1.3 Teses sobre justificação testemunhal
1.3.4 Versão dualista da concepção justificacional testemunhal
Insatisfeita com a forma padrão na qual reducionismo e antirreducionismo têm tradicionalmente sido colocados em oposição, colocando o trabalho epistêmico polarizadamente em um ou outro participante, Lackey tem oferecido uma versão dualista, em que tenta buscar, sem precedentes, uma interação entre os dois participantes da operação testemunhal, ressaltando a contribuição positiva para a justificação da crença testemunhal exercida por ambos: aqui nasce a expressão lackeana - “It Takes Two to Tango” - é preciso dois
para se dançar o Tango! Contra um exclusivismo unitário, alega Lackey, “a justificação da
crença de um ouvinte tem duplas fontes, sendo fundamentada tanto na confiabilidade do falante
quanto na racionalidade das razões do ouvinte para a crença”.123
Lackey diagnostica que, uma vez que para o reducionismo a justificação testemunhal se reduz à justificação perceptual, memorial ou inferencial - trabalho este todo centrado na pessoa do ouvinte, o qual precisa ter razões positivas para fornecer como base redutiva -, os reducionistas acabam por assegurar que essas razões positivas possuídas pelo ouvinte é que, de fato, determinam o status epistêmico da terminada crença testemunhal e que, nada além disso, tem relevância epistêmica para justificação da crença testemunhal do ouvinte.
Podemos entender, de modo geral, tal crítica em três passos:124
a) Ao reduzirem, impreterivelmente, o testemunho a outras fontes primárias, os
reducionistas acabam por desvalorizar o papel que o testemunho possui, de fato, na
vida cognitiva das pessoas humanas – isso parece pouco intuitivo;
b) A exigência reducionista para o tipo de justificação indutiva é inalcançável e,
mesmo que se mostrasse possível, as crenças testemunhais são de uma variedade tão distinta que se tornaria inexequível – isso parece impraticável;
c) Os reducionistas não dão conta em explicar como crianças adquirem
conhecimento, dado que não possuem um necessário e desenvolvido aparato racional para confrontar o testemunho recebido do falante com o mundo que, de fato, as envolve.
123 LACKEY, 2006b, p. 170.
Portanto, entre outras coisas, o reducionismo peca contra uma adequada explicação da justificação testemunhal, ao não dispor de regras objetivas e intuitivamente exequíveis.
Lackey diagnostica também que, para o antirreducionismo o trabalho epistêmico é desenvolvido pelo falante que oferece o testemunho, independente das razões positivas que o ouvinte possa oferecer. Se, de um lado, o antirreducionismo, a partir de seus pressupostos, parece estar correto ao pressupor a confiabilidade do testemunho, de outro lado, porém, assume erroneamente que o ouvinte tem apenas de satisfazer a condição de não-refutação. Em muitos casos, apesar do quanto possa ser confiável o testemunho de um falante, é insuficiente a sua
condição de confiança a priori: “aceitar o relato de um falante na completa ausência de razões
positivas pode ser tão epistemicamente irracional quanto aceitar esse relato na presença de um
derrotador - na verdade, talvez até mais”.125 Mesmo ausentes os derrotadores, a crença carecerá
de racionalidade para sua justificação. Assim, o ouvinte precisa ter razões positivas epistemicamente relevantes a favor do depoimento em questão. Podemos entender, de modo geral, tal crítica em dois passos:126
a) Os antirreducionistas, ao assumirem, pura e simplesmente, a presunção da
confiabilidade do falante, acabam por não serem fiéis aos próprios fundamentos requeridos no rol antirreducionista, pois, até mesmo os antirreducionistas concordam que a justificação testemunhal é incompatível com, pelo menos, certos tipos de irracionalidade epistêmica – isso parece incoerência conceitual;
b) Os antirreducionistas ao argumentarem pela confiança a priori, acabam por
incorrer no risco iminente da irresponsabilidade intelectual e da irracionalidade da crença – isso parece incorrer em características epistemicamente indesejáveis. Portanto, entre outras coisas, o antirreducionismo peca contra suas próprias normativas e parecem não dispor de um cenário epistêmico sólido.
Disso resulta o reconhecimento da justificação testemunhal a partir de dupla fonte: a confiabilidade do falante (a partir do antirreducionismo) e a racionalidade das razões do ouvinte para a crença (a partir do reducionismo). Assim, Lackey elabora, num primeiro
momento, a seguinte formulação:127
125 LACKEY, 2006b, p. 168.
126 Cf. Ibidem, p. 167-169 – em especial veja o contraexemplo do Alienígena (p. 167). 127 Ibidem, p. 170.
Para cada falante A e ouvinte B, B crê justificadamente que p com base no testemunho de A que p somente se:
i. B crê que p com base no conteúdo do testemunho de A que p,
ii. o testemunho de A que p é confiável ou conducente à verdade, e
iii. B tem razões positivas apropriadas para aceitar o testemunho de A que p.
Em trabalhos mais recentes, Lackey reformulou sua tese, adicionando outras duas condições, em vista dar um relato mais completo de quando as condições internas e externas
cooperam quanto a tornar o conhecimento testemunhal possível:128
Para cada falante A e ouvinte B, B sabe (crê justificadamente) que p com base no testemunho de A que p somente se:
i. B crê que p com base no conteúdo do testemunho de A que p,
ii. o testemunho de A que p é confiável ou, de outro modo, conducente à verdade,
iii. B é um receptor do testemunho funcionando razoavelmente ou devidamente,
iv.o meio em que B recebe o testemunho de A é adequado para a recepção de testemunho confiável,
v. B não tem derrotadores invictos (psicológicos ou normativos) para o testemunho
de A, e
vi. B tem razões positivas apropriadas para aceitar o testemunho de A que p.
Resguardada a contribuição de Jeniffer Lackey, sua concepção dualista parece não
ser decisória, de modo a resolver os problemas e isentar-se de críticas:129
a) A concepção dualista lackeana emprega em sua formulação apenas as condições
necessárias para que se possa obter uma adequada epistemologia do testemunho;130
b) Com sua ênfase nas condições necessárias apenas e à luz do seu caráter evolutivo
o dualismo lackeano não deve ser entendido como uma teoria completa, a qual necessitaria abordar detalhadamente o que torna certos ambientes mais adequados para a recepção do testemunho confiável do que outros, e como um ouvinte poderia
ser capaz de relatar em qual tipo de ambiente ele se encontra;131
c) A formulação dualista de Lackey não se isenta de problema da variabilidade da classe de referência de testemunho e, desse modo, terá que responder às críticas já
apresentadas contra o reducionismo;132
128 LACKEY, 2008, p. 177-178.
129 Para um estudo sobre as críticas à Lackey cf. GELFERT, 2014, p. 128-130; MÖßNER, 2011, p. 133-134. 130 Cf. GELFERT, 2014, p. 129.
131 Cf. Ibidem, p. 129.
132 Cf. MÖßNER, 2011, p. 133-134.
D 2006 –
d) Embora Lackey afirme que as razões positivas exigidas necessitem apenas tornar o ouvinte não-irracional em vista de ele aceitar o testemunho em questão, não está
claro como isso resolveria o problema do controle da recepção testemunhal;133
e) Em sua tentativa de versão dualista, sua formulação parece ser algo que nem
reducionistas nem antirreducionistas estariam dispostos a endossar, justamente por
contradizer seus princípios fundamentais.134
O intuito de Lackey era, de um lado, mostrar que, sem a posse de razões próprias,
fica comprometida a racionalidade do ouvinte quanto à justificação da crença – ênfase
reducionista – e, de outro lado, evidenciar a importância da necessidade de se valorizar o peso
epistêmico do testemunho na justificação da crença – ênfase antirreducionista. No entanto,
Lackey acabou por desgostar tanto reducionistas quanto antirreducionistas. Conforme afirma Nicolas Mößner,
Lackey aqui combina a justificação [testemunhal] através de um direito presumido, que é normalmente utilizado pelo antirreducionismo e por meio de razões positivas, isto é, inferencial, normalmente utilizado pelo reducionismo. Embora ela esteja certa em apontar a dupla postura, tanto como uma virtude de sua explicação quanto conduzindo para além dos problemas bem conhecidos do reducionismo e do antirreducionismo, e em defender sua posição detalhadamente contra possíveis objeções, existem, no entanto, alguns problemas no que diz respeito à sua sugestão.135
Assim, conclui Axel Gelfert:
Assim, embora o dualismo seja uma teoria híbrida, na medida em que aceita que a justificação testemunhal não é nem redutível e nem inteiramente independente da percepção, da memória e da inferência (do ouvinte), ele não fala tão diretamente quanto se desejaria a respeito de como gerenciar o testemunho. Em vez disso, basicamente, aconselha o ouvinte a aceitar, sempre que possível, unicamente testemunho confiável. No entanto, a menos que razões positivas do ouvinte para aceitar o testemunho do falante possam ser, de alguma forma, inteligíveis conectadas à confiabilidade atual do testemunho,
esse conselho soa vazio.136
Portanto, embora pretendesse figurar para além das formulações híbridas no rol da justificação testemunhal, Jennifer Lackey, factualmente, não se isenta desse rol.
133 Cf. GELFERT, 2014, p. 129. 134 Cf. MÖßNER, 2011, p. 133. 135 Ibidem, p. 133.