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1.3 Teses sobre justificação testemunhal

1.3.1 O reducionismo global

Embora o reducionismo global seja, muitas vezes, referido como o “modo de

exibição padrão do testemunho”90 ou “a posição mais tradicional”,91 fato é que não tem tido

grandes adeptos e nem tem sido fácil encontrar menções explícitas a ele na literatura.

Como vimos, o reducionismo global foi atribuído, por Charles Coady a David Hume, de tal modo que suas raízes têm sido remetidas ao filósofo escocês. Desde então, “defensores de diferentes versões de reducionismo incluem [...] Adler (1994 e 2002), Lyons (1997), Lipton (1998), Shogenji (2006) e Van Cleve (2006)”.92 Entre os recentes filósofos

analíticos, Mackie (1970) “chega mais perto do que a maioria a professar simpatias ao

reducionismo global”.93 Como se nota, essa lista tem se tornado cada vez mais restrita, dado

que outros epistemólogos antes nela incluídos, integram agora a classificação dos que assumem, no mínimo, uma postura de hibridez.

A estratégia dessa posição é apontar para uma explicação global que consiste em argumentos gerais que justificam a crença de uma maneira indiscriminada, de tal modo que uma crença particular, por sua vez, estaria justificada simplesmente em virtude de ser uma instância de um tipo mais geral de conhecimento, cuja total validade e confiabilidade já estariam estabelecidas.

O reducionismo aposta na observação da conjugação entre testemunho e realidade. Tal perspectiva sugere que a justificação da crença testemunhal se reduza a uma crença indutiva, assim como esta última se reduza à experiência e à observação da correlação entre a veracidade do testemunho e a conformidade com os fatos: Hume afirma, em consonância, que a razão pela qual atribuímos confiança às testemunhas não resulta de uma conexão “a priori entre o testemunho e a realidade, mas de estarmos acostumados a encontrar uma concordância entre essas coisas”.94

Nesse sentido, o reducionismo global nega que o testemunho é uma fonte sui generis da justificação: 90 STEVENSON, 1993, p. 430. 91 SHOGENJI, 2006, p. 332. 92 LACKEY, 2008, p. 142, nota 1. 93 GELFERT, 2014, p. 105. 94 HUME, 2004, p. 158.

Qualquer justificativa que temos para contar com o testemunho como uma fonte de conhecimento deve finalmente ser devido, e redutível, às considerações que envolvem unicamente fontes não-testemunhais. Como tal, o reducionismo global rejeita qualquer argumento em favor da distinção de justificação testemunhal e procura submergir testemunho às fontes epistemológicas mais básicas de percepção, memória e inferência.95

Ao exposto, corrobora outro autor:

[Crenças] que se adquirem através do testemunho [...] podem bem ser [consideradas conhecimento], mas só se o conhecedor, de alguma forma, verifica, por si mesmo, a credibilidade da testemunha. E uma vez que, se é um fato que certa testemunha é credível, isto é um fato externo; verificar isto, por sua vez, necessitará estar baseado em observações que o conhecedor faz ele mesmo - ou senão em mais um testemunho, mas, se uma regressão infinita está a ser evitada, devemos voltar a algum momento em que o conhecedor observa para si mesmo.96

Diante disso, podemos compreender o reducionismo global da seguinte forma: “para estar justificado em crer em muito do que me disseram, eu devo ter evidência positiva da verdade da maior parte do que me foi dito, onde essa evidência se baseie, unicamente, em

justificações não-testemunhais”.97

Assim, mutatis mutandis a formulação poderia se apresentar dessa maneira: O ouvinte - S - está justificado em acreditar em p com base no testemunho oferecido pela testemunha - T - se, e somente se, S tem razões positivas não- testemunhais para aceitar o testemunho de T.

De acordo com essa tese, um ouvinte deve ter alguma evidência de que o testemunho é confiável. Entenda-se, neste caso, por evidência razões positivas de que o testemunho é confiável. Portanto, o ouvinte deve oferecer razões positivas com base não- testemunhal para acreditar que o testemunho é geralmente confiável, isto é, para conferir o grau

de justificada a uma crença baseada no testemunho.98 A razões positivas corresponde uma

crença justificada que o ouvinte tenha de que o testemunho é confiável. A tese das razões positivas requer do ouvinte razões que não podem elas mesmas estar baseadas no testemunho, a fim de evitar, portanto, o vício da circularidade: “nesse sentido, requer-se que o ouvinte

95 GELFERT, 2014, p. 105. 96 MACKIE, 1969, p. 254. 97 WEINER, 2003, p. 257. 98 Cf. LACKEY, 2010b, p. 764.

RG

produza inferências indutivas, com base em sua experiência sobre a competência ou sobre a

probabilidade das declarações”.99

Diante disso, porém, uma inevitável questão surge: como estabelecer tais relações indutivas? De modo geral, diante dessa questão, dois planos são montados, a saber: em primeiro lugar, o ouvinte pode procurar evidências de primeira mão, a fim de determinar se o que é relatado é realmente o caso e, em segundo lugar, ele pode transformar observações passadas de relatos e suas correspondências com a realidade como uma base para transpor a futuros casos de testemunho.

No entanto há quem diga que ambas as táticas têm limitações óbvias:

[Primeira] além de ser meramente prática, será, muitas vezes, impossível, como uma questão de princípio, estabelecer diretamente a verdade ou a falsidade da alegação, por exemplo, quando o testemunho se relaciona a eventos passados; [segunda] dada a grande variedade de interações testemunhais, generalização indutiva parece viável apenas para uma classe de referência a um tempo em que cada classe de referência contém relatos de um certo tipo. Testemunho, no entanto, não vem numa embalagem bonitinha em classes de referências disjuntivas.100

Várias críticas a esse modelo de reducionismo foram elaboradas, principalmente por Elizabeth Fricker (1987), Charles Coady (1992), Leslie Stevenson (1993), Tyler Burge (1993), Christopher Insole (2000), Duncan Pritchard (2004) e Tomoji Shogenji (2006). Entre essas, há quem considere o argumento desenvolvido por Stevenson como “uma defesa quase

invencível contra o reducionismo”.101

Para Axel Gelfert o reducionismo global, do tipo arrebatador, está cada vez mais em extinção e tem saído de moda: “eu tomo o reducionismo global como tendo sido

conclusivamente refutado na literatura”.102 Nesse sentido, as falhas do reducionismo global são

vistas como uma abertura profunda para o antirreducionismo, já que colocaria aceitação simplesmente baseada na confiança no centro da sua explicação do testemunho como uma fonte de conhecimento irredutível. No entanto, considera Peter Lipton que a impossibilidade de erro global, no entanto, não exclui que qualquer declaração testemunhal, considerada isoladamente,

possa revelar-se falsa.103 Dessa maneira, nasce o reducionismo local.

99 MÜLLER, 2010, p. 131. 100 GELFERT, 2014, p. 106. 101 INSOLE, 2000, p. 48. 102 GELFERT, 2009, p. 173. 103 Cf. LIPTON, 1998, p. 20.