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Sobre a concepção frickeana de monitoramento

2.2 A incoerência da tese da racionalidade da rejeição testemunhal

2.2.1 Problema: os mecanismos da redução e sua impenetrabilidade racional

2.2.1.2 Sobre a concepção frickeana de monitoramento

A concepção de monitoramento foi introduzida na epistemologia do testemunho por Elizabeth Fricker. O monitoramento é uma explicação para a viabilidade do reducionismo local. Desde sua segunda publicação (1994), que versa especificamente sobre a epistemologia do testemunho, Fricker aplica o conceito de monitoramento como elemento que tipifica o caráter local do reducionismo defendido por ela.

A descrição de monitoramento utilizada por Fricker nem sempre foi uniforme. Num primeiro momento, a autora deixa entender que monitorar corresponde a ter uma sensibilidade contrafactual (counterfactual sensitivity) a possíveis indícios contra a confiabilidade daquele que oferece o testemunho, isto é, monitorar é estar consciente destes indícios, a saber:

Minha concepção requer do ouvinte sempre assumir uma postura crítica perante o falante, a fim de avaliar sua confiabilidade; enquanto que uma verdadeira tese PR,207 como vimos, não o faz. O cerne desta distinção é uma

diferença clara e nítida: na minha concepção, mas não em uma tese PR, o ouvinte deve estar sempre monitorando o falante criticamente. Essa é uma questão de real envolvimento de uma sensibilidade contrafactual: é certo que, do início ao fim, o ouvinte, se houvesse quaisquer sinais de inconfiabilidade, iria captá-los.208

Dessa maneira é possível estruturar a seguinte formulação:

Um ouvinte S monitora a confiabilidade de uma testemunha T, quanto ao testemunho de que p, somente se S manifesta uma sensibilidade contrafactual acerca de indícios de inconfiabilidade.

Em momento algum Fricker esclarece, exatamente, o termo sensibilidade contrafactual. Em 1995 a autora parece ampliar sua explicação sobre sua descrição e uso do conceito de monitoramento, sempre argumentando que tal conceito seria uma das principais características balizadoras de sua tese; vejamos:

A posição contraposta ao que eu sugeri (veja Fricker 1994) é a de que, consequentemente, sempre é exigido do ouvinte que monitore e avalie um falante, embora isto possa ser automático e inconsciente. Ele [o ouvinte] deve envolver-se na interpretação psicológica de seu informante, concebendo uma

explicação de seu enunciado enquanto um ato de fala intencional.209

207 Entenda-se por PR a tese do Direito Presumido – Presumptive Right – segundo a qual “em qualquer ocasião de

testemunho o ouvinte tem o direito epistêmico de assumir, sem evidência, que o falante é confiável, isto é, que o que ele diz será verdade, a menos que existam circunstâncias especiais as quais derrotem esta presunção” (FRICKER, 1994, p. 125).

208 FRICKER, 1994, p. 154 [grifo nosso]. 209 Idem, 1995, p. 404 [grifo nosso].

Dessa forma, passa a vigorar que:

Um ouvinte S está a monitorar e avaliar, de forma automática e inconsciente, envolvendo-se numa interpretação psicológica sobre a confiabilidade de uma testemunha T, quanto ao testemunho de que p, somente se S conceber uma explicação sobre p, enquanto ato de fala intencional.

Dadas as publicações de Fricker, Sanford Goldberg e David Henderson em 2006 formularam uma crítica, argumentando que o uso do monitoramento em nada se diferenciava, quando comparadas, a posição do reducionismo local com a do antirreducionismo:

Fricker (1994) argumenta, em primeiro lugar, que algum monitoramento da confiabilidade é necessário, caso o ouvinte esteja evitando ser crédulo, e, em segundo lugar, que o reducionismo, mas não o antirreducionismo, é compatível em atribuir um papel importante ao processo de monitoramento no âmbito da aceitação justificada do testemunho mencionado. [...] Nós defendemos que tal argumento fracassa.210

Em tréplica, Fricker publica um artigo endereçado a Goldberg & Henderson. O contexto da citação abaixo é aquele em que Fricker se propõe a refinar a formulação da tese PR, nomeando-a como “PRef”. Feito o refinamento da tese originária, a autora passa, logo em seguida, a argumentar um tipo de refinamento denominado por ela de EF2, como se segue:

Na linha de PRef eu argumento por EF2 - que uma verdadeira tese PR envolveria uma ‘dispensa de atividade epistêmica’ por um receptor de testemunho, e, portanto, não envolveria um requisito de monitoramento. Eu volto a defender esta ideia abaixo. Se isso está correto, então PRef certamente capta o que uma tese PR antirreducionista resultaria; se for assim, capta a política ou disposição a uma resposta epistêmica ao testemunho recebido por parte de um receptor. Eu confesso que eu escrevi AG [Against Gullibility (1994, p. 144)] supondo que isso fosse óbvio - não necessitando de argumento ampliado nesse ponto - que PRef constituía um deferimento de uma política/disposição por parte de um receptor de testemunho que falharia em eliminar pelo menos algumas ocorrências de falso testemunho encontrado [...] em qualquer ambiente no qual: (a) ocorra uma quantidade epistemicamente significativa de falso testemunho, e: (b) não seja o caso que, sempre que tal ocorrência de falso testemunho for dado a um receptor, ele ‘esteja consciente de’ derrotadores para isso.211

Ao tentar reforçar seu ponto de vista, Fricker incorre numa reformulação do conceito de monitoramento: em sua nova publicação, argumenta contra a insuficiência da concepção antirreducionista de que, numa ocorrência testemunhal por parte de uma testemunha falsa, o ouvinte ofereça uma crença derrotadora contra a inconfiabilidade do emissor:

210 Cf. GOLDBERG & HENDERSON, 2006, p. 600. 211 FRICKER, 2006a, p. 621.

Uma deficiência do PRef é que esta última frase é vaga [ou seja, a sentença b acima descrita]. Sua conveniente atenuação – de que PRef supõe formular uma PR sem exigência de monitoramento – é que o receptor não possua nenhuma

crença ocorrente (e psicologicamente importante?) a qual derrote a presunção

da confiabilidade. Parece-me que a afirmação prática de que, no mundo atual (ao qual minha explicação de E a partir de T é direcionada), sempre que alguém está falsamente testificado, ele tem em seu background atual crenças derrotadoras da confiabilidade da testemunha, não tem absolutamente qualquer plausibilidade. Nesta breve resposta somente assegurarei isto, sem tentar apresentar evidência. Assim sendo então, PRef de fato autoriza efetivamente uma política ou disposição insegura para formação da crença. É, portanto, como sugerido em AG [Against Gullibility (1994, p. 144)], ‘uma licença epistêmica para credulidade’.212

Como se nota, averiguar a coerência da proposição asserida e a suposição da confiabilidade do falante, com um largo background de crenças, parece constituir parte de um processo de monitoramento. Diante disso, podemos chegar à seguinte formulação:

Um ouvinte S monitora uma testemunha T, quanto ao testemunho de que p, somente se S possui uma crença ocorrente de que não existem indícios contrários à confiabilidade de T quanto a p.

É bastante claro o processo de evolução do conceito de monitoramento empregado por Elizabeth Fricker. De uma ideia primária de monitoramento, entendido como um ato de sensibilidade contrafactual do receptor a possíveis indícios contra a confiabilidade da testemunha, Fricker passa a empregar um conceito que conjuga uma operação não somente em nível consciente, mas, inclusive, de forma automática e inconsciente por parte do receptor, colimando-se numa interpretação psicológica sobre a confiabilidade do emissor. Numa posição de resposta às críticas formuladas por seus pares, Fricker realiza uma volta copernicana na compreensão do conceito de monitoramento, desde o qual passou a indicar uma correspondência com a posse de uma crença ocorrente por parte do receptor, sobre a inconfiabilidade do emissor.

Portanto, é plausível afirmar que, numa operação de monitoramento, o estado operacional de estar consciente, por parte do monitorador, não corresponde a um estado operativo que possa se manifestar automática e inconscientemente e, por fim, o estado operacional de estar consciente é particularmente diferente daquele de estar em posse de uma crença ocorrente. No que segue, mostraremos as incompatibilidades do conceito de monitoramento como mecanismo balizador em vista da viabilidade da tese reducionista local, defendida por Elizabeth Fricker.

212 FRICKER, 2006a, p. 621 [grifo nosso].