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Problema: a consistência da autoridade a priori do testemunho

2.2 A incoerência da tese da racionalidade da rejeição testemunhal

2.2.4 Problema: a consistência da autoridade a priori do testemunho

Neste ponto, tentaremos revelar a falha da maneira como o reducionismo local desenvolve a defesa do caráter exclusivista inferencialista quanto ao grau de justificabilidade epistêmica do testemunho, ao refutar qualquer significância e relevância da força epistêmica testemunhal em sua participação na justificação da crença.

2.2.4.1 - Considerando o problema

Um dos debates contemporâneos centrais da epistemologia do testemunho diz respeito à questão de saber se a formação de crenças com base no testemunho é, ou deveria ser, direta ou inferencial, ou seja, como pode o ouvinte a partir de que o falante disse que p chegar à crença de que p?

Aqui reside um acirrado debate, tanto na epistemologia de modo geral, quanto na epistemologia do testemunho, que separa duas frentes de argumentação: inferencialistas e anti- inferencialistas – estes discordam sobre a questão de até que ponto a nossa formação de crenças testemunhais deve estar baseada em inferências: inferencialistas, de um lado, sustentam que testemunho, enquanto tal, não é em si uma garantia para formação de crenças, isto é, crenças baseadas em testemunho são justificadas somente se inferencialmente sustentadas por outras crenças, enquanto, por outro lado, não-inferencialistas sustentam que crenças baseadas em

testemunho são justificadas não inferencialmente.372

A questão tem raiz histórica, dado que o problema do testemunho é padronamente

apresentado como um contraste entre os pontos de vista de Hume e Reid: “A posição de Reid é

que qualquer afirmação é digna de crédito até que se prove o contrário; enquanto que [a posição

de] Hume implica que uma prova específica para a sua confiabilidade é necessária”.373 Se por

um lado, a posição reidiana assegura que o “testemunho é ‘digno de crédito até que se prove o contrário’”, por outro lado, “esta recomendação também pode ser defendida a partir da perspectiva humeana, uma vez que for suportada pela evidência empírica (de fundo) da total

confiabilidade do testemunho”.374

372 Inferencialistas podem ser representados por LIPTON, 1998; ADLER, 2002; De ALMEIDA, 2013; FRICKER,

1987, 1994, 1995, 2002, 2006b. Na lista dos não-inferencialistas constam: AUSTIN, 1979; EVANS, 1982; COADY, 1992; DUMMENTT, 1994; McDOWELL, 1998.

373 STEVENSON, 1993, p. 443. 374 ADLER, 2002, p. 137.

Nota-se que a questão do inferencialismo ou não-inferencialismo, quanto à justificação testemunhal, é um entrave central na epistemologia do testemunho e, por isso, tem permeado todo o percurso desta pesquisa, mesmo que não tenhamos nos ocupado, de fato, dos seus pormenores.

Neste último ponto, o objetivo é apresentar aquilo que diz respeito à posição frickeana, um tipo de inferencialismo mais conhecido, buscando demonstrar que seu radicalismo inferencialista tem como consequência a exclusão de qualquer nível de significância da força justificatória do testemunho na formação de crenças. Portanto, pretendemos, em específico, a partir da abordagem frickeana, no que diz respeito ao tema do inferencialismo ou não, chegar a outro ponto importante que é a verificabilidade da concepção de Fricker sobre o grau de justificação testemunhal.

Inferencialistas, de um lado, reivindicam possuir a mais adequada abordagem sobre o tema; exemplo disso é a tese defendida pelo epistemólogo Peter Lipton:

A explicação que queremos é aplicável a ambos, tanto a fontes testemunhais, quanto a fontes não-testemunhais e para a sua integração: que é o que tornará isso o papel-redutivo. Isso deve ser ‘vertical’ e necessitará ser capaz de levar numa abordagem a importante heterogeneidade dos fatores que entram na avaliação do testemunho. Por exemplo, queremos uma explicação que dê peso adequado tanto para estas considerações que incidem sobre a honestidade dos nossos informantes quanto para os que ostentam sua competência. Um tipo familiar de explicação que me parece promissor nestes aspectos é ‘Inferência

da Melhor Explicação’, segundo a qual inferimos o que, se correta,

proporcionaria a melhor explicação para a nossa prova [...]. No caso de testemunho, a aplicação mais simples de Inferência da Melhor Explicação seria dizer que o agente infere que, o que o informante disse é verdade, exatamente no caso de a verdade do que foi dito é (parte de) a melhor explicação para (entre outras coisas) o fato de que o informante disse isso.375

O projeto de Lipton de articular sua tese Inferência da Melhor Explicação ao caso de testemunho inferencial requer outra teoria sobre justificação: a presunção a favor da existência do papel da coesão e da coerência na gestão de crenças:

Inferência para a melhor explicação é bem adequado para ter em conta o papel

das considerações de coerência na avaliação do testemunho. Sua decisão sobre se deve ou não aceitar uma parte do testemunho depende de quão bem isso se encaixaria em conjunto com as outras crenças que você espera, e a noção de ajuste pode ser articulada em termos explicativos. Grosso modo, a questão é se a crença de candidato, no contexto dessas outras crenças, forneceria a melhor explicação para, entre outras coisas, a fala do informante.376

375 LIPTON, 1998, p. 27.

No entanto, o próprio Peter Lipton reconhece que sua explicação é fortemente pretensiosa e requer uma difícil articulação:

O projeto de articular a Inferência da Melhor Explicação para o caso de testemunho inferencial pode ser ainda mais difícil, mas ainda me parece um projeto lindo, que convida contribuições interdisciplinares de historiadores, filósofos, sociólogos, cientistas cognitivos e outros, e aquele em que a obra de Chopin e de Coady e podem desempenhar um papel importante. Seus livros fazem uma contribuição sinalizadora para a nossa compreensão do testemunho.377

De acordo com Elizabeth Fricker, defensora do inferencialismo mais conhecido, um agente receptor (R) infere p de um outro agente emissor (E) ao afirmar que p, usando uma teoria relativa à confiabilidade de (E) e à sua competência como uma premissa adicional:

Vou sugerir que, embora o testemunho passado de confiança tenha um lugar ineliminável em apoio ao sistema de crenças de um indivíduo maduro, isso não implica que a confiança acrítica seja a atitude que ele deve ou deveria tomar para novos informantes.378

Fricker sustenta que devemos estar sempre no modo inferencial: é nosso dever epistêmico monitorar ativamente testemunhas em vista de sinais reveladores de desonestidade e incompetência. Segundo Fricker, o ouvinte deve procurar captar do falante,

sua confiabilidade ao longo da conversa, em busca de evidências ou pistas

disponíveis a ele. Isto será em parte uma questão do ouvinte estar disposto a aplicar conhecimento de fundo que é relevante, e em parte uma questão de o

ouvinte monitorar o falante em qualquer sinal revelador, manifestando provável inconfiabilidade.379

Enquanto não forem detectados tais sinais temos o direito de prosseguir na premissa padrão de confiabilidade. Assim que esses sinais se tornam aparentes, porém, temos de desistir dessa premissa. Sendo assim, Fricker argumenta que é essa inferência que distingue a recepção testemunho da percepção sensorial:

Testemunho [...] reduz-se a outras fontes justamente se o status como o conhecimento das crenças adquiridas através de testemunho pode ser explicado (como uma instância de percepção além de nossas formas normais de inferência indutiva e dedutiva) sem postular um original princípio PR [tese do direito presumido]. O conhecimento de um ouvinte de qual ato de fala seu informante fez é conhecimento perceptual.380

377 LIPTON, 1998, p. 30-31. 378 FRICKER, 1995, p. 401. 379 Idem, 1994, p. 150 [grifo nosso]. 380 Idem, 1995, p. 399.

E continua a autora:

Esta tese redutora sustentar-se-á de crenças adquiridas através do testemunho de algum indivíduo M se, para cada uma dessas crenças, M tinha, na ocasião da sua aquisição, base suficiente para saber que seu informante era de confiança, e a crença de M no que a ele foi dito foi baseada inferencialmente, mediada por aquele conhecimento da confiabilidade.381

Dessa maneira, assegura Fricker, é que “a condição satisfeita pelo indivíduo M descrito acima, [é de] cujo conhecimento testemunhal reduz-se à percepção e à

inferência”.382 Diante de tudo isso, vejamos a que conclusão chega a autora:

Mesmo se houver tal como um direito presumido a crer no que é dito, sem evidências da confiabilidade, a sua importância em explicar a base sobre a qual adultos humanos normalmente experientes, por vezes, legitimamente, confiam em testemunho é insignificante, uma vez que, qualquer tal direito a crer, sem

nenhuma evidência, é simplesmente suplantado por evidências relevantes de

posse de um ouvinte adulto normalmente experiente.383

Para corroborar a posição frickeana vejamos o que diz Jonathan Adler a esse respeito:

A posição que eu defendo é que a nossa aceitação do testemunho tem um forte

suporte empírico. O problema do testemunho é que [ele] negligencia este

suporte, concentrando-se sobre o candidato-à-informação (ouvinte, público), o qual deve contar com a palavra de seu informante, sem o benefício de conhecê- lo. No entanto, a experiência de fundo, que está fora de foco, fornece um

enorme [...] fundamento crítico para o candidato à informação.384

Não-inferencialistas, por outro lado, rejeitam este cenário postulado por seus rivais. Entre os não-inferencialistas, Charles Coady é o mais citado e reconhecido por rejeitar e

enfrentar, mais diretamente, a posição inferencialista frickeana.385

A posição de Coady é bem diferente por bastante peculiar:

[Existe] dificuldade a respeito da ideia de que o conhecimento testemunhal poderia ser direto. Afinal, ele pode muito bem ser instado, a pessoa racional não crer em tudo e qualquer coisa que lhe é dito. Seu consentimento deve ser mediado por uma consideração da veracidade do testemunho, sua confiabilidade (...), a probabilidade do que ele [falante] diz, e assim por diante.386

381 FRICKER, 1995, p. 399 [grifo nosso]. 382 Ibidem, p. 401 [grifo nosso].

383 Idem, 2002, p. 379 [grifo nosso]. 384 ADLER, 2002, p. 136 [grifo nosso].

385 Outras críticas diretas a Fricker podem ser encontradas em BHATTACHARYYA, 1994; CHAKRABARTI,

1994; WELBOURNE, 1994; GRAHAM, 2006b.

De acordo com Coady, Elizabeth Fricker está equivocada sobre a fenomenologia da aprendizagem, a qual se dá de modo natural. Vejamos:

Assim mediada, nossa crença no que ele [falante] diz deve contar como inferencialmente baseada e, igualmente, para o nosso conhecimento, onde haja conhecimento. Por mais plausível que este argumento pareça é, certamente,

falacioso. O primeiro problema com ele é que ele está em desacordo com a

fenomenologia da aprendizagem. Em nossa relação habitual com outros nós

colhemos informações sem essa preocupação para inferir a aceitabilidade de comunicações a partir de premissas sobre a honestidade, confiabilidade,

probabilidade, etc., dos nossos comunicantes.387

Como se nota, a posição normativa de Coady é diferente: embora devamos suspender a crença quando temos razão para desconfiar, não há dever geral de monitorar o falante em vista de sinais de insinceridade e incompetência, ou seja, quando não houver razões

positivas contra a confiabilidade da testemunha, “nenhum pensamento de determinar a

veracidade e confiabilidade [dela] me ocorre nem, dado que o total está dentro de limites

toleráveis, faz o balanceamento de probabilidades figurar em minha aceitação”.388

Enfim, mostramos, a grosso modo, alguns dos fundamentos da argumentação frickeana, os quais asseguram que, pelo menos para adultos, crenças baseadas no testemunho são inferencialmente justificadas. Para Elizabeth Fricker, nossas crenças, as quais têm o testemunho como fonte, não são justificadas e não nos dão o direito a crer: “qualquer tal direito a crer, sem nenhuma evidência, é simplesmente inundado por evidências relevantes de posse

de um ouvinte adulto normalmente experiente”.389 No entanto, sem resposta para o caso de

crianças, ainda incapazes de realizarem induções complexas, Fricker concede ao testemunho certa autorização a priori: no entanto, “não precisamos e não devemos aceitar com respeito à

fase madura”,390 dado que o sistema de crenças desses indivíduos, por acumulação indutiva,

permite o monitoramento da sinceridade e da competência da testemunha.

Desse modo, a partir daqui, pretendemos expor que, dado o caráter exclusivista inferencialista, o argumento frickeano é falho. Nesse sentido, buscaremos demonstrar, baseados em estudos realizados por autores, tais como Peter Graham (2006b), que o suporte inferencial e o não inferencial podem se combinar para sobredeterminar a justificação das crenças baseadas no testemunho.

387 COADY, 1992, p. 143 [grifo nosso]. 388 Ibidem, p. 143.

389 FRICKER, 2002, p. 379. 390 Idem, 1995, p. 403.

2.2.4.2 - Sobre o caráter justificatório testemunhal

A questão do caráter a priori justificatório na epistemologia do testemunho é muito importante e tem pautado diversas de suas publicações. Mesmo que não nos ocupemos da amplitude do tema, dado que nos focaremos, logo a seguir, naquilo que diz respeito, propriamente, à falha da concepção frickeana, vale lembrar que o status epistêmico do testemunho comportou no escopo conhecimento a priori, a princípio, ao menos dois caminhos, a saber:

Se o conhecimento testemunhal for a priori, então o escopo do conhecimento

a priori se expande para além de suas fronteiras tradicionais. Por outro lado, a

premissa de que conhecimento testemunhal é a posteriori desempenha um papel central num argumento influente contra a existência de um conhecimento

a priori. Se este argumento for sólido, então o escopo do conhecimento a priori

se afasta de suas fronteiras tradicionais.391

No entanto, há quem tenha tentado argumentar em vista de uma reconciliação que vise, enfim, superar a rigidez de tal dicotomia. Tyler Burge, por exemplo, tenta oferecer uma teoria do testemunho que permita a possibilidade de um cenário que acomode tanto a

justificação testemunhal a priori quanto o conhecimento testemunhal a priori.392 Vejamos o

que segue:

É natural pensar que se eu aprender alguma coisa com alguém, meu conhecimento deve ser a posteriori. [...]. É essa ortodoxia que o papel complexo e provocativo de Tyler Burge pretende desafiar. Burge argumenta que se meu conhecimento do informante é a priori, e eu chego a adquirir esse conhecimento apenas através de seu testemunho, portanto também é meu. Isso é porque eu tenho um direito a priori (embora anulável) a aceitar tal testemunho. Se ambos, tanto o conhecimento do meu informante quanto o meu direito a aceitar o que ele diz como verdade, são a priori, o fato de que a transmissão da informação envolve questões empíricas não compromete o caráter a priori do conhecimento que adquiro.393

Não somente Tyler Burger (1993, 1997), mas também muitos filósofos contemporâneos afirmam que estamos a priori, embora passível de objeção, justificados a crer que um falante é confiável em relação a seu assunto de fala, tais como Charles Coady (1973, 1992, 1994), Michael Dummett (1994), M. Kusch (2002a, 2002b), Peter Graham (2006a, 2006b), Douven & Cuypers (2009), entre outros.

391 CASULLO, 2007, p. 322 [grifo nosso].

392 Veja críticas e reacomodação da teoria de Tyler Burge em BIRO, 1995; CASULLO, 2007. 393 BIRO, 1995, p. 301 [grifo nosso].

Vale também evocar aqui a posição de Thomas Reid, a qual presume a viabilidade epistemológica do testemunho como fonte primária e concebe o agente epistêmico, a partir de princípios gerais da mente na formação de crenças que envolvem a relação indutiva preservadora da verdade, envolvido e atuando por intermédio de relações sociais. Com Nicholas Wolterstorff adentremos na concepção reidiana a esse respeito:

Além das [outras] características de nossa constituição [...], todos nós somos constituídos de tal forma que, ao julgar alguma proposição que já acreditamos como sendo boa evidência para outra proposição que ainda não acreditávamos, estamos dispostos a crer nesta outra proposição também. Para essa disposição Reid atribuiu o nome da razão. Deixe-me chamá-lo a disposição racional. O que a tradição chamou de crenças mediatas agora podem ser apontados como as produzidas pela disposição racional e o que chamou de crenças imediatas, as produzidas por algumas das nossas outras disposições de crenças.394 E continua o autor em sua explanação:

Não só Reid chama a nossa atenção para as várias disposições de crenças que realmente, em um dado momento de nossas vidas, possuímos; ele também fala sobre as origens dessas disposições. Era sua convicção, em primeiro lugar, que em algum lugar na história de cada um de nós encontram-se certas disposições de crenças com o qual fomos simplesmente ‘dotados pelo nosso Criador’. Elas pertencem à nossa natureza humana. Viemos com elas. Elas são inatas em nós. Sua existência em nós não é o resultado dos condicionamentos. Não se deve supor, porém, que todas, semelhantemente às disposições não-condicionadas, estão presentes em nós no nascimento. Alguns, possivelmente a maioria, surgem à medida que amadurecemos. Temos a disposição para adquiri-las em vista de alcançar um e outro nível de maturação. Ele diz, por exemplo: ‘talvez

uma criança no útero, ou por um curto período de sua existência, é meramente um ser sensível: as faculdades pelas quais ela percebe um mundo externo, pelas quais ela reflete sobre seus próprios pensamentos e existência, e sua relação com outras coisas, bem como o seu raciocínio e faculdades morais, desdobram- se por graus; de modo que é inspirada com os vários princípios do senso comum, como acontece com as paixões do amor e ressentimento, quando se tem ocasião para elas’.395

E ainda continua Wolterstorff, dizendo:

Mas, além de nossas disposições de crenças inatas não-condicionadas, nós, adultos, todos temos uma série de disposições de crenças que adquirimos por meio de condicionamento. Reid chama a atenção para um determinado intervalo destas como sendo disposições de crenças induzidas em nós pelo trabalho do princípio indutivo. O princípio indutivo não é em si uma disposição de crença; é uma disposição inata não-condicionada para a aquisição de disposições de crenças. Reid diz: ‘é inegável, e de fato é reconhecido por todos, que quando nós encontramos duas coisas para ter sido constantemente conjugados no curso da natureza, o aparecimento de um deles é imediatamente seguido pela concepção e crença do outro’. [...] E acrescenta que é ‘uma propensão natural, original e inexplicável de crer, que as ligações que temos observado em tempos passados, continuará no futuro’.396

394 WOLTERSTORFF, 1993, p. 150 [grifo nosso]. 395 Ibidem, p. 150.

Por fim, conclui Nicholas Wolterstorff sua linha de raciocínio:

Um exemplo que Reid oferece, de uma disposição de crença inculcada em nós por este princípio indutivo das nossas constituições naturais, é esta: ‘quando ouço um certo som, concluo, imediatamente, sem raciocínio, que uma carruagem passa. Não há premissas das quais esta conclusão é inferida por quaisquer regras da lógica. É o efeito de um princípio de nossa natureza, comum a nós e aos brutos’. O pensamento de Reid a respeito do funcionamento do princípio indutivo pode ser facilmente afirmado na linguagem da psicologia contemporânea, que explica que algumas de nossas crenças são um processo de condicionamento clássico, pavloviano ou respondente. Uma ‘programação’ regular foi estabelecida em sua experiência entre os fenômenos do tipo A e fenômenos do tipo B, e agora tem à disposição, ao experimentar um fenômeno do tipo A, a crer que há também um fenômeno do tipo B. Assim, a pessoa adquiriu uma nova disposição de crença. Esta é a disposição para adquirir as disposições de crenças nesta forma que Reid chama a princípio indutivo.397

Na concepção reidiana do testemunho, o senso comum guarda relação direta com a linguagem, com a qual as disposições mentais do indivíduo se incorporam, oferecendo-lhe uma presciência (veracidade que autoriza a indução) das suas ações; isto é, podemos inferir pelo relato que provavelmente o testemunho corresponde ao fato (credulidade). Retomemos a citação, a partir do próprio Reid:

É inegável e, com efeito, é reconhecido por todos, que quando descobrimos que duas coisas foram constantemente conjugadas no curso da natureza, a aparição de uma delas é imediatamente seguida pela concepção e crença da outra. A primeira se torna um sinal natural da última; e o conhecimento da sua conjunção constante no tempo passado, seja se ganho pela experiência ou de outra maneira, é suficiente para fazer com que confiemos com segurança na continuação daquela conjunção. Esse processo da mente humana é tão familiar que jamais pensamos em investigar os princípios sobre os quais ele está fundado. Somos aptos a concebê-lo como uma verdade autoevidente, que o que está para vir deve ser semelhante ao que é passado.398

Como se nota, na concepção reidiana, a credulidade está imbricada na crença de que a afirmação do informante de que p representa, de fato, sua crença que p ou o que ele, realmente, acredita: o informante, ao utilizar os sinais da linguagem para transmitir os seus reais sentimentos, o faz utilizando tais sinais como portadores de uma presciência para a interpretação e concepção imediata dos seus próprios sinais naturais, num sentido que permita ao receptor verificar em sua informação uma relação causal comum das disposições e intenções presente em toda mente humana, inclusive na sua. A relação entre emissor e receptor caracteriza-se por uma relação social balizada pelos princípios inatos da mente. A repetição dessa observação de padrões perceptivos gera a crença imediata na recorrência causal:

397 WOLTERSTORFF, 1993, p. 150-151 [grifo nosso]. 398 REID, 1764, VI, xxiv.

Há, portanto, na mente humana uma antecipação inicial, nem derivada da experiência nem da razão, nem de qualquer pacto comum ou promessa, de que as nossas criaturas-semelhantes farão uso dos mesmos sinais na linguagem, quando elas têm os mesmos sentimentos. Esse é, em realidade, um tipo de presciência das ações humanas; e parece a mim ser um princípio original da constituição humana, sem o qual seríamos incapazes de linguagem e, consequentemente, incapazes de instrução.399

Reid assegura que, assim como a consciência introspectiva dos próprios episódios mentais confere justificação direta às crenças sobre seus estados mentais, tanto quanto a representação perceptiva confere justificação direta às crenças sobre o mundo externo, da mesma maneira, a compreensão por testemunho confere justificação direta às crenças assim

formadas: se confiamos nos nossos sentidos – percepção pessoal – em sua situação normal,