria de justificação testemunhal que vise captar a nossa situação epistêmica pode se dar ao luxo de ignorar o elemento perspectivo que vem da necessidade de conhecedores finitos darem conta de um novo fluxo social de informação:

Em particular, isto requer que tratemos justificação testemunhal não apenas em termos abstratos, mas com um olhar na direção da necessidade de o destinatário aceitar ou rejeitar um determinado fragmento do testemunho. Isso não quer dizer que as considerações para além da perspectiva do destinatário não importem para o status de justificação das suas crenças baseadas no testemunho: claramente, existem muitos fatores externos que são de extrema importância, tais como a confiabilidade do ambiente social do ouvinte. Antes,

169 ETCHEVERERRY, 2013, p. 24. 170 CHISHOLM, 1989, p. 07 [grifo nosso].

171 DOUVEN & CUYPERS, 2009, p. 42 [grifo nosso].

172 Sobre o estilo de internalismo pretendido por Fricker cf. FRICKER & COOPER, 1987; FRICKER, 2007. 173 PRITCHARD, 2004, p. 335.

é de salientar que tais considerações levantam a questão adicional de qual a relação, se alguma, [esses fatores externos] têm (ou deveriam ter) com a perspectiva de primeira pessoa do ouvinte.174

Nesse sentido, assegura Leslie Stevenson, que, quando analisamos a questão da justificação epistêmica aplicada ao testemunho, devemos olhar:

Na forma da primeira pessoa da questão, olhando não tanto para as condições da transmissão do conhecimento de A para B (formulado a partir do ponto de vista de uma terceira pessoa, C), mas perguntando a partir do ponto de vista de B o que, se alguma coisa, pode justificar B em acreditar no que diz A.175

Segundo Pritchard, para a justificação internalista de testemunho é exigido do agente que ele seja competente nesta questão, o que significa que ele deve ter bases suficientes para crer que é competente:

O que podemos exigir do agente é que ele seja competente nesta questão e, assim, na visão internalista, isto significa que ele deva ter bases suficientes para acreditar que é competente. E uma vez que este seja um fato adicional que determina justificação, na ideia internalista será necessário que estas bases também sejam entendidas, da maneira usual, como sendo reflexivamente

acessíveis ao agente.176

Como veremos, a posição frickeana, segundo analistas, acerca de seu projeto teórico sobre justificação testemunhal, assume um caráter internalista normativista:

Fricker (2007) diz que as bases justificatórias devem ser internas à ‘perspectiva epistêmica’ do crente. Isso tanto permite interpretações mais amplas como mais restritas, naturalmente, mas [...] no mesmo artigo ela também diz que o crente deve ser capaz de mencionar as bases justificatórias.177

Nesse sentido, segundo Duncan Pritchard, o internalismo sobre a justificação testemunhal não se aplica adequadamente ao modelo de justificação defendido pelo reducionismo local, ao menos quanto a concepção frickeana do molde justificacional da crença testemunhal do ouvinte em sua fase de desenvolvimento. Corroborando essa posição, pontuam Igor Douven e Stefaan Cuypers: “concluímos que a posição de Fricker, quanto ao testemunho, requer certas modificações [...] a fim de manter-se fiel aos seus pretensos compromissos internalistas”.178

174 GELFERT, 2014, p. 98 [grifo nosso]. 175 STEVENSON, 1993, p. 429-430. 176 PRITCHARD, 2004, p. 337.

177 DOUVEN & CUYPERS, 2009, p. 42. 178 Ibidem, p. 43.